Existe sim uma série de questionamentos a respeito da inserção da criança no terreno do “sagrado”, do “místico’, do “sobrenatural” do “dogmático”. Como isso se processa? Com que idade? A criança entende o real significado dos rituais? Ou isso não é importante? É importante que ela acredite em “Deus” (tenha o nome que tiver)?
Formulação de conceitos
Crianças muito pequenas não entendem exatamente o significado de determinados rituais, e é um pouco complicado explicar certos dogmas (ex.: a Santíssima Trindade, a reencarnação…), e imitam os adultos, cantam músicas sem a real compreensão da letra. Somente mais tarde, com a estruturação do pensamento abstrato[1], pode ser capaz de formular conceitos a respeito do “sagrado”, ter alguns “dogmas”, entender a espiritualidade como um fenômeno transcendental. Segundo PIRES (2010), os símbolos religiosos são tomados pelas crianças em sua materialidade: o Divino Espírito Santo, por exemplo, é visto como um passarinho comum, que canta, bota ovos e voa[2]. A igreja[3], como local de culto religioso, também pode mudar conforme a idade da criança; no princípio, a igreja é representada em desenhos como um objeto “solto” no papel; com o tempo, surgem outros elementos físicos que contextualizam a representação da igreja (a praça em frente, outros edifícios em volta), e só mais tarde a igreja é representada como um local de eventos ritualísticos (ex.: casamentos, quermesses, missas). Além disso, as crianças vão aos eventos religiosos sempre acompanhadas de adultos, e geralmente vestem as melhores roupas (ex.: em cultos evangélicos), e só com o tempo vão percebendo que existe uma distinção entre o que acontece dentro e fora do espaço físico do local de reunião religiosa (igreja, centro espírita, terreiro afro).
Simbologia dos rituais
Ainda segundo PIRES (2010, cit.), crianças antes dos 9 anos não fazem distinção dos credos, e podem desenhar igrejas de credos que não frequentam (ex.: criança evangélica desenhando igreja católica)[4], porque entendem as igrejas antes pelo que as une, desconsiderando a diversidade; a partir dessa idade começam a perceber as diferenças de crenças e passam a repudiar as religiões alheias à sua, porque entendem a unicidade de sua religião e a simbologia dos objetos e rituais.
Um adulto pode frequentar determinado local religioso por acreditar naquela religião, ou por algum motivo pessoal: pedir perdão pelos “pecados”, (entendidos aqui como atos que violam preceitos religiosos), agradecer, pagar promessa, ou para conhecer melhor aquela religião, ou ainda por circunstâncias extremas (ex.: desemprego, desilusão amorosa, doenças graves, ex-criminosos ou ex-dependentes químicos que “se convertem” em líderes religiosos). Existem motivos menos “nobres”, como: vaidade pessoal, ou ficar olhando as roupas das outras pessoas. Mas, para PIRES (2010, cit.), a vivência religiosa se dá na infância através da concretude do comparecer à igreja (a criança é católica porque vai à igreja católica), sem representar o local de eventos religiosos como associado à religião (primeiro veem a igreja, depois a religião; o adulto vê a religião e depois procura a igreja, ou a igreja vem concomitante à religião). A criança pequena mostra uma incapacidade de questionar os ensinamentos religiosos ou de refletir acerca deles[5]. Essa diferença de concepções de adultos e crianças frente à religião é que faz com que os adultos, ao associarem claramente “igreja” = “religião”, proíbem que as crianças frequentem igrejas de outras religiões. Para os pais, a igreja se refere a uma concepção peculiar do “sagrado”, um conjunto de ensinamentos, uma teologia específica, diferente das demais religiões. Para a criança, “igreja” é o edifício, e ela acredita que em todas as “igrejas” as pessoas fazem as mesmas coisas, então todas as igrejas são iguais. É por volta dos 9 anos que as diferenças aparecem, e as crianças começam a perceber a simbologia da religião e compreendem as razões de frequentarem aquela igreja em particular. Além disso, existe na criança a necessidade de pertencimento à família ou comunidade, então a criança frequenta a igreja que seus pais e irmãos frequentam, e encontra seus amiguinhos, vizinhos do bairro.
Mas às vezes ela pode sentir curiosidade de conhecer as religiões dos outros, e tudo vai depender do grau de flexibilidade e tolerância dos pais em permitir que seu filho acompanhe o amiguinho e a família dele em outro ritual religioso (ainda que seja só para conhecer!).
