Quem já ouviu falar de Grey’s Anatomy levanta a mão! Hoje não vamos falar dessa série, mas quem assiste a mais de 20 temporadas de uma série médica acaba assistindo a outras series similares, né? A dica é Dr. House, de 2004, com 8 temporadas.

Gregory House (Hugh Laurie) é um gênio da medicina, sarcástico e extremamente cínico que trabalha no fictício hospital universitário Princeton-Plainsboro. Ele é o chefe do departamento de diagnóstico médico, onde resolve casos misteriosos que outros médicos não sabem nem por onde começar.

House é conhecido por sua mente brilhante, sua abordagem pouco convencional e sua personalidade extremamente difícil e intragável. Ele é o tipo de cara que quebra as regras, irrita todo mundo ao seu redor, mas, no fim do dia, salva vidas que ninguém mais poderia salvar. Por isso, todos desejam trabalhar com ele.

O grande foco do texto de hoje, e o que me chamou atenção em especial (além de sua personalidade), é o vício de House em Vicodin, um opioide. O vício não é apenas um detalhe da personalidade do personagem, mas uma parte importante com grande influência sobre suas decisões, seus relacionamentos e até mesmo sua capacidade de trabalhar.

Compulsão

O transtorno por uso de substâncias (TUS) é uma condição médica caracterizada pelo uso compulsivo de uma substância apesar das consequências negativas para a saúde física, mental e social. No caso de House, o Vicodin inicialmente é usado para aliviar sua dor física crônica (causada pelo infarto que sofreu na perna, o que causou uma necrose no músculo da coxa, o deixando com dor crônica e uma bengala), mas, ao longo do tempo, o uso se torna descontrolado, evoluindo para um padrão de dependência.

Somos apresentados ao vício do personagem logo no início da série e descobrimos que o uso do medicamento começa como uma forma de lidar com a dor física. No entanto, observamos que, com o tempo, o remédio não é mais usado apenas para a dor física, mas também como uma forma de escapar de suas angústias emocionais, solidão e tédio. Esse é um comportamento comum no TUS, em que a substância passa a ser usada não apenas para aliviar sintomas físicos, mas também como uma forma de automedicação para questões psicológicas.

O vício é retratado de maneira cíclica, com House tentando se recuperar, tendo recaídas, enfrentando consequências e, em alguns momentos, parecendo aceitar que o vício faz parte de quem ele é. A série não romantiza o TUS, mas mostra como ele afeta todos os aspectos da vida de House, desde sua carreira, até seus relacionamentos pessoais. Infelizmente, outros personagens parecem “passar a mão” na cabeça do protagonista, muitas vezes ignorando ou minimizando seu uso desenfreado, o que reflete a complexidade do transtorno e a dificuldade de lidar com ele tanto para o indivíduo quanto para quem está ao seu redor.

Padrão de comportamento

A dependência química, clinicamente conhecida como transtorno por uso de substâncias, é uma condição médica reconhecida pela psiquiatria e pela psicologia, caracterizada pelo uso compulsivo e descontrolado de substâncias psicoativas apesar das consequências negativas para a saúde física, mental, social e profissional do indivíduo. Esse transtorno é classificado no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, 5ª edição, texto revisado (DSM-5-TR), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria, e também na Classificação Internacional de Doenças (CID-11), da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O TUS envolve um padrão de comportamento em que o indivíduo perde o controle sobre o uso de uma substância, priorizando-a acima de outras atividades e responsabilidades. Ele pode ocorrer com diferentes tipos de substâncias, como álcool, opioides (como o Vicodin usado pelo Dr. House), cocaína, maconha, tabaco, entre outras.

Critérios diagnósticos

Para obter o diagnóstico, o indivíduo deve apresentar pelo menos dois dos seguintes critérios em um período de 12 meses:

Uso em maiores quantidades ou por mais tempo do que o planejado: a pessoa consome a substância em quantidades maiores ou por períodos mais longos do que inicialmente pretendia. Vemos esse critério quando House frequentemente excede o uso recomendado de Vicodin, tomando doses maiores do que o prescrito e por períodos prolongados. Ele justifica o uso como necessário para controlar sua dor crônica, mas claramente ultrapassa os limites médicos

Desejo persistente ou tentativas fracassadas de reduzir ou controlar o uso: o indivíduo tenta, sem sucesso, diminuir ou parar o uso da substância. Em alguns episódios, acompanhamos o protagonista em sua tentativa de parar ou reduzir o uso do medicamento, mas acaba falhando, sofrendo com sintomas de abstinência e recaindo.

Muito tempo gasto para obter, usar ou se recuperar dos efeitos da substância: a vida da pessoa passa a girar em torno da substância, consumindo grande parte de seu tempo e energia. Na série, vemos o personagem manipulando receitas médicas, mentindo para colegas e até mesmo se envolvendo em situações ilegais para garantir seu suprimento da droga.

Fissura (craving): forte desejo ou urgência em usar a substância, muitas vezes difícil de resistir. Podemos ver claramente a fissura de House pelo remédio nas inúmeras medidas e tentativas de conseguir a droga e na maneira como ele fica irritadiço, ansioso e obsessivo quando não consegue obtê-la.

Uso recorrente que interfere nas obrigações: o uso da substância prejudica o desempenho no trabalho, na escola ou em outras responsabilidades importantes. Embora House seja brilhante em seu trabalho, seu vício em Vicodin frequentemente interfere em suas responsabilidades. Ele chega atrasado, falta a reuniões e, em alguns casos, seu julgamento clínico é afetado pelo uso da droga, além de colocar sua carreira em risco ao se envolver em comportamentos ilegais para obter a substância.

