O inesperado, a tragédia e a frustração são contingências próprias da condição humana. Todavia, elas não são capazes de furtar do ser humano a chance de escolher que atitude tomar frente às situações concretas da vida, mesmo as mais difíceis. Podemos afirmar isso considerando que “Não se perde a liberdade de atitude perante uma situação concreta; o que sucede, simplesmente, é que o homem se lhe entrega, numa atitude de desistência” (Frankl, 2003, p. 141). Parece que, mesmo no término de uma fase da vida, como um ciclo que se encerra, o ser goza da liberdade de inaugurar novas etapas existenciais, pautadas nas suas frustrações e inseguranças ou cheias de esperança, otimismo e possibilidades existenciais.

É por meio da concepção da finitude e efemeridade da vida que podemos adotar perspectivas mais otimistas para inaugurar uma nova etapa de nossas vidas, quer seja numa mudança de cidade ou de trabalho, ou simplesmente na mudança do calendário do ano. Não é à toa que o final do ano representa para muitas pessoas a chance de fazer novas escolhas que reinaugurem seu investimento na busca pelo sentido de suas vidas. Entretanto, para começar um novo ciclo deve-se encerrar outro e para isso apresentamos as perdas e morte como maneiras de enterrar os fantasmas do fracasso de um ano ruim.

O ano pandêmico

2020 foi um marco mundial e secular de um período incontestavelmente de perdas e, literalmente, de mortes para muitas pessoas. O mundo viu suas bases estremecerem e suas fronteiras desabarem diante da ameaça real de um vírus. O Coronavírus exigiu mudanças urgentes e paradigmáticas nas relações intra e interpessoais. Ninguém saiu ileso da revolução às avessas que a pandemia da Covid-19 fez em nossas vidas. Pandemia para uns, pandemônio para outros, mas em todos os casos vivemos um momento de grandes tensões em todos as esferas da nossa existência. Do home office obrigatório ao isolamento social mandatório nos períodos de lock down, todos fomos atravessados, e porque não assolados, pela pandemia.

Nosso ser, por mais resiliente ou confiante que seja, teve suas estruturas psíquicas abaladas com momentos de grande angústia, insegurança, medos e até desespero, o que afetou a saúde mental mundial. Tivemos que lidar com o inimaginável e enfrentar nosso medo mais atávico: o de morrer. Morte em diferentes dimensões, física, psíquica e espiritual. Morte física pela ameaça real do adoecimento pela Covid-19 e o agravamento de doenças pré-existentes pela baixa da imunidade resultado do estresse pandêmico. Morte psíquica pela vulnerabilidade a que todos ficamos expostos, com o sofrimento psíquico em larga escala fomentado pelos pensamentos e sentimentos que nos assolam a cada notícia sobre a pandemia. Tudo isso misturado às inseguranças e incertezas do futuro junto com o isolamento social, que para alguns foi também uma morte afetiva em vida porque restringiu as poucas relações afetivas pela dificuldade de se reinventar nas novas formas de relacionamento virtual. Sem falar na morte espiritual, na estrita concepção da dimensão noética (ou espiritual) que Viktor Frankl nos apresenta. Na vivência da pandemia se experimentou um profundo desamparo, com perda da perspectiva de conexão com algo superior e transcendente à vida material. Nisso se revela uma certa morte espiritual pela diminuição e, em alguns casos, a perda do exercício da espiritualidade, que é uma potência para a saúde humana, tal como as ciências da saúde modernas preconizam. Muitos se viram desconectadas dos outros e, assim, perdidos de si mesmos num caminhar para incredulidade de que exista um sentido que nos conecte a algo que transcenda esse presente pandêmico. Isso tudo, somado à perda de fé na vida, apareceu como um iminente obstáculo à autotranscedência e à capacidade de superar o momento pandêmico.

Passado, presente e futuro do ser

O autor existencialista Viktor Frankl, neuropsiquiatra austríaco e fundador da terceira escola vienense de Psicoterapia, a Logoterapia e Análise Existencial (LAE), apresenta uma compreensão do ser humano como aquele que é uma síntese temporal entre seu presente e passado, que o leva na direção de um futuro a ser realizado. Baseada nessa compreensão do ser humano, a LAE permite refletir sobre as questões da morte e do morrer para além da perenidade do corpo. Propondo um modelo tridimensional para compreender a complexidade do ser e sua existência, Frankl faz alusão a dimensões geométricas que se diferenciam entre si qualitativamente, mas que não se anulam umas às outras. Assim, o ser humano seria formado pelas dimensões somáticas (corpo), psíquica (mente) e noética (espírito), sendo esta última a mais elevada e sobreposta às anteriores.

Mas façamos um aparte para compreender o que seria a dimensão noética ou espiritual na antropologia frankliana. Noético ou espiritual é um conceito antropológico do modelo da LAE de Frankl, que, influenciado por filósofos como o alemão Max Scheler, pressupõe que o ser tem uma dimensão espiritual que se relaciona diretamente com sua liberdade e vontade de sentido. Para Frankl (2011), a noção de espírito não tem fundamentação religiosa, mas se sustenta na concepção de espiritualidade como uma capacidade humana inata de buscar significado para a vida transcendendo ao que é tangível e material. Pela dimensão noética ou espiritual o ser humano existe, fundamentalmente, na busca e pela procura de um sentido de conexão com algo além dele mesmo, o que Frankl chamou de sentido de vida. Logo, trata-se de uma dimensão inerente à vida humana, não necessariamente ligada a uma vivência religiosa.

