A Covid-19 exigiu adaptações nunca experienciadas por nós e pelos que compartem conosco essa época de existência. Aos poucos, percebemos que era necessário nos isolar fisicamente, conhecíamos pouco ou nada sobre a nova doença, o isolamento era o único modo de erigir alguma barreira à infestação de toda a humanidade. Com isso, obrigamo-nos a criar formas de manutenção do laço social, do trabalho e dos processos de educação. Inventamos diante do que nunca havíamos vivenciado
Mudanças na prática clínica
Fechamos nossos consultórios e as instituições de formação em psicanálise. O ano de 2020 chegou ao fim, cancelamos os congressos e as festas de fim de ano. Longos foram os meses em que nossos encontros se resumiram a quadrados na tela ou à voz nos atendimentos ao telefone. Passamos a atender pessoas das mais diferentes e longínquas localizações. Sem dúvida não foi fácil. Resistimos à tentação de nos encontrar com o outro, a cada vez, optamos por manter vivos a nós mesmos e a cada um com os quais convivíamos diretamente.
Aos poucos, e ultrapassando as barreiras genocidas postas por aqueles que ocupam o governo federal, tivemos acesso às vacinas. Os portões das casas e empresas puderam ser reabertos, as crianças voltaram às escolas e pudemos compartilhar a vida com outros sujeitos além daqueles que habitam o mesmo espaço físico. Caberia, então, reabrir as portas de nossos consultórios. O tratamento de cura oferecido pela psicanálise sempre contou com o sujeito no consultório. Porém, a pandemia havia trazido mudanças também em nossa prática clínica.
Em determinado momento, alguns reabriram seus consultórios e voltaram a atender seus pacientes presencialmente. Não foram todos os analistas que voltaram a oferecer o atendimento presencial e nem foram todos os pacientes que se dispuseram a atravessar novamente o umbral da porta de seus analistas. Isso não é sem consequências para a psicanálise. Não estou aqui me referindo aos atendimentos de pessoas que moram a centenas ou milhares de quilômetros de distância – esses são casos de exceção.
Ao lado do incômodo
Carmen Gallano, psicanalista espanhola, em seu texto “Que a memória das sacadas não emudeça” publicado no livro “Psicanálise e pandemia” lançado pela Aller Editora (2020), se pergunta: “Queremos abraços, mas por acaso nos abraçávamos de verdade quando eles não estavam proibidos?”. Eu me pergunto: será que Carmen, com essa pergunta, não antevia a dificuldade e resistência de alguns analistas em retornarem às atividades presenciais?
Desde a sua invenção, a psicanálise esteve ao lado do incômodo, do não adaptativo, do desafio que aquele que se submete ao processo de cura enfrenta ao vislumbrar seus próprios demônios ao falar no divã e ao perceber as implicações que esses têm no laço com o outro. Laço que se dá com os três registros, marcas de um real que atrapalha o simbólico e modifica o imaginário, dando formas e abrindo possibilidades de modificação do sujeito. E que fica claro no corpo a corpo com o outro.
Transmitir a psicanálise só é possível quando todas essas variáveis estão implicadas. E a transmissão da psicanálise começa sempre no processo analítico. Não há formação de analista que não se inicie no divã. Na formação do analista, não é possível tirar o corpo fora. Enfim, não há formação do analista protegido do contato com o outro, permanentemente optando pelo recorte em um quadrado de tela.
Transmissão da psicanálise
Somos, cada um de nós, psicanalistas, responsáveis pela transmissão da psicanálise e pela sua existência no futuro. Como corolário, cada decisão de não voltar às atividades presenciais concernentes à psicanálise (o atendimento online e as participações nas escolas de psicanálise) terão impacto no futuro da prática clínica e da teoria criada por Freud.
Há que questionar se permanecer em casa, cercado pelos confortos do não deslocamento, a economia de tempo e recursos financeiros, a evitação do encontro presencial que põe o corpo à prova no laço, vale arriscar o trabalho histórico que a psicanálise tem feito e seu saber germinal de que o corpo afeta e é afetado pelas vivências do sujeito.
Processo de formação do analista
Avançando no processo de formação do analista, temos a participação institucional nas escolas de psicanálise. Essas também estão enfrentando a resistência dos analistas à volta às atividades presenciais. Lacan, em texto de 1967, afirma que o psicanalista é responsável pela transmissão da psicanálise em intensão e em extensão. Transmissão da psicanálise em intensão refere-se à prática clínica. A transmissão em extensão refere-se às palestras, debates, conferências, redes de discussão. Nisso está implicado algo muito além da repetição de conteúdos ou dos debates intelectuais. O âmago da transmissão em extensão é também a prática clínica, pois não há uma nota de teoria que não advenha da escuta analítica. Portanto, é à experiência analítica que o analista que compõe a Escola refere-se cada vez que transmite. E ela não se dá sem o corpo.
A isso não posso me furtar. Para mim, enquanto analista e membra de Escola de psicanálise, a transmissão da psicanálise se faz presencialmente. E é isso que sustentarei como futuro da psicanálise.
2 respostas
Gostei da maneira como você coloca a questão. Você propõe a presença física na clinica e na transmissão da psicanálise, mas colocou bem que há exceções. Acho esse ponto bem importante pois a clínica da psicanálise não seria possível se seguisse um padrão de “setting” e um modelo de presença do analista. Sabemos que isso se estabelece no caso a caso.
Obrigada por trazer à tona questões importantes que tocam a subjetividade de nossa época!
Olá, Maria Célia.
Obrigada pelas suas considerações. A permanente reflexão sobre a nossa prática é parte integrante de nossa formação enquanto analistas. Sigamos!