Sigmund Freud já indicava que as mulheres manifestam sintomas psicossomáticos de origem desconhecida em decorrência da repressão sexual e padrões morais patriarcais vigentes à época, e propõe que as mulheres apresentam uma expressão própria de desejo, prazer, orgasmo, como componentes do equilíbrio psíquico.

A fundamentação bibliográfica se estrutura a partir de obras de referência de filósofos, psicanalistas, historiadores e cientistas sociais que trazem reflexões acerca do quanto reproduzimos acriticamente padrões, comportamentos, conceitos, crenças e costumes, arraigados na nossa cultura, que segregam as mulheres e cerceiam qualquer iniciativa de evolução e transformação. A sororidade vem justamente como um movimento de rompimento desses paradigmas, quando mulheres auxiliam outras mulheres a transformarem suas realidades, uma vez que somente quem entende o sofrimento alheio é que mobiliza recursos para ressignificá-lo.

A análise se estende aos dias atuais, questionando as representações sociais das manifestações sexuais femininas, concluindo que a conscientização da autonomia sexual feminina da transição dos séculos XX para o XXI é decorrente dos movimentos de sororidade, de auxílio mútuo de mulheres que se engajaram em movimentos e atitudes de empatia e compreensão dos sentimentos femininos – como a ‘Revolução Sexual’ e a pílula anticoncepcional nos anos 1960 -, porém a sororidade continua enfrentando muitos estigmas, desafios e estereótipos dos períodos anteriores.

O que é, afinal, a sororidade?

A palavra ‘sororidade’ vem sendo repetida com uma frequência crescente desde 2017, mas sem um significado preciso. Derivada do latim sóror (= irmã), não está sequer incluída nos dicionários mas podemos encontrar alguns significados nos links de pesquisa na internet. Sem me estender na explicação, em termos gerais, ‘sororidade’ sugere um chamamento ético de valores, sentimentos, crenças e ações de mulheres para ajudar outras mulheres em situações de vulnerabilidade, necessidade (permanente ou transitória), violência, insegurança, ou simplesmente para incentivar-lhes o potencial criativo, laboral, familiar, de saúde etc. Ensinar e auxiliar outras mulheres a lutarem por seus direitos e liberdades, a resgatar valores culturais, a obter ou aprimorar hábitos de cuidados pessoais e da família, a expressar sentimentos, a fomentar oportunidades acadêmicas e/ou laborais, enfim, qualquer área em que a mulher precise recuperar espaços em que até então estava em situação de desvantagem ou desigualdade indevida e/ou injustificada em relação aos homens em sociedades que privilegiam o patriarcado e a hegemonia masculina.

Ações feministas de empoderamento

A sororidade está intimamente associada ao feminismo. E, sob esse aspecto, enfrenta distorções e estereótipos em sua compreensão. Os discursos nem sempre privilegiam as ações coletivas, tratam as ações feministas como uma conquista individual de empoderamento pessoal, sem considerar que muitas das conquistas femininas atuais são decorrentes, justamente, de ações coletivas de outras mulheres que também vivenciaram determinadas situações como injustas e resolveram tomar atitudes de enfrentamento (como por exemplo, as sufragistas ao redor do mundo). Existe o estereótipo da mulher feminista como ‘masculinizada’, ‘quer eliminar os homens’, ‘dominadora’, sendo que o autêntico feminismo pretende equiparar os direitos, vantagens e benefícios de ambos os gêneros sob as mesmas condições (por exemplo, salários equivalentes para homens e mulheres no mesmo cargo, mesmo tempo de trabalho e mesma qualificação), e benefícios em determinados aspectos que diferenciam mulheres de homens (por exemplo, proteção e garantias trabalhistas em situações laborais de risco para gestantes e/ou lactantes), liberdade de praticar esportes antes considerados ‘masculinos’, como o futebol, basquete, vôlei, inclusive a nível de campeonatos internacionais como Panamericanos e Olimpíadas.

