Eldorado é um país fictício da América Latina onde se passa o clássico cinematográfico “Terra em Transe”. É palco de uma convulsão interna desencadeada pela luta em busca do poder. O protagonista é Paulo Martins (Jardel Filho), poeta e jornalista, que é então tragado pelos jogos da política. Associa-se a Porfírio Diaz (Paulo Autran), um líder carismático de direita, mas, desencantado, junta-se ao emergente líder populista da província de Alecrim, Felipe Vieira (José Lewgoy), e assim conhece a amante, Sara.  Só depois de desencantar-se com a política, Paulo está “preparado” para a morte, quando percebe “a impotência da fé, a ingenuidade da fé”.

Psicologia das Massas

O filme retrata a desilusão de um intelectual diante do líder populista, que se aproxima da esquerda, e do senador dogmático, que representa a direita. O povo atua apenas como massa de manobra, vítima de mecanismos de dominação ideológica do Estado. O engajamento de Paulo aparece como algo necessariamente negativo, nesse caso, a ideologia mostra-se como distorção do pensamento que nasce das contradições sociais e que serve justamente para ocultar ou disfarçar tais contradições.

O anseio da Paulo Martins por um líder pode ser notado na cena em que Sara, aliada de Vieira, o procura na redação do jornal para angariar donativos para crianças abandonadas e hospitalizadas. A conversa entre eles culmina em um encontro entre Vieira, Sara e Paulo, regado à bebida e conversa prosaica, quando este confessa que “gostaria de fazer política”.

Efeito manada

O discurso de Paulo nos faz pensar que um grupo é um rebanho obediente, que nunca poderia viver sem um senhor. “Possui tal anseio de obediência, que se submete instintivamente a qualquer um que se indique a si próprio como chefe”, escreveu Sigmund Freud, em “Psicologia das Massas e a Análise do Eu”. “Embora, dessa maneira, as necessidades de um grupo o conduzam até meio caminho ao encontro de um líder, este, contudo, deve ajustar-se àquele em suas qualidades pessoais. Deve ser fascinado por uma intensa fé (numa ideia), a fim de despertar a fé do grupo; tem de possuir vontade forte e imponente, que o grupo, que não tem vontade própria, possa dele aceitar”.

Esse “efeito manada”, descrito por Freud, pressupõe a existência de uma massa impulsiva e mutável, que é levada exclusivamente por seu inconsciente. “Os impulsos a que um grupo obedece, podem, de acordo com as circunstâncias, ser generosos ou cruéis, heroicos ou covardes, mas são sempre tão imperiosos, que nenhum interesse pessoal, nem mesmo o da autopreservação, pode fazer-se sentir. Nada dele é premeditado. Embora possa desejar coisas apaixonadamente, isso nunca se dá por muito tempo, porque é incapaz de perseverança. Não pode tolerar qualquer demora entre seu desejo e a realização do que deseja. Tem um sentimento de onipotência: para o indivíduo num grupo a noção de impossibilidade desaparece”.

Observação de Freud

A figura carismática do líder é objeto de busca de Paulo, que oscila entre direita e esquerda, arte e política. Freud notou que, diante da dominação, “um grupo é extremamente crédulo e aberto à influência do líder; não possui faculdade crítica e o improvável não existe para ele. Pensa por imagens, que se chamam umas às outras por associação (tal como surgem nos indivíduos em estados de imaginação livre), e cuja concordância com a realidade jamais é conferida por qualquer órgão razoável. Os sentimentos de um grupo são sempre muito simples e muito exagerados, de maneira que não conhece a dúvida nem a incerteza”.

Em uma passagem do filme, Paulo agride um representante dos camponeses locais, que pede ao governador a propriedade da terra por eles cultivadas. Paulo se volta contra o agricultor, agredindo-o.  O embate termina com a morte do camponês, afinal a campanha de Vieira fora financiada pelos ricos fazendeiros, donos legais das terras. O incidente culmina no remorso de Paulo e no pedido de demissão, frustrado diante da tática de Vieira, que adota a repressão policial diante dos conflitos com desses “agitadores”.  

