“Vivi num mundo de homens guardando em mim o melhor da
minha feminilidade.” (Simone de Beauvoir)
A Função Feminina não está relacionada ao sexo ou ao gênero. Ao nos referirmos à criação do feminino, estamos nos referindo à constituição do sujeito psíquico. Para Klein (1932), os bebês, sejam meninos ou meninas, desde o nascimento, estabelecem um vínculo de muita proximidade e amor com a mãe. Nesse processo, estrutura-se psiquicamente uma fase de desenvolvimento, que Klein chama de feminina, independentemente do sexo.
Para Winnicott (1975), o estudo do elemento feminino, puro, destilado e não- contaminado nos conduz ao Ser, constituindo-se como a única base para a autodescoberta e o sentimento de existir, para, em seguida, adquirir a capacidade de desenvolver um interior, de ser um continente, de ter a condição de utilizar os mecanismos de projeção e introjeção na sua relação com o mundo.
Portanto, o conceito de feminino de Klein, assim como o de Winnicott, está presente nas relações objetais iniciais e será a essência de futuras identificações. Para Winnicott o elemento feminino puro relaciona-se com o seio (ou com a mãe) no sentido de o bebê tornar-se o seio (ou a mãe) – o objeto é o sujeito – ou seja, está ancorado no Ser, enquanto resultante da experiência emocional da dupla. O elemento masculino puro, por sua vez, denota uma capacidade de diferenciação fundada sobre uma separação, em uma diferenciação, bem como no desenvolvimento egóico. O elemento masculino é o Fazer, ao passo que o elemento feminino é o Ser, em homens e mulheres. O viver criativo está associado à união dos elementos feminino e masculino, correspondendo a junção da capacidade de Ser e Fazer.
Por outro lado, o feminino, assim como a sua função, muitas vezes, é visto e internalizado sob a tutela da incompletude, até mesmo pelas próprias mulheres, significando a espera, a postergação e, principalmente, a ausência do feminino como espaço interno. Sob esse ângulo, o feminino é rejeitado e temido, porque não foi internalizado positivamente, como espaço interno com potencial receptivo ativo e sim como falta. Ao recusar o feminino no humano perde-se a mediação que permeia a incompletude, gerando nas mulheres, muitas vezes, uma ferida narcísica pela crença difundida de que o feminino está associado à submissão, à desvalia e, com esse sentimento, não se sentem autorizadas a viver. Simultaneamente o masculino torna-se almejado pela fantasia de ser completo e acabado, favorecendo o falocentrismo.
Processo de subjetivação
Ao dizer “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, Simone de Beauvoir refere-se ao processo de subjetivação que institui a feminilidade na mulher, sendo a sexualidade uma parte importante dessa estruturação. A feminilidade está relacionada ao se tornar mulher e feminina, num entrelaçado entre o biológico e o cultural.
É importante lembrar que a aceitação do feminino fundante é aquela que abre o espaço para a criatividade. Segundo Alizade (2008, p.157): “A mulher, ao se desprender do poder fálico imaginário, dá margem para o surgimento do feminino estrutural”.
Outro fator importante na constituição do Feminino, é a bissexualidade psíquica primária, que se constitui na relação primitiva com a mãe. A mãe, disponível e aberta para a escuta de tudo o que vier da criança, a mãe capaz de “rêverie”, de continência para os sentimentos, angústias e desejos da criança, ajudará a nomeá-los e a explorar seus significados. Ela é, assim, o objeto favorecedor por excelência para a criança poder constituir sua capacidade de conter seus próprios recursos psíquicos.