É importante pensarmos que, seja como um sentimento inerente às mulheres por sua condição biológica, ou uma atitude política de enfrentamento às (o-)pressões sociais, os discursos acerca do conceito de ‘sororidade’ nos indicam quais os discursos que a sociedade produz acerca das atitudes de mulheres que se unem em ações de auxílio mútuo. Para Foucault (2001), em sua obra ‘A ordem do discurso’, o ‘discurso’ é um conjunto de regras delimitadas pela época e local (área econômica, geográfica ou linguística) para o exercício da função enunciativa. Em outras palavras, é sempre um enunciado inserido em um contexto histórico, delimitado pelo tempo e pelo espaço. Em outra obra, ‘Arqueologia do saber’ questão que o autor coloca é: “(…) como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar?” (FOUCAULT, 2008, p. 30).  E acrescenta que esses discursos sempre produzem movimentos de retorno contínuo, recíproco e dialético entre as instituições sociais e os sujeitos, no que chamou de ‘práticas discursivas’ – e esse movimento dialético determina o grau de conscientização do indivíduo quanto a ser um mero repetidor das práticas discursivas sociais, ou questionar essa mera reprodução e se tornar consciente e proativo na transformação social. Retornando ao caso da ‘sororidade’, significa que o que a sociedade pensa a respeito dessa prática também retorna e reflete o que as próprias mulheres pensam de si mesmas ao executar qualquer atitude que caracterize a ‘sororidade’. Então é muito importante que as próprias mulheres envolvidas tenham plena consciência das intenções e motivações para se mobilizarem, bem como aquelas que são beneficiadas com as práticas da ‘sororidade’. Moscovici (2015) aponta que o conjunto de crenças, valores, ideologias etc., formam representações sociais que são mais ‘fossilizadas’ quanto menos se conhece a origem delas. Daí reitera-se a importância de que os discursos acerca da ‘sororidade’ sejam plenamente conscientes para toda a sociedade.

Mobilização feminina de empatia

A essência do conceito é que sejam mulheres se mobilizando para ajudar outras mulheres, porque quem passa pelo mesmo sofrimento, ou quem se coloca empaticamente no lugar daquele que passa pelo sofrimento pode compreender esse sofrimento com propriedade e pode pensar em soluções mais realistas e viáveis para ajudar o outro a sair desse sofrimento, e tradicionalmente atribuímos essas características às mulheres que sabem (ou têm uma noção mais aproximada) do que é ser vítima de assédio moral e/ou sexual, ser impedida de exercer direitos civis e/ou políticos, ser prejudicada pela discriminação sob qualquer critério, não ser considerada ‘uma pessoa’, ‘um ser humano’, nem pelos próprios familiares, não ser respeitada, acolhida, auxiliada. Mas homens também podem desenvolver esse sentimento de sororidade, quando se dispõem a se mobilizar em prol dessas vítimas. Seremos exemplos saudáveis para as próximas gerações, ensinando nossos(as) filhos(as) e netos(as) o que são respeito, dignidade, solidariedade/sororidade e cidadania.

E MAIS…

Divergências em relação à origem do termo

A sororidade é um sentimento pertencente ao gênero feminino, ou é um movimento político de rompimento de paradigmas de opressão, sofrimento e injustiças? Um pouco dos dois. Mas um pouco mais além.

Leal (2018), em sua pesquisa acerca da etiologia do termo ‘sororidade’ em links de busca na internet, aponta para divergências em relação à origem do termo: em alguns textos eletrônicos, a ‘sororidade’ seria uma característica inerente às mulheres, uma atribuição ‘natural’, uma característica inconsciente – por esse aspecto, conceitos intimamente ligados ao aspecto biológico, do ‘útero’ e das representações sociais que temos de que as mulheres são sempre sentimentais -; em outros, que a ‘sororidade’ representaria uma decisão ética e um posicionamento político decorrente da sociabilidade feminina e da prática de auxiliar outras mulheres, como uma resistência contra práticas sociais tradicionais de hierarquia – e, sob esse prisma, está sempre por trás dos grandes acontecimentos, como a ‘Revolução Sexual’ trazida pela pílula anticoncepcional que permitiu às mulheres mais liberdade sexual sem precisar se preocupar com a gravidez, bem como a mobilização contra injustiças, tais como o cerceamento do direito de estudos (incluindo superiores, que não fossem somente Magistério ou Enfermagem), ingresso em quaisquer atividades profissionais que quisessem, direitos políticos (votar e ser votada) etc.

Referências bibliográficas
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