Aos 83 anos, Iván Izquierdo, se recuperou da COVID-19, mas não conseguiu vencer a pneumonia. Médico e neurocientista, coordenador do Centro de Memória da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RGS), publicou o último de seus mais de 600 artigos científicos na edição de janeiro deste ano da revista Experimental Gerontology.
Argentino – naturalizou-se brasileiro em 1981– , Izquierdo concluiu o doutorado em farmacologia na Universidade de Buenos Aires, em 1962, pós-doutorou-se na Universidade da Califórnia em Los Angeles, em 1964, e foi professor na Universidade Nacional de Córdoba, até imigrar para o Brasil em 1975. Desembarcou no Departamento de Fisiologia e Biofísica da Escola Paulista de Medicina (EPM), atualmente Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde deu aulas na cadeira de Neurofisiologia.
Estudos influenciado pela literatura
Izquierdo investigava os componentes do aprendizado; na UFRGS passou a se dedicar a estudos relacionados à bioquímica e fisiologia da memória, instigado pela leitura assídua de seu compatriota Jorge Luis Borges, segundo ele afirmou em entrevista à revista Pesquisa FAPESP.
“Borges escreveu um conto que é definitivo sobre a questão de que precisamos esquecer para poder aprender. O conto se chama Funes, o memorioso. Funes era um indivíduo que tinha uma memória perfeita, decorrente provavelmente de um acidente. Funes podia se lembrar de um dia inteiro de sua vida. Mas, para fazê-lo, precisava novamente de um dia inteiro de sua vida, durante o qual não podia fazer mais nada. Essa situação, claro, era uma impossibilidade, uma demonstração, pelo absurdo, de que o cérebro se satura”, disse Izquierdo ao repórter Marcos Pivetta.
Inspirado pelo personagem criado por Borges, Izquierdo descobriu, por exemplo, a determinação dos grandes mecanismos cerebrais que modulam a memória, os diversos mecanismos mediados por neurotransmissores como a adrenalina, a beta-endorfina, a vasopressina e os corticoides. “A modulação da memória por todas essas substâncias faz com que a formação e a evocação da memória sejam tão sensíveis às emoções a aos estados de ânimo”, explicou a Pivetta.
Divisão da memória de curta e de longa duração
Estudou também os mecanismos moleculares reais da memória para conhecer em detalhe a sequência molecular dos processos de formação das memórias no hipocampo e em outras regiões cerebrais. E foi responsável pela divisão da memória de curta e de longa duração.
“Ao contrário do que se pensava, demonstramos que as divisões da memória são dois processos paralelos e diferenciados”, explicou. “São duas memórias que se disparam ao mesmo tempo, que se formam nas mesmas células nervosas, mas utilizam mecanismos moleculares separados.”
Dizia que o esquecimento é necessário – “senão literalmente não haveria lugar no cérebro [para tanta informação]” –, ao mesmo tempo em que afirmava que o melhor exercício para a memória era a leitura.
Ciência com visão de futuro
Em entrevista ao repórter Bruno Felin da GZH – do Grupo RBS –, mostrando a capa de um livro ele explicou: “Aqui neste livro está escrito ‘afeto e cognição’. Meu cérebro vê a letra ‘a’. Imediatamente ele faz um inventário de tudo que ele conhece que comece com a letra ‘a’. Milhares de palavras, em todas as línguas que eu falo. Austrália, afeto, Aníbal, Ana. Passam-se milissegundos e leio a letra ‘f’. O cérebro joga fora o inventário anterior, que usou muitos neurônios para fazer, começa um segundo inventário de palavras que começam com ‘af’. E assim segue, até sair um chute: ‘afeto’. Vê que bate, e assim continua lendo. Aos saltos, vamos chutando e, cada vez que acertamos, seguimos, assim se lê. Fazer cada inventário envolve a memória de toda uma vida, em várias línguas, é um trabalho intelectualmente terrível. E fazemos isso em milissegundos. Não há nenhuma atividade intelectual que seja do mesmo teor, da mesma importância”.
Leitor obstinado, ele próprio era um escritor, e não apenas dos mais de 600 artigos e de 24 livros sobre temas de pesquisa: fez incursões bem-sucedidas na literatura infantil. “A inspiração estava nos netos”, conta Cavalheiro. “Ele se divertia muito acompanhando a evolução neurológica das crianças. ‘Agora ativou tal área do cérebro’, observava. Escrevia para os netos.”
Ao longo de toda a sua vida, as homenagens foram superlativas: recebeu mais de 140 prêmios e títulos, entre eles, Prêmio Almirante Álvaro Alberto, CNPq (2011), Prêmio em Ciência Geral 2007, Fundação Conrado Wessel, Comenda da Ordem de Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores. Guggenheim Award, The John Simon Guggenheim Foundation (2008), TWAS Award in Basic Medical Science e Academy of Sciences of the Developing World (TWAS) (1995). Foi membro correspondente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Foreign Associate da National Academy of Sciences, dos Estados Unidos, e membro da Academy of Sciences of the Developing World (TWAS).
“Com Izquierdo aprendemos a fazer ciência internacional com visão histórica e de futuro. Ganhamos muito e por isso o sentimento de perda é paradoxalmente consolador”, afirmou Sérgio Mascarenhas, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP).
Fonte – Agência FAPESP