Haudenschild (2008, p.76) menciona que: “[…] a apreensão da bissexualidade psíquica materna: a apreensão do valor que a mãe dá a todos os seres humanos masculinos e femininos é […] a partir de um ‘bom coito parental’ interno e de uma realização deste em sua vida real”. Em outras palavras, a identidade sexual da criança vai se organizando, tendo, como referência inicial, a presença empática e verdadeiramente presente na percepção do feminino ou masculino. Quando um dos elementos do casal parental tem dúvidas e desconfortos em relação a sexualidade do outro, ou uma desvalia recíproca, a criança apreende esse descompasso, esse desajuste, essa não integração da heterossexualidade.
Essa percepção influenciará negativamente no desenvolvimento da bissexualidade psíquica primária e no posterior estabelecimento da bissexualidade psíquica secundária, decorrente da apreensão de um casal parental que não vive uma relação de parceria, ao contrário, um casal em permanente luta e fuga. Ainda para Haudenschild (2008), “a bissexualidade psíquica secundária origina-se na bissexualidade psíquica primária, iniciada por meio da percepção da criança de que sua mãe tem um “outro” olhar, diferente do materno que lhe é dedicado, para um “outro” objeto: o pai. É essa absorção do feminino primário pela criança que marca sua sexualidade”.
Elaboração edípica
Um aspecto importante é a elaboração edípica nas fibromiálgicas. Destaco o trabalho de Marilia Aisenstein (2017), intitulado “Os deuses não conhecem o cansaço; os heróis, às vezes, mas as heroínas, nunca“, onde a psicanalista refere-se à questão da resistência dessas mulheres ao cansaço e à dor e ao quanto são exigentes e superegóicas, associando esses fatores, entre outros, ao complexo de Édipo feminino, citando as palavras de Julia Kristeva:
[…] a menina se desvia de seu primeiro objeto de amor (a mãe) para escolher o pai, ao qual precisará renunciar eroticamente para apropriar-se dele por identificação (Freud descrevia esse movimento somente no menino). Creio que na menina seja um movimento muito importante, uma vez que essa identificação a coloca ao lado da ação, do simbólico. (2011, p. 50)
Parece-me que Julia Kristeva compreende o Édipo duplo como um fator que conduz à intensificação da bissexualidade psíquica feminina, para as quais o Édipo primário é duplicado pelo Édipo duplo ou biface. Além disso, o superego feminino é arduamente constituído. O pai é o objeto sedutor, mas, ao mesmo tempo, é o portador da lei. Trata-se de um superego mais complexo que o masculino sendo dissolvido pelo amor ao pai. Na concepção dessas psicanalistas, o aspecto masculino, da ação, da cobrança superegóica fica reforçada nas fibromiálgiacas pela forma como vivenciaram essa fase edípica.
Tipo de mãe dependente
Marina Papageorgiou (2017, p. 66), psicanalista especialista nessas pacientes, apresenta outro fator importante na constituição das mulheres fibromiálgicas quando descreve uma configuração particular central nas suas histórias: durante a infância, ocuparam a função de criança terapeuta junto à mãe. Trata-se de um tipo de mãe dependente fisicamente, mas descrita como corajosa, insubmissa e hiperativa, muito exigente e perfeccionista. Essas mulheres sentiram-se, na infância, moral e fisicamente, responsáveis pela integridade psíquica e física de suas mães.
Levando em consideração as ideias teóricas sugeridas, procuro apresentar e justificar a hipótese de que vários fatores, presentes no desenvolvimento egóico da menina, geram dificuldades em relação a Função Feminina, e privilegiam a Função Masculina. Estes aspectos podem estar relacionados a vivências iniciais com uma mãe não continente, pela vivência do complexo de Édipo feminino e pela visão cultural da mulher.
Desta maneira constitui-se uma organização mental que interfere na constituição da bissexualidade psíquica feminina, entendida como integração dos elementos femininos e masculinos. São mulheres cuja Função Masculina fica exacerbada, apresentando-se como pessoas hiperativas e em constante luta para provar que estão certas, e, por outro lado, a Função Feminina fica deficitária.
