ESTUDO DE CASO

Vou contar uma história rápida. Lúcio tinha 33 anos. Passou sua vida adulta focado em seu trabalho, pois acreditava que ter um bom emprego era a chave do sucesso. Todo o resto seguiria a reboque: um bom casamento, família, filhos. Lúcio chegou a se questionar algumas vezes se era isto o que realmente era viver. Não tinha muitos amigos, não saía, não gostava de música, nem de arte. Fazia esportes, pois isto era importante para o bom rendimento no trabalho, mas também não gostava disto tanto assim. Era mais uma tarefa para conseguir alcançar o que pensava ser importante. Seu pai, já falecido, sempre falava que o trabalho enobrecia o homem. Sua mãe, por sua vez, extremamente rígida e religiosa, dizia que Lúcio precisava se casar com uma mulher e ter uma família para ser feliz; e o que as mulheres realmente buscavam em um casamento era estabilidade e segurança financeira. Isto era o mais importante.

Pois bem, este é o Lúcio. É esta a pessoa com quem encontro, no meu consultório, agora virtual, com diagnóstico de depressão. Olhar cabisbaixo, corpo desistindo, voz trêmula, extremamente magro, sem entender ao certo o que estava acontecendo, Lúcio me conta que, no início do ano, simplesmente acordou como habitualmente, mas não conseguiu se levantar. Um peso maior que o mundo prendia seu corpo na cama. Se sentia seco por dentro, como um deserto no qual o chão racha de tanta aridez. E lágrimas, há muito tempo escondidas dentro de si, jorravam dos seus olhos sem controle, contrastando com a secura interna. Ou quem sabe, talvez, as águas que fluíam dos seus olhos eram justamente para trazer um pouco de fertilidade para aquele espaço interno que já parecia morto.

Aventura da vida

Usei esse caso para chamar atenção para a importância das emoções em nossas vidas. São elas que dão movimento, sabor e colorido ao nosso dia a dia. As emoções são comparáveis com o vento: nos levam rapidamente ao nosso destino ou nos afastam e tornam difícil a chegada quando sopram em direção contrária. Podem ser agradáveis, como uma brisa fresca na beira do mar em um dia quente, ou desagradáveis como uma rajada de ar congelante em um dia já frio. Uma vida na qual se experiencia poucas emoções, se torna algo sem brilho e sem sentido. Por sua vez, uma vida de intensidades emocionais descontroláveis, pode se tornar uma tormenta. Uma existência na qual as emoções nos informam sobre aquilo que necessitamos e sobre o que é importante ser observado em determinado momento, é uma aventura na qual momentos de satisfação podem se intercalar com outros de extrema dificuldade (Melo, Mendes & Baldiserotto, 2019). Mas é assim que a vida é. Nem sempre é um mar de rosas, nem sempre é o Inferno de Dante.          

As emoções fornecem qualidade ao nosso dia a dia e faz com que desejemos nos aproximar daquilo que nos agrada. E nos afasta daquilo que pode causar dor ou trazer infortúnio. Buscar as emoções que as afetam de forma prazerosa e se afastar daquelas que trazem sofrimento é o motivo básico pelo qual as pessoas procuram auxílio nos profissionais da Psicologia. Seres humanos, porém, não buscam apenas se afastar da dor e sentir prazer. Muito além disto, buscamos construir significado e sentido em nossas vidas. Podemos suportar dificuldades para obter aquilo que desejamos, adiando o prazer momentâneo, além de não ficarmos presos em um hedonismo sem fim e que nos impeça de entrar em contato com o que realmente é significativo. Isto faz com que a presença das emoções transforme a existência humana em um universo cheio de significados particulares (Mendes & Pereira, 2018).

Estímulos específicos

Diante de determinadas situações, temos respostas rapidamente ativadas pelas nossas emoções que chamam a nossa a atenção para o que está acontecendo no momento. O pano de fundo desta mudança em nossos corpos é um conjunto complexo de reações químicas e neurais que formam um padrão diferente daquele habitual. Assim, somos levados a reagir diante de estímulos específicos, pois as emoções indicam que algo importante acontece e necessita ser observado, e também que mudanças no organismo ou na sua relação com o ambiente podem ser necessárias para lidar melhor com a situação (Mendes & Pereira, 2018).

Mesmo quando as emoções são desconfortáveis, elas podem ser extremamente importantes, como no caso do medo que nos leva a ter maior atenção, a ficar mais vigilantes e a buscar auxílio ou nos afastar do perigo. Particularmente, o uso de termos como positivo e negativo não é muito adequado para se falar de emoções. Mesmo uma emoção “positiva”, como a alegria, pode ser fora do contexto e mais nos atrapalhar do que ajudar. Imagine que você está em um velório e começa a rir de forma descontrolada? Não vai pegar bem. Talvez, o melhor seja pensarmos mesmo em emoções adaptativas, que nos ajudam a entender o que está acontecendo, e emoções desadaptativas, que acabam mais nos atrapalhando que auxiliando.

