Em seu livro ‘O que todo pedagogo precisa saber sobre pessoas com deficiências: um olhar socioantropológico’ (Wak Editora), o pedagogo e psicanalista Eduardo de Campos Garcia faz um convite para uma reflexão sobre a gênese do conceito da deficiência. Segundo ele, muitas pessoas acreditam que a deficiência é uma forma de identificação de défices cognitivos, fisiológicos e/ou anatômicos e isso pode ser considerado um mito.
Segundo o autor, a deficiência é uma construção discursiva introduzida socialmente pela medicina e sua ortopraxia como meio de justificar moralmente suas experimentações. “Não se trata de concordar ou discordar das práticas clínicas que, comumente, são necessárias, mas de apresentar seus efeitos, seu poder, sua narrativa e seu discurso, sua prática e como tudo isso constrói e fomenta a indústria cultural da anormalidade.”
Garcia é PhD em psicanálise pela Logos University International (USA/Miami). Tem pós-doutorado em educação e saúde na infância e adolescência pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). É doutor e mestre em educação, arte e história da cultura pelo Mackenzie/SP; especialista em magistério do ensino superior pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); em Libras pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá (FIJ-RJ); em psicanálise pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica (IBPC). Graduado em pedagogia pela Universidade Iguaçu (UNIG-RJ) e em letras pela UBC-SP.
Por que o senhor afirma em seu livro que a deficiência é uma construção discursiva introduzida socialmente pela medicina e sua ortopraxia como meio de justificar moralmente suas experimentações?
A diversidade anatômica e fisiológica, antes do nascimento da medicina clínica, era uma estética considerada exótica pela sociedade e, ainda hoje, é vista dessa forma por algumas culturas. As pessoas, todas elas, possuem potencialidades e o discurso da deficiência entra em cena em função da revolução industrial e da biopolítica higienista. Toda correção – processo terapêutico – precisa de uma justificativa moral para que a sociedade possa aceitá-lo e, dessa construção, nascem as afirmações sobre a necessidade de correção.
Canguilhem, médico e filósofo, fala que não há saúde perfeita, tampouco doença quando se trata de adaptações em função do corpo e seu desenvolvimento. Entretanto, a justificativa de atenção à saúde se mistura e se confunde com acordos econômicos e políticos, por exemplo, a invalidez afasta do mercado de trabalho quem, pelo discurso, é marcado pelo CID da impossibilidade. Existem pessoas que, mesmo declarando sua impossibilidade para o trabalho, não são afastadas; outras, mesmo sem a própria vontade, são. Esse é poder da medicina aliado às necessidades do Estado.
Na atualidade, já se dialoga sobre deficiência bioecológica, o que significa compreender que o déficit está no ambiente e não na pessoa. Portanto, um cadeirante terá déficits relacionados à sua mobilidade se o espaço não for acessível, uma pessoa surda terá déficits de comunicação se as pessoas com as quais convive não souberem Libras. Cabe ressaltar que, quando uma pessoa cadeirante ou com nanismo precisam de um bebedouro rebaixado, não se trata de necessidades especiais, mas de reconhecimento de uma necessidade humana, porque hidratar-se é uma necessidade humana. Por isso, as pessoas são inteligentes e eficientes segundo as suas singularidades.
A socioantropologia pensa na pessoa, a medicina pensa no organismo ou órgão. Não se trata de não reconhecer a importância dos tratamentos e estudos clínicos, mas de mudar o foco; em vez de pessoas com deficiências, pensar em terapias e tratamentos para pessoas segundo as suas necessidades para vida em sociedade e consigo mesmas. Tudo isso pode ser aprofundado por meio da leitura de Michel Foucault, George Canguilhem e um aprofundamento na história da medicina.
Também é citado que essa visão introduzida socialmente pela medicina constrói e fomenta a indústria cultural da anormalidade. Explique.
A normalidade, como explicado por Canguilhem, é um conceito gramatical que se aplica às demais ciências por necessidade política. Normalidade significa estar dentro da norma. O estabelecimento de normas sobre a vida data do final da segunda guerra, sendo ela o marco para aplicabilidade de uma estética do comportamento, anatômica e fisiológica. Foucault chama isso de esquadro das doenças e sua organização acontece da seguinte forma: define-se o parâmetro de normalidade – e isso pode ser verificado em exames clínicos de sangue, por exemplo – o que estiver fora e acima se denomina hiper, o que estiver fora e abaixo se denomina hipo. Isso é razoavelmente compreensível porque exprime a organização interna para o bom funcionamento do organismo.
Contudo, essa mesma técnica se aplica às diferenças humanas como se a maioria da população ouve, quem não ouve é surdo e é surdo porque “sofre” de surdez e, em função disso, apresenta déficits tantos que formam camadas identitárias denominadas historicamente como patológicas. É preciso ter cuidado com essas afirmações porque elas podem tirar a autonomia que deveria ser própria e constitutiva de todo ser humano – raras exceções.