Situações extremas
Duas situações extremas acontecem no tocante à religião dos pais e dos filhos: quando a religião dos pais está intimamente relacionada à cultura (ex.: islâmica, judaica, cigana) rígidas e restritivas quanto à mobilidade, e quando cada um dos pais adota uma religião diferente. No primeiro caso, a criança pode sentir curiosidade em conhecer outras religiões, mas pode ser tolhida no seu intento, ou temer represálias, hostilizações e até exclusões de sua família e comunidade; no segundo caso, a criança pode participar de ambos os rituais, perceber as diferenças de ensinamentos (ex.: uma que ensine sobre reencarnação e a outra não, uma que exija o descanso em determinado dia da semana ou horário do dia, e outra que não faça essa exigência), e terá mais facilidade em optar aquela religião com a qual mais se identifica e será mais tolerante e respeitosa com a outra (só respeitamos o que conhecemos!).
Por isso, não é recomendável que os pais deixem de ensinar alguma religião ao filho, sob argumento de que “não querem influenciá-lo” ou “ele vai escolher a sua própria, quando for adulto”. É claro que os pais nunca conseguirão deixar de influenciar o filho em alguma coisa, em maior ou menor grau. Mesmo em atos simples como dizer: “Ai, meu Deus!”, quando está assustado ou desesperado, ou rezar somente quando está com medo, ou esbravejar que: “Fulano deve ir para o inferno!”, já se está ensinando algum conteúdo religioso, e a criança imitará seus gestos, e também assimilará o sentido mais ou menos distorcido que você lhe transmitir acerca da religião. A criança deixada à sua própria “opção” pode revoltar-se contra seus pais porque “deixaram de ensinar-lhe” valores importantes. Não há necessidade de rigidez e autoritarismos como “não minta para mim, que Deus castiga!, porque incute uma visão distorcida de Deus, como punitivo e vingativo. Ou, pode ser que, quando crescer, a pessoa decida não seguir nenhuma religião…
Comportamento obsessivo
Mas existe um outro aspecto importante: o ateísmo. Pais (ambos, ou um deles) pode(m) acreditar que “Deus não existe”, e pretender ensinar isso a seu filho. O mais importante aqui não é ensinar a criança a acreditar que “deus não existe”: é ensinar-lhe a saber por quê ela deve acreditar nisso. É preciso que haja uma fundamentação plausível (e não simplesmente “eu acho”). Para muitas pessoas, é o mesmo que explicar à criança que “Papai Noel não existe”, desde o início, do que incuti-la nessa crença errônea apenas para atender aos apelos comerciais dos shoppings…
Outro perigo na questão da religiosidade é a vertente da superstição. Crianças podem desenvolver um comportamento obsessivo e ritualístico (ex.: como roer unhas, ter TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo)), e a associação desses comportamentos com a religiosidade imposta pela família sem a devida compreensão pode confundi-la e ela passa a adotar comportamentos supersticiosos (ex.: ter que acender uma vela para Deus, senão Ele castiga). Daí a criança passa a vida acreditando em crendices populares (ex.: do número 13) e limita a oportunidades de vida.
Ensino religioso na escola
A Constituição Federal brasileira determina que a oferta do ensino religioso deve ser obrigatória nas escolas da rede pública de ensino fundamental, com matrícula facultativa – ou seja, cabe aos pais decidir se os filhos vão frequentar as aulas. No mesmo sentido, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) definiu que os estados são responsáveis por organizar a oferta, desde que seja observado o respeito à diversidade religiosa e proibida qualquer forma de proselitismo ou doutrinação (Cieglinski, 2011 (c)).
Apesar da obrigatoriedade, a oferta de ensino religioso esbarra nas seguintes dificuldades:
- ainda não há uma diretriz curricular para todo o país que estabeleça o conteúdo a ser ensinado, de maneira a garantir uma abordagem plural sem caráter doutrinário – no Brasil, o ensino é cristão, católico[6], e sem representatividade das demais minorias religiosas;
- a falta de critérios nacionais para contratação de professores de religião;
- o questionamento quanto à imparcialidade e princípios dos professores que irão ensinar religião às crianças;
- a omissão da família que tenha dificuldade em superar a absoluta falta de diálogo, e pode querer “empurrar” para a escola a responsabilidade de ensinar religião aos filhos;
- a utilidade disso, considerando-se que os recursos para investir nos professores poderiam ser utilizados para outras melhorias no ensino e na infra-estrutura das escolas;
- a perda do foco de valorização dos Direitos Humanos, para a questão doutrinária das religiões;
- a existência (ou não) de cuidados com os preconceitos e intolerância religiosos, em afirmações como: “muçulmano = terrorista ou submissão e opressão das mulheres”, ou “umbandista/candomblecista = bruxaria, feitiçaria, ‘vudu’, magia negra”.
A falta de normas curriculares quanto ao ensino religioso faz com que seu material didático e publicações não passem pelo crivo de especialistas do MEC quanto à sua adequação, pela crença de que o Estado não pode impor o que é “certo” ou “errado”. O problema é que, se um livro de Biologia (que recebe avaliação de especialistas do MEC) defende o Evolucionismo, mas o Criacionismo é tratado nas aulas de ensino religioso, essa dualidade de informações pode gerar incoerências (Cieglinski, 2011 (b)).