Vejam o exemplo da tristeza. É uma emoção difícil, dolorosa e, para muitos, “negativa”. A dor da tristeza é mesmo física. O corpo parece que vai partir. Sentimos tristeza quando perdemos algo importante para nós. E nossa reação é chorar, parar para refletir. O choro sentido comunica aos outros, e a nós mesmos, que necessitamos de conexão afetiva, de suporte e carinho e de que algo muito significativo para nós está se esvaindo, está sendo perdido. Neste sentido, a tristeza ajuda a repensar as atitudes, a forma de estar no mundo e os valores pessoais. Então, mesmo sendo uma emoção difícil, ela pode ser adaptativa.

Lembram do Lúcio?

A dor de Lúcio era forte. Seu peito era rasgado por uma angústia que era sentida por ele como uma ferida aberta, que reagia com extrema sensibilidade a qualquer estímulo. Na terapia, Lúcio foi podendo entender que, por mais dolorosa que fosse, esta tristeza avassaladora precisava ser aceita e observada. Afinal, foram anos escondendo de si mesmo que não gostava de mulheres para se relacionar sexualmente e que o sucesso no trabalho já não era suficiente para guiar a sua vida. Então, a tristeza era uma parte de Lúcio, falando para ele mesmo o quanto de possibilidades estavam sendo desperdiçadas. Lúcio foi falando…e identificando cada afeto, cada emoção, cada pedacinho de si mesmo.

Neste desvelar das camadas de suas emoções, Lúcio foi começando a sentir raiva, especialmente das palavras de crítica que ficavam na sua cabeça e que, aos poucos, foi identificando como sendo muito semelhantes àquelas que a sua mãe falava. (Leia o quadro Figuras de apego que regulam as emoções). Esta raiva era uma emoção muito adaptativa para ele pois, afinal, a função da raiva é a de proteção, de estabelecer fronteiras e limites. Mas, Lúcio sentia um bloqueio para sentir raiva muito forte. Para piorar a situação, Lúcio havia participado de um trabalho que se dizia terapêutico, no qual o profissional que conduzia dizia que ele tinha que “honrar” o pai e a mãe e perdoá-los. E aí ele sentiu como se esta raiva fosse errada. Mas este era o processo e a ideia do profissional e não o processo emocional do Lúcio. O que Lúcio tinha era muita raiva. Não apenas dos pais, mas também de si mesmo. Lúcio tinha muita vergonha dos seus desejos sexuais, pois eles pareciam errados. Havia um desejo de ser amado muito forte que fazia com que ele buscasse se enquadrar dentro daquela moldura de filho perfeito. Na verdade, ele se sentia sujo pelos seus desejos e com medo do julgamento do outro e da rejeição. Foi difícil para ele sentir raiva pela mãe, pois também tinha muito amor por ela. Mas era preciso experienciar ambas as emoções que estavam dentro dele. Esta raiva, uma vez sentida e validada, empoderou Lúcio. E isto foi bom. Depois da tempestade de raiva, veio a calmaria do perdão. Mas foi o perdão do tempo dele e não do tempo do terapeuta. E ele perdoou a si mesmo, mas não perdoou a mãe. Pode ser que um dia ele perdoe. Pode ser que não. Este é o processo dele, e não o meu.

E assim, Lúcio foi se apropriando de si. Aceitando as suas emoções, acolhendo a si próprio, sofrendo em alguns momentos, ficando feliz em outros e criando uma relação comigo, e consigo mesmo, de segurança, de proteção e de afeto.

As emoções são o objeto de trabalho da Terapia Focada nas Emoções, que é o modelo que utilizo com os meus clientes. O Instituto Brasileiro de Terapia Focada nas Emoções (www.tfebrasil.com.br) traz em detalhes essa prática clínica e também oferece cursos e workshops para profissionais.

Neste modelo, a dor é a aliada do terapeuta. Ela é quem guia o profissional para que ele possa auxiliar a pessoa a acessar suas emoções mais centrais e, assim, transformá-las, facilitando a emergência de novos significados. Cada emoção tem sua função, necessidade específica e precisa ser acessada de maneira particular por cada pessoa, resgatando o caráter adaptativo essencial deste importante sistema de informações que possuímos.

Lúcio, segue em terapia…

E MAIS…

Figuras de apego que regulam as emoções

Como somos seres essencialmente sociais, as emoções falam muito sobre as relações que vamos estabelecendo com o mundo, com nós mesmos, com o outro, com a cultura na qual estamos inseridos. Neste sentido, os vínculos com as pessoas significativas, as chamadas figuras de apego, são importante fonte de compreensão sobre a maneira como a gente se relaciona com as nossas emoções. São nossas figuras de apego que regulam as nossas emoções quando somos pequenos, já que somos incapazes de nos regular sem o auxílio externo no início da vida (Mendes & Bruno, 2019). As figuras de apego nos ajudam a nomear as emoções, a permiti-las ou reprimi-las. Por último, acabamos internalizando os padrões ou formas de relacionar estas figuras de apego como se fossem nossas. É claro: esta internalização não precisa ter uma correspondência exata, pois os seres humanos são extremamente complexos, Mas é muito comum os filhos internalizarem a voz destas figuras, como se estas tivessem passado a serem suas. Assim, de tanto ouvir a crítica dos pais, a criança toma como sua e passa a fazer parte dela própria. Mesmo futuramente, depois de adulto, esta crítica ainda pode estar presente, até quando os pais já nem existem mais neste mundo.