Segundo Viktor Frankl (2010; 2011; 2019), psicólogo austríaco que fundou a Logoterapia e Análise Existencial (LAE), o ser humano possui duas características antropológicas que são essência da natureza humana, ambas relacionadas à sua dimensão espiritual: a autotranscendência e o autodistanciamento. Enquanto a autotranscendência seria a capacidade de nos voltarmos para algo ou para alguém além de nós mesmos, o autodistanciamento é a capacidade de nos distanciarmos de nós mesmos, percebendo sentimentos nossos como, por exemplo, o medo, a raiva e o fracasso, porém compreendendo que esses sentimentos não nos resumem e não precisam nos definir. Para Frankl (2011, p. 27):

(…) o homem é capaz de distanciar-se não apenas de uma situação, mas de si mesmo. Ele é capaz de escolher uma atitude com respeito a si mesmo e, assim fazendo, consegue tomar posição, colocar-se diante de seus condicionamentos psíquicos e biológicos.

Nossa proposta neste artigo é refletir como o autodistanciamento pode ser exercido por meio da escrita, a ser utilizada na clínica logoterapêutica como uma ferramenta para promover a autotranscendência e o encontro do sentido de vida pela pessoa. É no encontro com seu sentido de vida que conseguimos transformar situações de dor e sofrimento na busca e encontro de um sentido maior na vida, mesmo que inicialmente ele seja apenas um propósito ou meta a ser cumprida.

Ferramenta terapêutica

Ao traduzirmos nossas experiências humanas em linguagem, verbal ou não-verbal, escrita ou falada, conseguimos torná-la mais visível, mais palpável e mais compreensível. Benetti e Oliveira (2016) afirmam que a linguagem pode ocorrer por meio de diversos recursos, dentre eles a escrita, que, quando utilizada de forma terapêutica, pode aliviar o sofrimento, acalmar as angústias e possibilitar o bem-estar físico, mental e espiritual. Para Frankl (2011; 2014) o ser humano possui três dimensões: somática (seu corpo), psíquica (sua mente) e espiritual (sua essência, onde reside sua vontade de sentido, ou seja, o impulso humano básico para a realização de sentido, que terá como efeito a felicidade). Propomos pensar que a escrita pode ser uma ferramenta que articula essas dimensões, integrando o ser humano sob uma perspectiva interdimensional que o conecta também com a sociedade e sua cultura. Com isso, nos referimos a um tipo específico de escrita, que pode ser entendida como:

  • Um meio de comunicação interpessoal;
  • Um meio de comunicação intrapessoal;
  • Um recurso terapêutico;
  • Um recurso de expressão criativa;
  • Uma ferramenta de autoajuda.

No campo da psicoterapia clínica, uma das hipóteses para a melhora ou remissão de sintomas clínicos a partir da escrita estaria relacionada à sua função catártica. Quando não expressamos nossas emoções provocadas por traumas e conflitos, produzimos sintomas que permanecem presos ao corpo, com reflexos às nossas dimensões mental e espiritual. Ao serem expressos, esses sintomas podem ser aliviados ou até desaparecerem, o que permite também minimizar seus efeitos e impactos nocivos à saúde (BENETTI & OLIVEIRA, 2016).

Manifestações do autodistanciamento

Numa perspectiva logoterapêutica, a escrita pode ser considerada como um lugar onde é possível encontrar significado nos eventos que ameaçam a vida, transformando experiências implícitas e negativas em vivências explícitas e positivas. Ruini e Mortara (2022) abordam que a Logoterapia e Análise Existencial (LAE) enfatiza a importância da escrita na criação de sentidos de vida e, neste caso, as palavras e frases podem contribuir para que um senso de significado e de aceitação seja adquirido, através do autodistanciamento.

Frankl (2011) explica que a nossa capacidade humana de nos distanciarmos de nós mesmos se baseia em três principais manifestações: a autocompreensão (quando o autodistanciamento ocorre ao elevar-se sobre si mesmo, julgando e avaliando as próprias ações e a sua realidade em termos morais e éticos), o heroísmo (quando o autodistanciamento ocorre perante as piores situações da vida) e o humor (quando o autodistanciamento nos auxilia a enxergamos as situações da vida sob uma perspectiva engraçada, constituindo, segundo Frankl, um truque útil para a arte de viver).

E MAIS…

Estudo de caso

Para ilustrar nossas reflexões sobre a escrita como ferramenta logoterapêutica que pode proporcionar o autodistanciamento e, consequentemente, promover a saúde integral do ser humano, vamos relatar o caso de Daniel, um paciente de 21 anos, cuja queixa inicial era ansiedade e dificuldades de expressão e comunicação nas suas relações afetivas e sociais.

Inicialmente, Daniel aceitou utilizar a escrita como um recurso para dar continuidade ao processo terapêutico fora das sessões de psicoterapia, que ocorreram uma vez por semana, durante sete meses. Em diferentes sessões, ele foi convidado a trazer seus escritos para refletir sob mediação do psicoterapeuta, utilizando principalmente a ferramenta do Dialogo Socrático. Esta ferramenta consiste em auxiliar a pessoa a se centrar em suas próprias respostas para três perguntas chaves – “o que?”, “como?” e “para quê?” –, levando a pessoa a uma resposta sobre sua própria vida e a lidar com a liberdade e angústia inerentes às suas escolhas. (PAREDES, 2014)

Em um dos textos que Daniel trouxe em terapia, ele elaborou, subjetiva e simbolicamente, sobre como se utiliza da escrita para conseguir se ver de fora e tirar o sofrimento de dentro de si. Naquela sessão, ele começou a narrativa apresentando situações e sentimentos representativos de sua própria angústia e terminou refletindo sobre o quanto quer viver e ser mais feliz. No decorrer desta elaboração, Daniel também fez uso do humor para se referir ao seu sofrimento, usando especialmente frases do tipo “imagina que…” para começar seus escritos. Além disso, ele passou a conseguir, em muitos momentos, descrever-se como uma pessoa sortuda e amada, que busca se compreender.

É possível perceber certo movimento catártico de Daniel ao longo do que escreveu, relacionando seu texto às três manifestações do autodistanciamento mencionadas anteriormente. Quando, em sessão, Daniel enfrenta suas angústias, avalia a sua própria realidade e distancia-se de si através do humor, ele percebe por meio da escrita que, mesmo em meio ao seu sofrimento, VALE A PENA VIVER!

REFERÊNCIAS
BENETTI, Idonezia Collodel; OLIVEIRA, Walter Ferreira de. O poder terapêutico da escrita: quando o silêncio fala alto. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental/Brazilian Journal of Mental Health, [S. l.], v. 8, n. 19, p. 67-76, 2016. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/69050>.
FRANKL, Viktor. E. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo: Paulus, 2011
_______. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 47. Ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2019.
_______. Logoterapia e Análise Existencial: texto de seis décadas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
_______. Psicoterapia e sentido da vida: fundamentos de logoterapia e análise existencial. 5ª Ed. São Paulo (SP): Ed. Quadrante, 2010.
PAREDES, Alejandro S. Diálogo Socrático em Logoterapia. Av.psicol. 22(1), 2014. Disponível em: <http://www.unife.edu.pe/publicaciones/revistas/psicologia/2014/AVANCES.A.Salomon.pdf>.
RUINI, Chiara, MORTARA, Cristina C. Writing Technique Across Psychotherapies — From Traditional Expressive Writing to New Positive Psychology Interventions: A Narrative Review. J Contemp Psychother 52, 23–34, 2022. Disponível em: <https://doi.org/10.1007/s10879-021-09520-9>.