Depois da repercussão da série Adolescência, que trouxe à tona os perigos ocultos nos submundos digitais, Aconteceu com minha filha: uma história real sobre os abismos sombrios da internet (Geração Editorial) aprofunda a discussão com um relato real sobre os riscos que ameaçam crianças e adolescentes na internet. Assinado sob o pseudônimo Paulo Zsa Zsa, o livro acompanha a jornada de um pai que vê a filha de 12 anos ser tragada por um vício silencioso e progressivo nas redes sociais, resultando em episódios de isolamento, automutilação, mudanças bruscas de comportamento e participação em desafios virtuais perigosos, alimentados pela falsa sensação de pertencimento.
Sem saber como reagir, o autor viveu sentimento de culpa, medo, raiva e impotência até tomar a decisão mais difícil de sua vida: internar a filha em uma clínica psiquiátrica e cortar completamente o acesso às telas. O nome da adolescente também é fictício – Júlia –, mas a história é verídica, urgente e cada vez mais comum nas famílias brasileiras. “Quando leio uma notícia de um adolescente vítima da internet, tenho mais certeza da importância desse alerta. Se meu livro puder evitar uma única tragédia, já terá cumprido seu propósito”, afirma ele.
O livro é baseado na sua experiência com sua filha. Em que momento você percebeu que ela estava em perigo e como foi o processo de identificar esse vício digital?
Infelizmente, demorei muito para descobrir. Essa descoberta é contada no começo do livro, quando ela me procura no quarto, 11 horas da noite, com os braços e pernas cortados, e me pede: “Pai, eu surtei! Me interna, eu surtei. Preciso ser internada!”. Naquele momento, depois de socorrê-la, tomei coragem e decidi vasculhar mais profundamente seu celular e descobri tudo o que ela estava passando.
Aconteceu com minha filha traz um forte alerta aos pais. Que sinais você acredita que ainda passam despercebidos por muitas famílias?
O grande problema não são os sinais. É o desconhecimento do que pode estar acontecendo, porque, se você não sabe o que está acontecendo, não vai identificar esses sinais. Eu mesmo sabia vagamente como funcionava o Discord, nunca tinha ouvido falar em lulz e panelas.
E o que são Discord, lulz e panelas?
Tem um capítulo só sobre isso no livro, mas vou tentar resumir. Discord é uma plataforma superpopular que gamers usam para jogar on-line e que hoje se transformou num chat gigantesco, sem nenhum tipo de monitoramento. Qualquer um pode criar a sua comunidade, chamada de servidor, e tratar do que quiser dentro dela. É aí que surgem as panelas – grupos formados dentro de servidores maiores, um ambiente fértil para tudo o que não presta: pedofilia, automutilação, apologia ao nazismo… Isso tudo é exposto a crianças muito novas, como minha filha, de quem desconfio que, desde os 9 anos, já usava o Discord.
Nada é mais nefasto nesse universo do que o lulz. A palavra é uma corruptela de “lol” (laughing out loud = rindo alto), mas o sentido é bastante diferente. Podemos traduzir como “rir de uma pessoa”. Só que é muito pior. Fazer lulz é aceitar ser guiado (em uma transmissão ao vivo no Discord) por uma ou mais pessoas da panela e fazer tudo o que elas mandarem. Nesse ambiente, de absoluto sadismo, todos são vítimas e vilões. Uma plateia alucinada (em grande maioria, de crianças e adolescentes) instigando, aos berros, outras crianças a se queimarem, cortarem e passarem pelas situações mais abjetas.
A história toca em temas delicados como saúde mental, manipulação online e automutilação. Como foi revisitar esses momentos para escrever o livro?
Muitas coisas aconteceram à medida que eu ia escrevendo. Minha filha aprontava alguma e eu corria para desabafar no computador. Foi um processo muito doloroso, mas que funcionou também como uma terapia, um desabafo. Com o livro, eu pude ordenar os pensamentos e entender mais detalhadamente o que estava acontecendo com a nossa família.
Como pai, qual foi o momento mais difícil durante esse processo todo?
Não sei se foi o mais difícil, mas, com certeza, o mais chocante. No dia em que estávamos tomando café da manhã e minha filha olha para mim e diz: “Você pode esconder as facas, os fios. Mas e a rede da janela? Eu arranco e me jogo”. Fiquei em choque, principalmente pelo fato de estarmos num dos raros momentos de calmaria. Eu achava que Júlia estava melhorando e aquela frase, aquele desejo de se matar, me jogou no chão. Foi muito dolorido.
Qual mensagem principal você espera que os leitores levem? E que mudanças espera provocar nas famílias?
A cada dia que leio a notícia de uma criança ou um adolescente vítima da internet, tenho ainda mais certeza da urgência desse alerta. Torço para que meu livro chegue aos pais como uma forma de evitar tragédias. Sempre penso: se esse pai ou essa mãe tivesse lido, talvez tudo pudesse ser diferente. Se ele ajudar a salvar uma única vida, já terá cumprido seu propósito – e essa possibilidade já me deixa imensamente feliz.
Qual foi seu principal erro nessa história? Dar um celular para sua filha antes do momento certo?
São tantos erros, e todos poderiam ter sido evitados. Dar o celular foi um erro, mas não monitorar o que ela fazia acho que foi o maior erro que cometi. Eu não queria ser invasivo, pensava em preservar a privacidade dela. Hoje, vejo que isso é um absurdo. Eu deveria ter a senha do Discord, ter checado os grupos em que ela estava inserida. Isso já ajudaria bastante.
Com base no seu processo de reinvenção como pai, que conselhos você dá para pais e outros responsáveis por crianças e adolescentes?
Leia o livro, indique o livro para os amigos. Esse conhecimento precisa rodar. As pessoas precisam saber o que pode estar acontecendo na sua própria casa com seus filhos. E falo isso muito tranquilamente, sem nenhum interesse comercial. Estou doando 100% do que eu ganhar com a venda do livro para um instituto que dá apoio psicológico a crianças de escolas públicas que estão passando por questões relacionadas à exposição midiática. Então vamos todos nos engajar nessa corrente e levar esse conhecimento adiante.