Domínio exercido

Sara conclui que “a política e a poesia são demais para um só homem”. O seu discurso nos remete à ideia de que, em geral, os líderes se fazem notados por meio das ideias em que eles próprios acreditam fanaticamente, de modo essa crença é incongruente com a liberdade criativa, que não obedece a ninguém.

As ideias e o poder misterioso do líder são irresistíveis, é o que se chama de “prestígio”, conforme notou Freud: “O prestígio é uma espécie de domínio exercido sobre nós por um indivíduo, um trabalho ou uma ideia. Paralisa inteiramente nossas faculdades críticas e enche-nos de admiração e respeito”.

O transe que contamina os personagens do filme, as campanhas políticas, o golpe de Estado e até as orgias funciona como uma espécie de rito coletivo. A dominação exercida pelo líder perece despertar um sentimento de “fascinação” da qual se apropria a hipnose, em que o dominado não é mais ele mesmo, mas transforma-se num autômato que deixou de ser dirigido pela sua vontade. Em “Psicologia da Multidões”, o médico francês dedicado à Psicologia, Gustave Le Bon, argumenta que, como num estado hipnótico, vemos então o desaparecimento da personalidade consciente com a predominância da personalidade inconsciente. “A modificação por meio da sugestão e do contágio de sentimentos e ideias numa direção idêntica, a tendência a transformar imediatamente as ideias sugeridas em atos, estas, vemos, são as características principais do indivíduo que faz parte de um grupo”, escreveu.

O elitismo

No filme, o elitismo mostra no seu reiterado desprezo pelo povo e na sua concepção da política nos círculos do poder. Trata-se de uma crítica ao intelectual engajado brasileiro, que se submete ao prestígio dessa elite palaciana. Le Bon faz distinção entre o prestígio adquirido ou artificial e o prestígio pessoal. O primeiro se liga às pessoas em virtude de seu nome, fortuna, reputação e opiniões, obras de arte etc. O prestígio pessoal liga-se a umas poucas pessoas, que se tornam líderes por meio dele, e tem o efeito de fazer com que todos as obedeçam como se fosse pelo funcionamento de alguma magia magnética.

Paulo diz que “a culpa não é do povo, dentro da massa existe o homem, e o homem é difícil de se dominar, mais difícil do que a massa”. Isso significa dizer que o homem, isoladamente, tem uma autonomia que a massa não tem, pois, na massa, os dotes particulares dos indivíduos se apagam.  Le Bon escreveu: “É fácil provar quanto o indivíduo que faz parte de um grupo difere do indivíduo isolado; mas não é tão fácil descobrir as causas dessa diferença”.

Inteligência singular

Há diferenças entre o homem isolado e na massa. Isolado, o homem é um corpo que precisa mostrar sua potência. Le Bon explica então que há uma redução da capacidade intelectual quando se funde num grupo. “Isolado, um homem pode ser um indivíduo culto; numa multidão, é um bárbaro, ou seja, uma criatura que age pelo instinto. Possui a espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo dos seres primitivos”. É o que Paulo chama de “o transe dos místicos”.

Paulo experimenta na vida política uma espécie de orfandade, sempre à procura de uma ideologia, algo em que possa acreditar.  Quando abandona Vieira e seu governo corrupto, ele retorna a Eldorado e diz: “Eu trazia uma forte amargura dos encontros perdidos e outra vez me perdia no fundo dos meus sentidos. Eu não acreditava em sonhos e mais nada, apenas a carne me ardia, e nela eu me encontrava”.  O personagem então se entrega às orgias com mulheres, meretrizes, que são a metáfora concebida por Glauber Rocha para representar a vida política.

Defesa da ideologia

A pergunta que nos fazemos, a certa altura, diante da orfandade de Paulo é a seguinte: por quê ele, então, não abandona proselitismo quando as coisas fogem do controle e ele se vê confrontado com seus próprios fantasmas? A questão é que a ideologia o guia.  Paulo parecia estar preso ao grupo psicológico, que o levava às facções políticas, assim é tragado pelas engrenagens do poder, que o coloca em desalento. O grupo psicológico é um ser provisório, formado por elementos heterogêneos que por um momento se combinam. Nesse contexto, nos círculos do poder, ele é uma das células que constituem um corpo vivo, formam, por sua reunião, um novo ser que apresenta características muito diferentes daquelas possuídas por cada uma das células isoladamente.