Mulheres operatórias e fálicas
Por fim, pode-se considerar que seja essa motilidade e hiperatividade que levam à resistência feminina, observada principalmente nas fibromiálgicas, na força de trabalho. Na aparente condição de serem incansáveis e suportar toda dor e todo o cansaço, sabem tomar decisões e alcançam cargos de comando, mas, ao mesmo tempo, mostram-se muito inseguras e desamparadas, são fortes e frágeis. São mulheres operatórias, fálicas, que não descansam e que parecem fazer da fadiga uma tensão dolorosa, que funciona como investimento da excessiva excitação sexual somática para a permanente ação. A resistência para o cansaço e a fadiga ficam associados ao masoquismo, que na concepção de Benno Rosenberg, pode ser o “masoquismo guardião da vida”, ou masoquismo mortífero.
A qualidade do “masoquismo guardião da vida” é a de ter a dimensão existencial de manutenção e investimento na vida, mesmo quando ela se torna insuportável. De acordo com a teoria de Benno Rosenberg (2003) sobre o masoquismo originário, é possível pensar que o investimento da tensão dolorosa é “mais fácil” ou “comum” entre as mulheres. É admissível, nesse sentido, pensar a fadiga como uma tensão dolorosa, portanto, a possibilidade de investir na fadiga, sem visar a evacuá-la. Logo, são mulheres mais resistentes à dor e ao desconforto, mas… é fundamental que não ocorra uma desmedida e a fibromialgia é uma somatização associada a um excesso de masoquismo, nesse sentido, ao masoquismo mortífero.
O “Masoquismo Guardião da Vida” (2003) define-se, em sua própria especificidade, por uma intrincação pulsional (pulsão de vida e pulsão de morte). A intrincação ou mistura pulsional é a erotização da destrutividade decorrente da pulsão de morte e, portanto, do desprazer que acompanha essa destrutividade, essência do masoquismo. Benno Rosenberg considera a intrincação ou mistura das pulsões como algo equivalente à noção de masoquismo, o que o leva a falar da “dimensão masoquista da existência “. Já o “Masoquismo Mortífero” ocorre quando o sujeito investe todo sofrimento, toda dor, tudo, no território do desprazer. É um bloqueio, pelo masoquismo mortífero, da pulsão de vida, normalmente centrada na satisfação objetal. A introdução maciça do sadismo é um sinal que o masoquismo se transformou em mortífero.
A Somatização no caso da Fibromialgia
É uma alternativa para se lidar com a dor da perda ou experiência traumática, em que o funcionamento psíquico fica apagado e é impossível qualquer tipo de elaboração psíquica. Na ausência da mente, o corpo se oferece com o intuito de manter uma mínima organização que permita a sobrevivência mental. Geralmente, as dores de uma crise fibromiálgica surgem logo após um acontecimento traumático que marca uma mudança na vida. Diz respeito a um luto, especialmente materno, a uma ruptura afetiva, a um fracasso sentimental ou profissional. O início das crises situa-se, em geral, depois dos quarenta anos.
Como precocemente precisam assumir responsabilidades acima de suas capacidades, ficam em uma hiperatividade desmesurada e automática, sem respeitar seus limites. É necessário que saiam do aprisionamento em que se veem colocadas pela vida uma vez que, o que era, no começo, uma defesa inicial, passa a ser estilo de vida. Incorporam uma obrigatoriedade de um trabalho sem fim, com um olhar superegóico consigo mesma e com os seus, permanece em uma impossibilidade de que seus aspectos de Função Feminina, mais amorosos e de abertura para o outro possam aparecer.
Faz -se necessário desenvolver um trabalho de transformação na obtenção de um espaço interno com potencial “receptivo ativo”, que é uma característica da Função Feminina, no lugar de se ocupar predominantemente da ação. Conseguindo assim, viver de uma forma mais verdadeira, com menos cansaço e menos dor, e, aos poucos, despedindo-se do (di)lema das fibromiálgicas.