É nessa ontologia dimensional que reside a ideia de poder opositor do espírito, o que seria para Frankl a capacidade do ser em se opor aos condicionantes biológicos, psíquicos e sociais de sua existência por meio da expressão da sua dimensão noética ou espiritual. Nisso, também se destaca a liberdade humana, que é diretamente relacionada à potência do ser em fazer escolhas, mesmo diante de condições falsamente todo poderosas, ou seja, situações da vida em que nos sentimos incapazes de enfrentar (Frankl, 2003). Deste modo, existe uma relação dialética entre liberdade e destino, baseada em três complexos básicos de condicionamento e determinação humanas: o biológico, psicológico e sociológico. Embora sejam condicionantes do ser, não devem ser entendidos como determinantes da existência humana, já que, sob todas as formas, o ser tem a liberdade de assumir atitudes frente às situações imutáveis, como alguém co-plasmador do seu destino (Pereira, 2015).

O valor do autoconhecimento

Contrariamente, observamos nas nossas práticas clínicas pessoas que, frequentemente, tentam a todo custo reduzir as tensões da vida, sobretudo aquelas que representam perdas ou mortes de si mesmas ou de entes queridos. Suas tentativas chegam ao ponto de tentarem aniquilar essas tensões ou aniquilarem-se a si mesmas para evitarem a todo custo as frustrações, dores e sofrimentos inerentes à existência humana. Entretanto, conforme defendemos, a existência humana, pautada numa dinâmica de experiências vivenciais de altos e baixos, cuja função é manter o ser na direção de um objetivo, não pode ser compreendida fora do contexto de uma dimensão noética/espiritual. É nessa dimensão que a vida nos convoca a questão principal da nossa existência: nosso sentido da vida.

Vontade de eternidade

Muitos conseguem se orientar rumo a um propósito, algo individual e anterior ao sentido de vida em si, mas outros sequer conseguem acessar a consciência espiritual que lhes permitiria captar este chamado da vida para a vida. Nestes casos, o trabalho é empreender um processo sutil e delicado de cuidado psicoterapêutico que vise um autoconhecimento e o refinamento da consciência. O autoconhecimento de seus valores, forças e virtudes, bem como a consciência da sua dimensão noética e da liberdade de escolha, são instrumentos de trabalho no labor da busca pelo sentido da vida. Dessa forma, é possível identificar seu chamado e escolher, pelo exercício da sua liberdade ontológica e de sua vontade de sentido, o que deseja eternizar. A existência é perene, mas o que representamos para os outros e as lembranças que deixamos para a vida são eternas. Viver em consonância com o sentido de vida pode eternizar um legado que será para sempre bem lembrado. Tomando consciência, primeiro espiritual e depois psíquica, deste sentido de vida o que ecoa em nós e para os outros é a voz da eternidade: fazer-se um ser de tal modo que jamais seja esquecido. Assim, ao que chamamos de vontade de eternidade é uma analogia ao que Frankl chamou de Vontade de Sentido (Frankl, 2011).

E MAIS…

Possibilidades para autotranscender

Com isso, parece que o ano de 2020 foi um marco para a temporalidade da existência, no qual a morte e a eternidade pareceram caminhar juntas. Vimos nossos planos e rotinas não se realizarem como imaginávamos, ao passo que vivemos uma tragédia que parecia nunca acabar: a pandemia da Covid-19. Mas, propomos aqui ultrapassar essa realidade pessimista, cheia de incertezas que a pandemia nos impõe, para pensar este momento como um período de abertura à novas possibilidades de se autotranscender. Para isso sugerimos esta reflexão: “O viver é incerto em maior ou menor grau, mas podemos encontrar nele sentidos de vida para nosso existir!”. Entendendo a autotranscedência como o meio pelo qual o ser se lança a algo para além de si mesmo e a morte como um meio de abertura para novas possibilidades, propomos pensar a pandemia e o ano de 2020 como potências para transformação. Assim, sugerimos refletir sobre o processo de morrer, sem negar a existência, líquida e certa, da morte.

É primordial pensarmos a posição que tomamos frente a imperativos da vida como a morte, por exemplo. Nos indagamos por que é difícil falar sobre a morte e o morrer? No ocidente, ambos, morte e morrer, estão desconectados da vida e do viver. Porém, propomos repensar nossa relação com o morrer, entendo mais uma vez que o nascer é marco inicial do morrer humano. Com ressalva para os que acreditam em vida após a morte, sendo a morte nosso destino final por quais motivos a morte é uma interdição e um tabu, algo velado, negado e do qual precisamos nos entorpecer para não assumir sua presença diária em nossas vidas? Afinal é como diz o ditado popular: “Para morrer basta estar vivo!”, mesmo que “A esperança seja a última que morre”!

REFERÊNCIAS:
Frankl, V. E. (2003). Psicoterapia e sentido da vida (A. M. de Castro, trad.). São Paulo, SP: Quadrante.
__________ (2011). A vontade de sentido: Fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo: Paulus. (Original publicado em 1969).
Pereira, I. S. (2015). Espírito e liberdade na obra de Viktor Frankl. Psicologia USP, 26(3), 390-396. https://doi.org/10.1590/0103-656420140036