A quem incomoda a linguagem neutra? A linguagem neutra consiste no uso de formas discursivas que afrontam a imposição do masculino como modelo universal na linguagem, além de colocar em questão feminino e masculino como únicas expressões de gênero possíveis e inevitáveis nos discursos.
Essa é uma discussão muito importante, pois tem ajudado a lançar luz sobre a complexidade e a multiplicidade de gêneros através dos quais uma pessoa pode expressar seu modo de ser e estar no mundo.
A complexidade do gênero
Gênero não se resume a “feminino” e “masculino” nem quer dizer o mesmo que sexualidade. Estamos falando da maneira como cada pessoa se percebe, se interpreta e performa sua existência no mundo, inscrevendo-se nele. Há toda uma luta histórica pelo reconhecimento de direitos de corpos e existências que não se enquadram nos modelos impostos pela nossa sociedade normativa. Isso é bom, muito bom. Conhecer ajuda a aumentar um pouco as distâncias entre nós e os preconceitos!
No entanto, a maior visibilidade do tema em debate também tem dimensões negativas. A quantidade de fakenews e desinformação que se criam a partir dessa discussão é enorme, alimentando a propagação de discursos de ódio e a difusão de ideias que carregam marcas de diferentes sistemas de opressão e violência constitutivos do imaginário de nossa sociedade, de nosso imaginário.
O que isso quer dizer, afinal?
Quer dizer que há uma parcela importante de nossa sociedade tendo o direito de acesso ao conhecimento acerca dessas questões negado, seja por meio da formação de redes de notícias e informações falsas, seja pela propagação de clichês e discursos discriminatórios (às vezes até criminosos), seja pela interdição que o tema sofre em alguns espaços e instituições sociais (como escolas, igrejas, famílias etc.), aí surgindo, muitas vezes, de forma negativizada e deturpada.
Falar sobre isso é urgente
A quem incomoda tanto que, em meu texto, eu me refira a “todes nós” ou a “todas, todos e todes”? A quem prejudica que eu reconheça, em minha escrita, que a linguagem também dá corpo à invisibilização e silenciamento de determinadas formas de existência?
“Escrever todes ou todxs não resolve o problema de ninguém” – bradam muitos críticos da linguagem neutra. Sim, é verdade, não resolve o problema de ninguém. E não é para resolver. A linguagem não tem esse poder. Ela é apenas uma das muitas dimensões da vida. Falar “outre” em nossos textos é para lembrar que devemos cuidar das palavras, dos modos como falamos e narramos as pessoas, entender que nossas ações e linguagens também estão repletas de racismo, machismo, capacitismo, audismo, lgbtqiafobia, gordofobia, homofobia, transfobia entre tantos outros sistemas de opressão e violência.
Por que há os que vociferam o perigo da linguagem neutra por sua suposta “ideologia de gênero”? Acreditam que a linguagem neutra faz parte de uma agenda para impor certas formas de existir no mundo, contra o “normal” (o modelo hegemônico, imposto como regra e padrão a ser seguido e almejado)? Com base em que indícios, senão nos próprios preconceitos e temores sobre a liberdade das existências no mundo?
Calma, calma!
Não é bem assim, clara e simplesmente. Há os que expressam suas preocupações sociais: defendem que essa forma de escrita prejudica cegos, surdos, disléxicos… E algumas perguntas surgem a partir daí:
Onde guardamos nosso capacitismo?
Onde guardamos nosso audismo?
Em nossas palavras, discursos, ações, desejos e temores?
Uma pessoa cega ou uma dislexa não é capaz de entender a escrita de “tode/s”, “elu/s” ou “linde/s”? Por quê? Do ponto de vista de quem?
Uma pessoa surda, visual por sua condição de existência no mundo, não poderá compreender o sentido do uso da linguagem neutra? Por quê? Do ponto de vista de quem?
Há capacitismo nessa preocupação? Há audismo?
Movimentos sociais
É bom lembrar que há movimentos sociais na comunidade surda e nos grupos de pessoas com deficiências em torno de pautas como a LGBTQIA+, a feminista, a negra, entre outras, em defesa de igualdade de direitos e liberdade de existência! O movimento LGBTQIA+ surdo é um bom exemplo disso! Como na dita “linguagem neutra”, na referida comunidade o desafio é o mesmo: produzir desinvisibilização, sensibilizar as pessoas para abraçarem suas ignorâncias e, assim, pluralizar um pouco suas formas de ver e ler o mundo. A liberdade e o respeito são o norte desses movimentos!
Então, a quem incomoda a linguagem neutra? A quem assusta? O que sacoleja?
Guarde seu audismo: pessoas surdas são plenamente capazes de compreender o que é “linde” ou “lindx”.
Guarde seu capacitismo: pessoas deficientes podem se apropriar de qualquer tema em discussão na sociedade. Se é verdade que os programas de leitura de texto têm dificuldade com palavras como “todxs” e “professorxs”, também o é que são capazes de ler “todes”, “elus”, dentre outras.
A questão aqui é outra
A linguagem neutra (ou linguagem inclusiva) mobiliza outras temáticas. A partir daí, talvez seja um bom exercício perguntar por nossos próprios preconceitos: onde os guardamos? Como eles impactam nossas opiniões? Sabemos o suficiente sobre um tema para opinar, ou já nos sentimos suficientemente preparados com nossos pré-conceitos e tradicionalismos?