Uso continuado apesar de problemas sociais ou interpessoais: a pessoa continua usando a substância mesmo quando isso causa conflitos com familiares, amigos ou colegas. O uso de Vicodin por House causa conflitos constantes com seus colegas, especialmente com a Dra. Cuddy e o Dr. Wilson. Ele também isola-se emocionalmente e prioriza a droga sobre relacionamentos pessoais, o que prejudica suas conexões com outras pessoas.

Abandono de atividades importantes: o indivíduo deixa de participar de atividades sociais, profissionais ou recreativas que antes eram importantes para ele.

Uso em situações de risco: a substância é usada em situações perigosas, como dirigir ou operar máquinas sob efeito. Vemos o personagem frequentemente usando o remédio em situações inadequadas, como durante o trabalho ou enquanto dirige. Ele também mistura a droga com álcool, aumentando os riscos à sua saúde e à sua segurança.

Tolerância: a necessidade de quantidades cada vez maiores da substância para atingir o efeito desejado ou a diminuição do efeito com o uso da mesma quantidade. O personagem desenvolve tolerância ao Vicodin, necessitando de doses cada vez maiores para obter o mesmo efeito analgésico e emocional. Isso é evidenciado pelo aumento progressivo de seu consumo ao longo da série.

Abstinência: sintomas físicos ou psicológicos desagradáveis que ocorrem quando o uso da substância é reduzido ou interrompido. Isso pode incluir ansiedade, irritabilidade, náuseas, tremores ou até mesmo crises mais graves, dependendo da substância. Quando House tenta parar de usar Vicodin, ele experimenta sintomas de abstinência, como irritabilidade, ansiedade, insônia e dores físicas.

Em inúmeras cenas ao longo da série vemos House sofrendo com o transtorno por uso de substância. O personagem que no início parecia não se importar com isso e em como isso afetava quem estava ao seu redor, passa a compreender o quão difícil é para todos, além de ser um transtorno perigoso para si mesmo.

Fatores

O desenvolvimento do TUS pode ser influenciado por uma combinação de fatores biológicos, psicológicos e sociais:

Fatores biológicos: predisposição genética, alterações nos sistemas de recompensa do cérebro (como a liberação de dopamina) e a presença de outros transtornos mentais (como depressão ou ansiedade).

Fatores psicológicos: traumas, estresse crônico, baixa autoestima ou dificuldade em lidar com emoções.

Fatores sociais: pressão social, acesso fácil à substância, ambiente familiar disfuncional ou histórico de abuso ou negligência.

Sabemos que o fator com maior influência na série é o psicológico. Embora a vida do Dr. Gregory House antes do desenvolvimento do transtorno seja explorada de forma fragmentada ao longo da série por meio de flashbacks e diálogos, conseguimos ter uma noção da pessoa que ele foi. Mesmo tendo uma personalidade difícil de lidar desde sempre, o personagem também era um músico talentoso, tocava piano e guitarra, além de praticar esportes, como corrida e basquete (o que foi gravemente afetado, pois, na condição em que sua perna se encontra, ele não consegue mais fazer exercícios físicos) e mantinha uma vida social mais ativa.

Antes do TUS, House já era uma pessoa complexa e difícil, mas o vício em Vicodin transformou sua vida de maneira profunda e, em muitos aspectos, negativa. O transtorno ampliou seus traços de personalidade mais problemáticos, levou ao isolamento emocional, prejudicou seus relacionamentos e criou um ciclo de dependência e sofrimento. A série retrata de forma realista como o transtorno por uso de substâncias pode dominar a vida de uma pessoa, mostrando que o vício é uma luta constante.

Consequências

O TUS pode ter consequências devastadoras em várias áreas da vida, como na: saúde física (com danos ao fígado, coração, pulmões e cérebro, além do risco de overdose e morte); saúde mental (com o desenvolvimento ou agravamento de transtornos como depressão, ansiedade e outros); vida social e familiar (com conflitos, isolamento e perda de relacionamentos); vida profissional (com queda no desempenho, absenteísmo e perda de emprego); problemas com a lei (devido ao uso ou tráfico de substâncias) e dificuldades financeiras.

O tratamento de pacientes com TUS é multifacetado e deve ser individualizado, podendo incluir: desintoxicação, terapia comportamental, medicamentos, grupos de apoio, apoio social e familiar.

Dicas de livros

Embora a série seja interessante de assistir pelos casos fora do comum e pelas soluções completamente fora do padrão, como estudantes de psicologia, também somos convidados a observar os padrões de comportamentos e transtornos de personagens (que, no caso de House, são extremamente explícitos).

Você já conhecia esse transtorno? Saberá psicoeducar seu paciente sobre ele? Ou saberia como atender e conduzir o tratamento de pacientes com transtorno por uso de substância? O texto explica sobre, mas, caso queira se aprofundar no tema, temos algumas dicas.

O livro O que você precisa saber sobre dependência química e tem medo de perguntar (Clarice Móttola de Oliveira Oppermann) vai tirar todas as dúvidas básicas relacionados ao transtorno, sendo um ótimo recurso para psicoeducação. Já o livro Guia teórico-prático de terapias cognitivo-comportamentais para os transtornos do exagero (Renata Brasil Araujo) aborda os mais diversos transtornos do exagero e algumas abordagens indicadas para utilizar no tratamento. Agora, se você quer trabalhar com grupos, o livro Terapia de grupo para transtornos por abuso de substâncias: abordagem cognitivo-comportamental motivacional (Linda Carter Sobell e Mark Sobell) é o mais indicado.