ESTUDO DE CASO

Patrícia tem 40 anos de idade, é divorciada e mora com sua filha adolescente.  Ela é professora de Ciências em escolas, públicas e privadas, e gosta muito de sua profissão. Relata ter dificuldades em estabelecer relacionamentos saudáveis, impor limites e ser assertiva. A psicoterapia foi iniciada como estratégia para repensar suas atitudes e, consequentemente, melhorar suas relações, as quais tem lhe gerado desconforto e angústias.

Busca ilusória

As relações interpessoais podem ser definidas, objetivamente, como um tipo de relação entre duas ou mais pessoas, podendo ocorrer em ambientes específicos, como a escola, o trabalho ou mesmo dentro da família. As relações, no sentido amplo da palavra, podem ocorrer de várias formas e possibilitar sentidos diversos. Em muitos casos se relacionar é um desafio, como no caso de Patrícia que precisava manter um tipo de relação com seu ex-companheiro em função da criação e educação de sua filha de 12 anos de idade.

Novas formas de amar e se relacionar impõem desafios para as relações humanas. Na sociedade contemporânea, os laços relacionais podem ser menos duradouros, sendo efêmeros diante um conflito qualquer. Bauman (2004) ressalta sobre a fluidez dos relacionamentos contemporâneos, que são permeados pela incerteza e insegurança, podendo ser, inclusive, descartáveis.

Nas relações humanas, a busca pela autorrealização tem sido um objetivo constante, o que leva as pessoas a se fecharem e evitarem os relacionamentos. A vontade de prosperar, ganhar, lucrar e conquistar bens materiais provoca uma excessiva preocupação com a autorrealização material, que pode ser um sinal da frustração existencial da vontade de sentido (Zamulak, 2015). A vontade de sentido é o meio pelo qual o ser humano realoca valores e encontra seu sentido de vida, objetivo principal de toda existência humana. Infelizmente a ideia de que manter relações é mais perigoso do que se fechar é o que vigora. Entretanto, na verdade, quanto mais aberto à experiência de interação com o outro, mais saudável o ser humano será (Zamulak, 2015).

Olhar e se relacionar com o outro pode nos levar a uma conexão genuína com nossa própria humanidade. Lukas (1993) afirma que o ser humano não consegue se encontrar quando busca somente a si mesmo. Ao contrário, é no encontro com o outro e no olhar para além de si que ele se encontra e encontra sentidos e significados para viver. A busca por realizar valores é a direção para o encontro com o sentido da existência. Infelizmente, em nossa sociedade atual ter vantagem em tudo faz parte dos esforços do que se considera valer a pena. A necessidade de estar sempre em vantagem provoca o seguinte questionamento humano: O que eu ganho com isso? (Lukas, 2006). Distante de nossos valores, as respostas que encontramos para questionamentos como este são inautênticas e nos isentam de nossa responsabilidade perante a existência. Para Viktor E. Frankl, fundador da Logoterapia e Análise Existencial ou Psicoterapia do Sentido de Vida, um caminho para suplantar esta falta de encontro existencial com o sentido de vida seria a autotranscendência.

 O que é autotranscendência?

Frankl, em suas obras, traça um debate entre o sentido da vida e a autotranscendência. O sentido, em suas palavras, pode ser realizado ‘’através da concretização de valores, os quais são divididos em três: criativos, vivências e de atitude’’ (LEONCIO, 2021, p. 24). Nós seres humanos somos responsáveis e conscientes para decidir frente às situações que podem surgir em nossas vidas escolhendo os valores que iremos basear nossa existência.

 Tomando o caso de Patrícia como exemplo, podemos observar que em relação ao movimento de autotranscendência, ela ‘’aponta e se dirige para algo ou alguém diferente de si mesmo’’ (FRANKL, 1985, p. 75) nos momentos em que ela fala sobre sua relação com a filha adolescente ou com seu trabalho. Ela parece apostar nos valores vivenciais e de criação para as atividades que envolvem seu trabalho nas escolas. Com brilho nos olhos, ela fala o quanto ama lecionar e estar em sala de aula, indicando como seu trabalho é a base para sua vivência de valores e encontro de sentido de vida.

Entretanto, ela parece não ter consciência dos caminhos valorativos que adota, precisando mediação para perceber sua potência de autotranscendência. Para isso, foi utilizado o método logoterapêutico da Derreflexão para que Patrícia conseguisse esquecer-se de si própria e autotranscender-se em direção ao bem-estar de sua filha e a realização pelo trabalho. A Derreflexão é uma técnica na qual a atenção e a intenção do paciente são deslocadas para outro foco em seu contexto de vida (Frankl, 1985).

Por meio desta técnica, Patrícia passou a se envolver, mais ativamente, em um processo de autotranscendência que a diferenciava do ex-companheiro, o que a ajudou na construção de vínculos autênticos com sua filha e outras pessoas ao redor dela. À medida que ela reconhece o que é próprio e o que é alheio a ela, Patrícia se envereda numa trajetória autotranscendente para um encontro mais autêntico com seu sentido de vida: sua filha e seu trabalho.

