ESTUDO DE CASO

Ágatha é uma mulher cis de 23 anos, que se autodeclara negra, vegetariana e bissexual. Em psicoterapia individual baseada na Logoterapia e Análise Existencial (LAE), ela indica que sua demanda clínica para terapia seria os conflitos relativos ao seu autodiagnóstico de transtorno alimentar.

Ela se identifica com Anorexia nervosa. Além disso, Ágatha relata várias experiências de violências (sexuais, institucionais e bullyings na escola) e que tem expectativas de que a terapia lhe ajude com suas prioridades pessoais e profissionais, como mudar de casa e se formar na faculdade, respectivamente.

Força motriz da vida

Somos guiados por uma pergunta que nunca se cala: Qual é o sentido da minha vida? Esta é uma pergunta que ninguém pode responder por nós, uma vez que o sentido é individual, singular, único, irrepetível e insubstituível, ou seja, cada pessoa tem a responsabilidade de encontrar o seu sentido de vida.

Por isso, Frankl (2011) diz que o sentido de vida difere, primeiramente, de pessoa para pessoa e, depois, de dia para dia ou mesmo de hora a hora, tornando o homem único, tanto em termos de sua essência como de sua existência. Levando em consideração a exclusividade e a especificidade do sentido de vida, podemos dizer que a vontade de sentido para cada pessoa só pode ser satisfeita quando, individualmente, ela busca, descobre e cumpre o seu próprio sentido de vida.

Como encontrar esse sentido?

O sentido de vida pode ser encontrado a partir de três formas: no trabalho criativo, no amor a outro ser humano e no sofrimento.

Estas formas refletem também as três principais vias de experiência para acesso ao sentido de vida, pelos:

1) valores de criação, que dizem respeito ao que o homem dá ao mundo, sob a forma de suas criações;

2) valores de experiência, que se referem ao que o homem recebe do mundo, em termos dos encontros e experiências que vivencia; e

3) valores de atitude, que compreendem à atitude que se toma diante da vida quando se enfrenta um destino imutável ou uma situação de sofrimento inevitável.

Tensões inerentes

A busca pelo sentido da nossa vida não é uma jornada que ocorre sem tensão ou em meio a um “mar de rosas”. Pelo contrário, buscar sentido de vida causa tensão interior, mas essa tensão é benéfica para nossa saúde mental, pois graças a ela, conseguimos perceber o que já alcançamos e o que deveríamos alcançar.

Assim somos capazes de enxergar o hiato entre o que somos e o que deveríamos ser, ou seja a nossa realidade e os nossos ideais a serem realizados. Em última instância, a tensão nos ajuda a continuarmos em movimento em direção a pessoa que precisamos ser e a vida que desejamos viver.

Levando em consideração o processo psicoterapêutico e o encontro existencial que ele proporciona entre a pessoa com ela própria e com o terapeuta, podemos identificar estas tensões a partir das queixas e demandas que impulsionam o sujeito a buscar a psicoterapia para seu cuidado em saúde mental.

No contexto do estudo de caso apresentado, nos foi possível identificar que as queixas principais de Ágatha giravam em torno de três eixos: violências, desamparo e relação alimentação-corpo.

No primeiro eixo, ela relata ter vivido três situações distintas de assédio sexual, cada uma com um agressor diferente. Um dos agressores, inclusive, era um integrante da família com quem ela convivia diariamente. Ainda no contexto das violências, ela relata violências física e psicológica perpetradas, por exemplo, por um policial que a obrigou assistir uma cena violenta enquanto via uma arma apontada na cabeça de outra pessoa.

Ao refletir sobre essas experiências violentas com claro potencial traumático, ela também resgata da sua memória os ataques de bullyings sofridos por ela na escola, chamando atenção para um episódio no qual ela foi, literalmente, jogada numa caçamba de lixo por um grupo de colegas.

No segundo eixo, o desamparo simboliza uma solidão caracterizada pela vida itinerante da sua família, que traz consequências para sua própria vida. Sua família passa por constantes mudanças de casa, imprimindo a ela frequentes transições entre escolas, o que refletiu diretamente em seu rendimento escolar e nos vínculos de amizade: “Eu era sempre a pessoa nova na escola e isso me fazia sentir julgada e observada. Não me sentia incluída”. Este sentimento de exclusão traz marcas também para sua própria casa, cuja ausência materna em função do trabalho para o sustento familiar demanda o convívio diário com seu padrasto, que é um dos agressores indicados por ela.