Nesse cenário, quando se observa que existe uma indústria cultural da anormalidade, a socioantropologia tenta mostrar que nem tudo o que é diferença é doença e nem todo o comportamento diverso é anormal. Para o povo surdo, estranho são os ouvintes. Mas a sociedade pós segunda guerra vive medicalizações sem precedentes e, em escala industrial, trata sintomas em vez de causas.
Os efeitos colaterais de inúmeros medicamentos causam outros estados de desregulação orgânica – anormalidade funcional – e a população vive à mercê da cultura da correção, medicalização e terapeutização do comportamento. Crianças são medicalizadas em função de diagnóstico de TDAH, por exemplo. Quando se trata disso, é preciso pensar que a denominada criança hiperativa só será um problema numa sala de aula lotada, em um apartamento de 30 metros. No campo, nesse lugar cada vez mais escasso, ela seria esperta, dinâmica e peralta.
O que precisa ser perguntado é: quem define o que é normal? Quem definiu que a homossexualidade (homossexualismo) era um distúrbio? No passado, mulheres eram diagnosticadas com histeria e muitas passaram pela lobotomia. Hoje, tudo isso é criticado e questionado. Por isso, é necessária muita atenção quando se trata de discursos normalizadores.
O que então seria a deficiência?
A deficiência, para a socioantropologia, é uma forma de interpretar as relações humanas. Nasce do olhar clínico sobre comportamento, estética anatômica e fisiológica. A deficiência é uma categoria de corpo. Corpos com deficiências são representações da higienização elevada à condição política. Por isso, o discurso da deficiência marca, define e agrupa ao mesmo tempo que limita. Esse discurso pode ser substituído por singularidades humanas, o que significa reconhecer todas as formas de ser no mundo.
A maior parte dos professores está preparada para receber alunos inclusivos?
Todos estamos preparados para receber a diversidade. O ponto a ser observado é: eu entendo o que significa incluir? O problema não é o professor ou a professora, mas a escola e sua estrutura. A educação, no Brasil, se configura como competitiva e meritocrática e, dessa forma, fica quase impossível conviver com a diversidade.
Em um dos meus livros, ‘O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras’, eu digo que todo ser humano aprende, cada qual em seu tempo, e, em cada tempo, segundo a sua singularidade. Portanto, se a escola se propõe inclusiva, é preciso rever os critérios de como se avalia, o que se concebe como avanço escolar e o olhar que se direciona aos estudantes segundo as suas diferenças. Contudo, clinicar ou laudar para justificar o sistema opressor que se impõe é mais fácil e mais barato, porque dá a impressão de que o professor é incompetente e que o fracasso escolar é culpa do estudante e de sua família.
Estar preparado é relativo, porque a sociedade é dinâmica e não se trata de um quadro clínico estático e monocromático. O ser humano é, por si só, dotado de imprevisibilidade. Ninguém responde igual ao mesmo comando, ninguém entende o mesmo texto de modo formatado. O que precisa ser entendido é isso, somos outridade e não identidade.
Quais são as estratégias fundamentais para promover uma cultura escolar inclusiva que reconheça e valorize a diversidade de habilidades e aprendizagem entre as crianças?
Não adotar o espírito meritocrático como forma de desenvolvimento educacional. Compreender que o ser humano é diverso e a produção do conhecimento precisa ser diversificada também. Entender que laudo serve para o desenvolvimento de uma pedagogia que atenda aquela singularidade e não e nunca como marca do fracasso. Quando se vê uma criança vendendo bala nas ruas, isso pode provocar críticas sociais – uma criança perdendo a infância trabalhando – mas a escola também rouba a infância, ela cobra da criança o desenvolvimento de trabalho intelectual em troca de um salário simbólico denominado nota, menção ou mérito. É possível aprender e ensinar sem roubar a infância, mas, para isso, é preciso tornar o lúdico uma prática cotidiana e planejada.
Algo que gostaria de acrescentar?
Quando finalizei o meu doutorado, agradeci a todas as pessoas que tiveram seus corpos usados pela medicina para que a sociedade atual se beneficia nesses usos. Surdos, cegos, amputados de guerra, pessoas Down, do X frágil, homossexuais, transexuais; a lista é grande. Agradeci porque a sociedade, às vezes por preguiça moral, adota o discurso mais fácil e rápido: é deficiente e pronto. Não deveria ser assim, é preciso desconstruir a deficiência como o diagnóstico da histeria foi desconstruído. Essa necessidade tem como proposição reconhecer as necessidades humanas das outridades e respeitar as formas e os meios e modos de viver e ser sociedade.
Paulo Freire disse que a escola é lugar de gente; então, que a escola seja a escola para toda essa gente e sua diversidade. O fato do outro ser diferente de mim não deveria me dar o poder de catalogá-lo de modo que sua subjetividade seja inferiorizada nas relações sociais. Por esse motivo, deve-se ter cuidado com as construções que evocam a anormalidade como desvalor do comportamento ou como meio de patologização do corpo. Afinal, o corpo é aquilo que somos em matéria e símbolo.