O encontro não é só com o outro, já que, conforme Patrícia se dirigia a alguém com o intuito de percebê-lo, ela também se reconhecia e se afetava. Essa afetação tem impactos sobre Patrícia, que passa a se mover internamente na direção do que ela passa a reconhecer como importante para sua vida. No caso de Patrícia, ela passa a reconhecer a importância de investir na relação com o ex-companheiro pelo amor que sentia pela filha. Assim, Patrícia é afetada pelo sentido do amor e convidada à entrega, à ação e, consequentemente, à realização de sentido.

Psicoterapia centrada no sentido

A psicoterapia centrada no sentido é como se define a Logoterapia de Viktor Frankl. Nesse tipo de terapia, é importante que o paciente seja capaz de olhar para além de si mesmo, pois, afinal de contas, ele é o único capaz de refletir e pensar sobre seus atos. Através dessa reflexão, é possível analisar e avaliar suas ações tanto as já realizadas como as por realizar a fim de se decidir se deseja mudar suas atitudes ou não. Para Frankl (1985), somos livres para escolher como iremos nos posicionar em cada oportunidade que a vida nos proporciona e será isso o início da autotranscendência (FRANKL, 1985).

 Nossos caminhos só terão êxito quando algo estiver à nossa frente para nos guiar e pode ser uma missão (LUKAS, 2006). Ter ou perceber que há algo para alcançar ou alguém para amar será o caminho. Segundo as palavras profundas de Frankl (2000-1982): “O sentido é o marca-passo da existência”! Com isso, a direção existencial que tomamos é muito importante e a nossa bússola será os valores, criativos, atitudinais ou vivenciais. Os valores nos guiarão e nos conduzirão a escolhas mais assertivas e autênticas.

Patrícia conseguiu refletir sobre suas formas de se relacionar com o outro, escolheu modificar esses modos e, dessa forma, passou a se posicionar nessas relações como um meio para ser mais assertiva, ser ouvida e expor como se sentia nas suas relações com o outro. Seu movimento de autotranscendência a levou a autorrealização, ainda que esse não fosse o objetivo principal. Ela passou a conseguir compreender melhor seus comportamentos e, assim, buscar mudá-los. Pelo outro, sua filha, e por si mesma, Patrícia também passou a ser mais empática com ela e com as pessoas.

E MAIS…

Aprendendo com o bumerangue

Frankl (2005, p. 47) afirma que a própria existência é desfigurada quando a autotranscendência é negada. O ser humano é reduzido a um mera coisa e sua existência é materializada. Essa declaração confirma que a autotranscendência faz parte da essência do ser humano. Como afirma Frankl (2016): “Ser homem significa ir ao encontro de alguma coisa ou de alguém. É dedicar-se a uma obra, entregar-se por amor a uma pessoa’’.

Resgatando a metáfora do bumerangue, que só volta ao caçador que o atirou quando seu alvo não é atingido, propomos refletir que o homem só se volta para si, com foco nas suas preocupações, desejos e anseios, quando falha na busca por sentido. Não alcançar seus objetivos faz com que o homem busque se desafiar. Assim, ele não pode ser ele próprio em sua totalidade e plenitude. Afinal, como dizia Frankl (1991) um olho só pode cumprir sua missão de ver o mundo enquanto não vê a si próprio.

Referências:
BAUMAN, Z. (2004). Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
FRANKL, V. E. (1985). Em busca de sentido (W. Schlupp, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.
FRANKL, V. E. (1991). A psicoterapia na prática. Campinas: Papirus.
Frankl, V. E. (2000), En el pricipio era el sentido: Reflexiones en torno al ser humano. (H. P. Minguijón, Trad.) Barcelona: Paidos (Originalmente publicado em 1982).
FRANKL, V. E. (2005). Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Aparecida: Ideias e Letras.
FRANKL, V. E. (2016). Psicoterapia e sentido da vida 6ªed. São Paulo: Quadrante.
LUKAS, E. (1993). Mentalização e saúde: a arte de viver e Logoterapia, 2 ed. Petrópolis , RJ: Vozes.
LUKAS, E. (2006). Psicologia espiritual – fontes de uma vida plena de sentido, 2 ed. São Paulo: Paulus.
LEONCIO, A. Logoterapia e autotranscendência: cenários que permitem o protagonismo frente à própria existência.Rev. NUFEN,  Belém,  v. 13, n. 3, p. 23-34, dez.  2021.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912021000300004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em:  02  mar.  2022.
ZAMULAK, J. (2015). Autotranscendência: caminho para superação do individualismo. Logos & Existência – Revista da Associação Brasileira de Logoterapia e Análise Existencial 4 (2), 130-142.