No último eixo, Ágatha relata sua dificuldade em se sentir bem alimentada: “só de pensar em ganhar 1kg, eu já fico desesperada”. Então, pela via das faltas, ela passa a incorporar outras faltas: a falta de sentir fome e a atitude intencional de se privar da alimentação (“Já fiquei 3 semanas sem comer, só bebendo água e no máximo comendo amendoim”).

Relacionando estes três eixos norteadores da existência de Ágatha aparece o que Frankl (2011) chama de vazio existencial como forma de preencher as faltas de segurança, de amparo e da alimentação que sustentaria seu corpo, numa intenção, talvez inconsciente, de ser menos vulnerável aos assédios, agressões e violências.

Vazio existencial

O que nos resta quando as perguntas sobre nossa existência causam confusão e desorientação ao em vez de nos orientar e apontar um sentido? Quando a busca por sentido é frustrada, a pessoa experimenta um sentimento de vazio ou de falta de sentido, que Frankl chama de vazio existencial.

Ele é caracterizado por uma total e extrema falta de significado da vida, manifestado pela carência de um sentido pelo qual valha a pena viver. O que disto resulta é a perseguição constante pela experiência do vazio interior, exteriorizado principalmente num estado de tédio e apatia.

Assim, as consequências principais do vazio existencial são observadas em atitudes de totalitarismo, que consistem em fazer o que os outros querem que você faça, e a do conformismo, que diz respeito a reproduzir o que as pessoas fazem.

No caso de Ágatha, a força motriz que a sustenta no seu processo psicoterapêutico é justamente a vontade de superar esse vazio existencial. Esse vazio em Ágata é marcado pelo acúmulo de dores que não só preenchem o seu corpo, mas também paralisam seu discurso e dificultam ela nomear suas vontades, desejos e até mesmo perspectivas futuras. Entretanto, ela aparenta não cair no totalitarismo, tampouco no conformismo, já que suprime seus próprios desejos com receio de ser julgada ou atrapalhar o outro.

Com isso, ela deixa de expressar seus sentimentos por considerar que suas expectativas em relação às pessoas são impróprias e indevidas. No seu discurso, “Quem está incomodada ou errada sou eu, porque eu devo falar para os outros se é uma questão minha?”, percebe-se que ela não faz e nem reproduz ações direcionadas ao outro. Melhor se omitir já que não irá receber o que deseja do outro. Do outro ela espera amor, acolhimento, inclusão, sentir-se importante e não descartada.

No entanto, pelas violências sofridas e o desamparo familiar narrado, o que lhe sobra é uma autoestima construída pela via da falta: falta de ser alguém valiosa, bonita, inteligente e/ou admirável. Assim, suas expectativas frustradas por não receber do outro o amparo desejado encerram a possibilidade de ter ou ser alguma coisa positiva para si ou para o outro. Como resultado desse desamparo e das constantes violências, ela não só deixa de acreditar em coisas boas, mas também atribui a si a responsabilidade pelas coisas ruins que acontecem na sua vida e na vida das pessoas ao seu redor.

Neste esvaziamento de sentido, a vida que escapa dá vazão ao que poderíamos chamar de sentimentalismo, isto é, um sentir sem sentido como se o rumo ou o caminho dela se direcionasse a uma rua sem saída, ao desatino. Como resposta a isso, Ágatha desenvolve algumas estratégias a fim de localizar, controlar e redirecionar este sofrimento: a reprodução das violências em seu corpo  e a reconstrução de suas relações e seu ser no mundo.

Frente ao sofrimento

Este esvaziamento de sentido, produzido por esse tanto sentir dor, possibilitou a paciente explorar no corpo formas de localizar, nomear e dimensionar seu  sofrimento.  Isso significa que o fio condutor de sua existência tem sido direcionada no sentido de sobreviver a tudo que lhe aconteceu. Assim, as novas possibilidades de vida, inclusive suas potências, se ofuscam frente ao vazio que não só se preenche por dores,  mas que também é responsável por ancorar em Agatha, a crença de uma identidade reduzida e fixa: sofredora e vítima.

Então, para ela o sentido da sua vida encarna nos sentidos do seu corpo: tato, olfato, audição, visão e paladar. Dessa forma, ao tatear o vazio pelo corpo, ela pôde compreender melhor sobre si e sobre suas próprias dores. Neste processo, o fio condutor consistiu no seguinte questionamento: Como explorar esse mundo que, primeiro, me desampara, e, depois, quando me vê, me joga no lixo?

