Tudo foi afetado, desde as relações com o trabalho, com a família e com os amigos, que passaram a ser, na maioria das vezes, virtuais. Também a relação da pessoa com seu corpo, sua afetividade e sua alimentação foram atravessadas pelas mudanças provocadas pela pandemia. Tal como corpo e mente estão conectados, as relações afetivas e a alimentação são áreas da vida que se interligam por laços simbólicos. É comum que seja atribuído à alimentação representações simbólicas e afetivas duradouras e que direcionam modos de existir no mundo.
Memória afetiva do comer
Geralmente, a comida se associa a memórias afetivas de prazer, como a festa de aniversário em que nos lembramos do bolo e brigadeiro, o cinema em que não pode faltar a pipoca e o guaraná, e o encontro com os amigos para comer e comemorar. Com a pandemia, experimentamos uma real perda da possibilidade de construir novas memórias afetivas e a comida pode representar aquela parte que nos completa nessas perdas e no nosso vazio existencial. Sentimentos de insegurança, perda de esperança no futuro, de desconfiança das entidades públicas e políticas e até mesmo o medo de morrer dão origem a um vazio existencial, extremo e avassalador que leva a pessoa a vivenciar muitas perdas e lutos.
Pesquisa de 2013 feita no Departamento de Nutrição e Saúde do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais (Campos; Santos & Xavier, 2013) mostrou alterações nos níveis de cortisol de pessoas enlutadas, associados a padrões de restrição alimentar como formas de autoflagelo. Para algumas pessoas houve perda significativa de peso e massa muscular pelo mecanismo do cortisol, enquanto que, para outras, episódios de compulsão alimentar pela facilitação do cortisol se associou à produção de açúcares no organismo. Isso explicaria por que, em situações de estresse, muitas pessoas escolhem consumir doces, pães, refrigerantes, enquanto outras consomem massas excessivamente.
Laços simbólicos acerca da comida
Acreditando que na pandemia nossas emoções e sentimentos de luto estão implícitos, podemos nos perguntar: Será que as mudanças alimentares na pandemia ocorreriam, exclusivamente, por alterações hormonais? De certo que não, pois, afinal, as relações afetivas, nossas emoções e sentimentos, e a alimentação são conectadas por laços simbólicos, permeados por valores sócio-históricos e culturais que sustentam os padrões estéticos de uma época.
Emoções são o resultado de interações psicofisiológicas fundamentais para o organismo humano, especialmente na relação consigo próprio e com o outro. Por meio das emoções nos expressamos e existimos no mundo.
Emoções e sentimentos caminham juntos
Os seres humanos possuem seis emoções básicas: alegria, tristeza, surpresa, raiva, medo e nojo. As emoções são reações incontroláveis baseadas em respostas psicofisiológicas vivenciadas no nosso próprio corpo, envolvendo mecanismos químicos e neurais, diante de acontecimentos inesperados ou muito desejados. Por sua vez, os sentimentos se referem à interpretação da pessoa sobre suas emoções. Embora sejam definidos de forma distinta, é difícil separar emoção e sentimento, uma vez que ambos são vivenciados pela pessoa, de maneira conjunta e quase sempre interdependentes. Enquanto a emoção se baseia em respostas neuroquímicas pautadas em memórias emocionais, o sentimento é, por sua vez, uma interpretação de como a pessoa se sente frente àquela emoção. Por exemplo, podemos vivenciar a emoção de alegria por uma meta alcançada e nos sentirmos felizes com a conquista. Ora, se as emoções e sentimentos caminham juntos e as emoções são reações psicofisiólogicas frente ao estresse, podemos dizer que ambas contribuem para os efeitos da pandemia da Covid-19 sob as escolhas alimentares.
Embora a alimentação seja uma das necessidades fisiológicas básicas para a sobrevivência humana, ela toma uma posição de destaque um tanto conflituosa na relação do S er e sua existência. Necessidades fisiológicas e urgências subjetivas formam uma conexão e as escolhas alimentares são modos de subjetivação para responder a essa conexão que não estão, necessariamente, vinculadas a aspectos estritamente nutricionais. Ao sabor e à aparência, estímulos meramente sensoriais, se somam à representação social e simbólica de que a comida é um elo de relação no círculo familiar e dos amigos.
A interpretação subjetiva que a pessoa atribui à alimentação, os significados simbólicos e as memórias afetivas que determinada comida assume para a pessoa e seu grupo social são bases para suas escolhas alimentares. Logo, não se trata de cumprir somente uma necessidade fisiológica para garantir o bem estar e a saúde física, mas também uma escolha que vai mais além, porque se associa a fatores psicológicos, sociais e culturais.