Assim Le Bon diz: ‘”A peculiaridade mais notável apresentada por um grupo psicológico é a seguinte: sejam quem forem os indivíduos que o compõem, por semelhantes ou dessemelhantes, quaisquer que sejam seu modo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o fato de haverem sido transformados num grupo coloca-os na posse de uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de isolamento”.

O fenômeno do contágio

O que impelia Paulo ao que ele chama de “aventura política” nos remete a outro aspecto da ação das massas, que é o contágio. Este intervém de modo a determinar a tendência que o grupo deve tomar. “O contágio é um fenômeno cuja presença é fácil estabelecer e difícil explicar (…) Num grupo, todo sentimento e todo ato são contagiosos, e contagiosos em tal grau, que o indivíduo prontamente sacrifica seu interesse pessoal ao interesse coletivo. Trata-se de aptidão bastante contrária à sua natureza e da qual um homem dificilmente é capaz, exceto quando faz parte de um grupo”, diz Le Bon.

“O indivíduo que faz parte de um grupo adquire, unicamente por considerações numéricas, um sentimento de poder invencível que lhe permite render-se a instintos que, estivesse ele sozinho, teria compulsoriamente mantido sob coerção. Ficará ele ainda menos disposto a controlar-se pela consideração de que, sendo um grupo anônimo e, por consequência, irresponsável, o sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos, desaparece inteiramente”, escreveu Le Bon.

A vida imita a arte

A perigosa polarização vivida por Paulo em sua trajetória política nos faz questionar a pertinência do entendimento de “Terra em Transe” diante do cenário político atual, francamente dividido entre a esquerda e a direita, e mostra que o povo caminha para o abismo, pois “sai atrás do primeiro que lhe acena, com a espada ou com a cruz”. Diz Paulo a Sara no comício das massas: “Ando pelas ruas e vejo o povo magro, apático, abatido…Este povo não pode acreditar em nenhum partido, este povo cujo sangue sem vigor, este povo precisa de morte mais do que possa supor. O que que estimula no irmão a dor, o sentimento do nada que gera o amor, a morte como fé, não como temor”.

Fim trágico

Quando Diaz toma o poder pela força, suas palavras são as seguintes: “Aprenderão! Colocarei estas histéricas tradições em ordem. Pela força, pelo amor da força, pela harmonia universal do inferno chegaremos a uma civilização”. Enquanto isso, Sara pergunta a Paulo: “O que prova a sua morte?”. Ele lhe responde: “O triunfo da beleza e da justiça”.

Analisando esse trecho, a morte de Paulo seria a própria metáfora da insubmissão. Daí o fim trágico do protagonista, que é referido no poema de Mario Faustino – ensaísta, tradutor e jornalista. Os versos do autor seriam uma elegia ao suicídio de um poeta, que não consegue manter a pureza de sua alma diante da corrupção humana. O poema de Faustino recupera a figura do gladiador romano – que encarava com dignidade o destino fatal – “defunto, mas intacto”.

E MAIS…

Teoria que influenciou o holocausto nazista 

A despeito da importância da sua obra sobre as massas, Le Bon tem uma atuação bastante controvertida envolvendo fatos importante do século XX. Embora Le Bon, enquanto francês, nem imaginava que suas ideias um dia serviriam para ancorar o holocausto nazista e que seu país de origem seria vítima da discriminação da “raça ariana”. Em seus escritos explica o colonialismo das potências europeias, e sua justificativa era a de que existiriam raças superiores. Ele também se apropriava da ideia de que somente certas condições geográficas poderiam surgir homens “verdadeiramente desenvolvidos”. Freud chegou a escrever “Psicologia das Massas e Análise do Eu” para avaliar a obra de Le Bon.