Em busca de respostas, sua vontade de sentido se direciona para o reconhecimento desses sentidos no corpo. Parece assolar seu corpo um entorpecimento que não a faz sentir o cheiro da própria fome. Mas, como silenciar essas vozes que a dizem que se ela comer ficará gorda? Onde está a beleza deste corpo que ela não vê refletida no espelho? Diante desta poluição sensorial, as estratégias possíveis encontradas por ela se orientaram, a princípio, na tentativa de controlar e organizar essas dores pela via da reprodução das violências na própria pele usando da automutilação e até mesmo a privação alimentar.

Portanto, neste primeiro momento, estes comportamentos revelam seu desejo de não romper com um dos únicos adjetivos recebidos por ela de outras pessoas, que associam sua forma magra ao padrão de beleza. Por outro lado, ela manifesta o desejo de ruptura com os assédios sexuais vividos, já que considera que ficar magra poderia lhe garantir proteção frente às investidas masculinas e suas consequentes violências.

Apesar de expressar essas estratégias enquanto formas de re(agir), ela percebe, todavia, que estes escapismos também consistem em comportamentos violentos, no caso, autoinduzidos. É frente a este dilema que seu processo terapêutico evolui num salto entre o transitar pelos sintomas do seu corpo biológico e da sua dimensão psíquica ao campo espiritual.

Segundo Frankl (2019), no plano noético o ser humano constrói suas relações no mundo presente por meio de uma ação criativa contemplada por valores e sentidos concretos, sobretudo a pelo reconhecimento da liberdade, responsabilidade e consciência de si. Ao tomar consciência deste agir “destrutivo” no seu corpo, Ágatha se vê livre para direcionar suas dores em movimentos propulsores de vida, de vontade e principalmente de sentido. Isso pode ser visto por meio do valor atitudinal, que a permitiu deixar de ignorar os sofrimentos, entendendo-os como experiência de situação e não legitimação de identidade.

Isto é, ao reconhecer e admitir os eventos vividos é possível pensar outras formas de vida apesar do sofrimento inevitável. Isso porque ele se constitui somente enquanto uma parte da sua vida, não demarcando, portanto, toda sua existência ou traçando todo seu destino. Por isso é importante se questionar sobre o que é possível fazer com aquilo que te acontece, afinal esta mola propulsora oportuniza construir diariamente novas relações consigo e com o mundo

E MAIS…

Processo logoterapêutico

No processo logoterapêutico, muitas perguntas são possíveis: O que eu posso fazer apesar disto tudo que eu vivi? Como as tensões podem me ajudar a construir outras formas de me relacionar com o mundo e, sobretudo, comigo mesmo? Apesar de não carregarmos todas as respostas, a disposição em nos questionarmos constantemente pode ser uma forma de nos direcionar frente às vontades e as realizações de sentido.

E é aqui que reside a dimensão criativa do ser humano: reinventar-se a todo instante. Dessa forma, aliando-se ao valor atitudinal supracitado, podemos observar os valores criativos e experienciais de Ágatha, presentes no trabalho como ocupação, na distração das vozes e na importância atribuída aos momentos de lazer com os amigos, familiares e até consigo mesma quando assistia sozinha séries, filmes e músicas.

Levando em consideração a liberdade de ser aquilo que quiser, Ágatha se deu conta da responsabilidade de cuidar, proteger e nutrir o seu corpo. Para lidar com seu sonho de mudar de casa, por exemplo, teve que admitir a violência vivida com o padrasto e a responsabilização dele como seu agressor, ao invés de negar a situação como forma de obter a companhia e amparo de alguém.

Ainda que no recorte deste estudo de caso não se possa captar amplamente as especificidades do processo psicoterapêutico, destacamos que todo processo desta natureza se constrói gradualmente na instabilidade e pelos encontros e desencontros com os sentidos, tanto da paciente como do terapeuta. Logo, o equilíbrio não é linear e por isso fundamental respeitar o seu percurso.

Referências:
Frankl, V. E. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da Logoterapia. São Paulo: Paulus, 2011
 Frankl, V. E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração / Viktor E.Frankl. Traduzido por Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 47. Ed. – São Leopoldo: Sinodal ; Petrópolis: Vozes, 2019.
Frankl, V. E.   O sofrimento humano: fundamentos antropológicos da psicoterapia. São Paulo: É Realizações, 2019