Desordem alimentar e de vida
Diante de uma situação ameaçadora, disparam-se emoções geradoras de sentimentos que afetam, diretamente, nossos processos de escolhas, incluindo as escolhas alimentares. Logo, tanto os excessos para mais como para menos, ou seja, as desordens alimentares surgem neste processo de escolha permeado por emoções e sentimentos, conflitantes ou não.
Baseado numa visão multidimensional, tentaremos ensaiar algumas hipóteses para compreender a relação entre emoções, sentimentos e escolhas alimentares, tomando como base a Logoterapia e Análise Existencial de V. E. Frankl (Frankl, 1947/2005; 1997/2003). Primeiro, é importante ressaltar que decisões e escolhas envolvem a liberdade e responsabilidade do S er para se dirigir a algo, um propósito ou sentido de vida (Frankl, 2011). Nossas emoções e sentimentos compõem nossas escolhas alimentares em um processo de ser e existir em referência às tradições, inclusive alimentares. Em uma família de pessoas obesas, cujas tradições familiares de comemorações se centram na comida, pode ser difícil fazer escolhas contrárias à existência e aos laços afetivos e simbólicos unidos pela alimentação. Entretanto, na visão de Frankl o ser humano sempre terá o potencial e a liberdade da vontade para fazer novas escolhas na busca de ressignificar sua existência e vivenciar novos valores e sentidos de vida.
Tomando o princípio da liberdade de escolha de Frankl, toda pessoa é um ser fundamentalmente livre e capaz de escolher frente às situações impostas pela vida, mesmo aquelas de sofrimento inevitável (Frankl, 1946/2005; 2011). Essa liberdade de escolha se fundamenta na dimensão noética (espiritual, diferente do sentido divino ou religioso) do Ser, que ultrapassa as dimensões corporal, psíquica e os condicionantes e determinantes sociais. Vale lembrar que, para Frankl, a dimensão noética ou espiritual se refere à espiritualidade inerente a todo ser humano, ou seja, seu potencial para buscar significados para a vida e transcender sua existência material para encontrar um propósito e sentido de vida para além de si próprio.
Sempre com um sentido a ser realizado para alcançar esse propósito de vida, o Ser busca este sentido na vivência de valores, criativos, vivenciais e de atitude.
Sem isso, o que se coloca é a frustração e o vazio existencial.
Superdimensão do vazio existencial
Segundo pesquisadores do campo da Logoterapia e Análise Existencial de Frankl (Gur, 2016), o vazio existencial é o aspecto central da existência das pessoas com desordens alimentares. Percebemos na nossa vida cotidiana e na nossa prática clínica que a pandemia superdimensinou o vazio existencial humano, levando as pessoas a novos hábitos e comportamentos. O comer compulsivo é um deles e, na maioria das vezes, está relacionado às mudanças alimentares provocadas pela pandemia da Covid-19. Há poucos dias, em página do Instagram, encontramos uma pergunta mais ou menos assim: “O seu vazio tem fome de quê”. Essa pergunta parece parafrasear a música “Comida” dos Titãs, na qual em uma das estrofes principais também se observa a pergunta “Você tem fome de quê?”. Na verdade, aquela pergunta, tal como a estrofe da música, representa o vazio existencial que se cria como um abismo entre o S er antes e depois da pandemia. E você? Tem fome de quê? Já refletiu hoje sobre isso? Perceba como a resposta com certeza é muito mais complexa e profunda que apenas saciar o apetite.
O caos emocional é um banquete e tanto
A contemporaneidade tem cultivado um vazio existencial há décadas, que cada vez cresce mais nas vidas humanas. Esse vazio surge em resposta à exigência de que o S er abdique da sua liberdade de escolha para se enquadrar nos padrões de se comportar, de sentir, de existir, desviando-se, assim, do que lhe é estritamente humano: a busca pelo encontro existencial com seu sentido de vida. Notamos como as pessoas têm preenchido os vazios de suas vidas com elementos que não dão sentido pleno às suas existências. Daí, nos perguntamos: Quantos têm alimentado seu vazio existencial com a comida? Considerando que o homem é um ser que sempre decide, tal como Frankl afirma (Frankl, 2011), vale a todos se interrogarem: “Como são e estão suas escolhas alimentares?”, “Qual o valor da comida para você?”, “Que sentidos você encontra na sua relação com a comida?”. Essas são perguntas que a vida tem nos feito dia após dia, nos confrontando com nossas escolhas alimentares, carregadas de uma afetividade sustentada nas nossas emoções e sentimentos. Tudo na vida tem um sentido. Nosso comer também precisa ter. Por isso, devemos perceber nossas emoções e os sentimentos que constroem nossas memórias afetivas e relacionais com a comida para que possamos redirecionar nossas escolhas alimentares para uma vida plena de sentido, sempre! Não apenas na pandemia… o pós momento pandêmico não deixará de gerar outras crises existenciais. Elas precisam ser identificadas e vivenciadas com sentido para não fazerem um banquete com a nossa saúde emocional.