Tempo de muitas intolerâncias
Outro problema importante é a intolerância religiosa dentro das escolas, seja entre alunos, professores e funcionários. São frequentes os casos de alunos hostilizados porque professam religiões minoritárias, sobretudo as de origem africana, o que também perpassa a questão do racismo. Alunos que são discriminados dentro da escola, por motivos religiosos, culturais ou sociais, têm o processo de aprendizagem comprometido, pois isso afeta a construção da autoestima positiva no ambiente escolar e mina o processo de aprendizagem (Cieglinski, 2011 (a)).
Em tempo: você sabia que há uma diferença entre “espiritualidade” e “religiosidade”? Pesquisadores da Universidade de Toronto (Canadá) concluíram que a religiosidade é caracterizada por devoção a uma tradição específica, a um conjunto de princípios, ou código de conduta, fazendo com que as pessoas se mostrem mais conservadoras, a espiritualidade está associada com a experiência direta de autotranscendência e a sensação de que “estamos todos conectados”, ou seja, há uma tendência das pessoas espiritualistas a serem mais progressistas. Para o pesquisador responsável, dr. Jordan Peterson, “A parte conservadora da crença religiosa tem desempenhado um papel importante na coesão das culturas e no estabelecimento de regras comuns. A parte espiritual, por outro lado, ajuda a renovar as culturas, adaptando-as a novas circunstâncias”.
Crianças devem ter educação e respeito às crenças diferentes das suas
Algumas ações podem ser importantes para os ensinamentos de respeito, tolerância e pensamento crítico das crianças e adolescentes.
- Converse muito a respeito de religião com seu filho. Permita que ele tenha suas próprias hipóteses a respeito da divindade, das imagens sacras, do que é “pecado”, de forma tranquila, segura, sem exagero, sem fanatismos, sem temores de “punição’ e perseguição;
- Se você não tem uma religião específica, ou declara-se ateu, explique isso a seu filho de forma racional e tranquila, sem criticar os que acreditam em alguma religião como “tolos” ou “ingênuos”;
- NUNCA critique ou permita que alguém critique nenhuma religião diferente. A ideia de que uma religião é “superior” à outra, é que se esconde por trás do sentido da proibição: “não tomarás o nome de Deus em vão”; ninguém gosta de ser humilhado ou discriminado por causa de religião, nem você, e como determinam as palavras: “faça aos outros o que gostaria que eles fizessem com você”[7];
- Se você e seu(sua) esposo(a)/companheiro(a) têm religiões diferentes, conversem acerca da orientação religiosa de seu filho, de preferência permitindo que ele frequente ambos os locais, para que aprenda a ser tolerante com as diferenças, a respeitar pessoas de religiões diferentes;
- Evite as superstições e rituais mecânicos em nome de uma suposta religião extremamente dogmática e “misteriosa”, da qual nem você entende o significado: seu filho poderá crescer passando a vida entregue a mil temores e a comportamentos obsessivos sem nenhum significado lógico e plausível;
- Evite critérios excessivamente rigorosos, rígidos e punitivos ao que sua religião considera “pecado”, pois isso pode deixar seu filho inseguro, imaturo, inibido para as novidades, e acreditando-se incapaz de permitir algum prazer (por vezes, o prazer da brincadeira pode se transformar em acidente, e a criança pode entender que é “castigo” por algum “pecado” de, simplesmente, brincar!);
- Vá percebendo aos poucos como a criança constrói suas hipóteses a respeito de Deus, da morte e de outros fenômenos sobrenaturais, para escolher o melhor meio de fazê-la compreender o significado das crenças e rituais;
- Permita que seu filho tenha amigos e estabeleça contatos com crianças de religiões diferentes, para aprender acerca da diversidade, tolerância e respeito. Poderá aprender muito acerca de culturas e tradições de povos;
- Impeça a formação de estereótipos, preconceitos e discriminações de todos os tipos, em nome de uma suposta “superioridade religiosa” que só existe na cabeça dos arrogantes e vaidosos;
- Quanto à preferência pelo ensino religioso, tenha consciência de que a doutrina ministrada na escola deve coincidir com os seus preceitos religiosos e filosóficos, porque seu filho crescerá dentro de ambos os ambientes (familiar e escolar) e poderá fiar confuso se houver incoerências. E não permita que a escola faça proselitismo e tente impor, coercitivamente, sua doutrina religiosa como “única”, sem respeitar as demais (inclusive, com tratamentos diferenciados e discriminatórios para alunos de religiões diferentes, ou privilégios para os “congregados”). Muito menos, que a escola propague algum tipo de informação que contrarie fatos de senso comum e/ou comprovados pela ciência[8].