Nesta entrevista, o psicanalista Paulo Costa fala sobre transferência, tema tratado em seu artigo ‘O que o amor vira quando chega o fim? Reflexões acerca do manejo transferencial’, recentemente publicado pela Stylus Revista de Psicanálise. Ele também está em vias de publicar seu primeiro livro, em que o tema amor se faz presente com uma densidade poética mesclada entre os gêneros de poesia e prosa.
Com formação acadêmica em psicologia pela Universidade de Brasília (UnB), Paulo é pós-graduado em teorias psicanalíticas e em psicanalise lacaniana. Já atuou em hospital, com pessoas internadas em decorrência de tentativa de autoextermínio; em escola, como acompanhante terapêutico; e em algumas clínicas privadas de internação e saúde mental. Atualmente atende em consultório particular tanto no formato presencial (Brasília – Asa Sul) quanto on-line.
Explique o que é a transferência na psicanálise.
A transferência é amor. Para Freud e Lacan, a transferência está associada a um outro conceito da psicanálise: a repetição. Dessa maneira, a transferência seria essa repetição dos nossos amores, dos traços que ficaram desses amores passados, que vão se presentificar e se atualizar em novos encontros. Em um trabalho de análise, o sujeito leva esses traços de amores vividos para serem repetidos junto à figura do analista. Assim, o analisante, na presença do analista, transfere algo de uma realidade inconsciente para o analista.
De que forma ocorre a transferência na psicanálise?
É importante frisar que não existe uma forma, um modelo para que a transferência se instaure. As sessões iniciais, chamadas de entrevistas preliminares, também chamadas de tratamento de ensaio, funcionariam justamente para que o analista possa avaliar as condições para que esse trabalho possa vir a ser um trabalho de análise. A transferência é uma dessas condições. Sem ela, não seria possível tal trabalho.
Assim, levando em consideração a singularidade da psicanálise e, consequentemente, da transferência, podemos dizer que cada transferência se dá de uma forma única, no caso a caso, em que o candidato à análise incluirá o analista na sua série amorosa. É preciso que o analista, nessas entrevistas, esteja advertido da posição em que será incluído, ou seja, levar em consideração esse lugar psíquico em que é posto e se é possível de ser sustentado para o caminhar da análise.
Qual o papel do psicanalista nesse processo?
A transferência não é função do analista, mas do analisante. O que cabe ao analista é saber fazer uso dessa transferência a qual o analisante o incluiu. Uma vez incluído, o analista poderá fazer o manejo necessário desse dispositivo para a direção daquele tratamento.
Explique o que o amor tem a ver com esse processo.
Não é contingencial que o conceito de transferência em psicanálise esteja atrelado à expressão “amor de transferência”. Freud, no seu texto ‘A dinâmica da transferência’, escreve que uma necessidade de amor não satisfeita completamente pela realidade se voltará para toda pessoa nova com expectativas libidinais. E acrescenta que a figura do analista pode ser tomada como essa pessoa nova. Dessa maneira, o analisante passa a incluir o analista em suas repetições. Com relação aos investimentos que o sujeito deposita em seu sintoma, é pela transferência que esse investimento é deslocado; do sintoma para um objeto – o analista.
Em outras palavras, a libido investida no sintoma é transferida no analista. Este passa a ser esse velho novo objeto de amor, que vai se alocar na fantasia do analisante e, reeditada agora, junto ao analista. Uma vez que a transferência implica indubitavelmente o analista, a questão é saber de que maneira e como este responde ao apelo do dito amor.
Quais os demais elementos que entram nessa equação? Explique.
Gostei que você usa o termo equação, pois Lacan formaliza a transferência em uma equação no seu texto ‘Proposição de 9 de outubro de 1967’.
Na fórmula, o S (na parte superior) está representado como o significante da transferência, um significante do analisante que vai em direção a um significante qualquer (Sq) – o que menciono no meu artigo, que pode ser o nome do analista, um cheiro, um objeto – e desse encontro algo vem a se fazer representar para dar um lugar ao analista. Na parte debaixo da fração, temos os elementos s (S1, S2 …Sn), ou seja, esse encontro será dividido por essa relação onde s (que é chamado por significado) desempenha um papel sobre essa rede (S1, S2 …Sn). Essa rede tem a ver com o saber inconsciente.
Podemos traduzir também essa equação pelo o que ocorre nesse tempo inicial de buscar uma análise. O paciente é levado por uma história que, em algum momento, parece não ter acontecido como era esperado. Irrompeu um sintoma indesejado, um infortúnio da vida. Temos à nossa frente alguém disposto a falar para nós sobre algo de muito íntimo, talvez algo sobre o que nunca falou para ninguém – nem para si mesmo, muitas vezes. E aí temos um elemento central para a transferência: um saber. Pois, nessas primeiras entrevistas, encontramos alguém que supõe que nós saibamos algo sobre tal sofrimento.
Lacan nos mostra que essa relação é bastante estreita entre saber, transferência e amor. Irá dizer que amamos aquele que nós julgamos saber algo sobre nós. Se pensarmos nos nossos primeiros objetos de amor, ou seja, nossos pais, teremos uma perspectiva disso. Afinal, mesmo antes de estarmos amparados pela fala, quando ainda bebês, os pais – na melhor das hipóteses – pareciam saber exatamente a razão de nosso sofrimento.
Quando chega o fim do amor, seria o fim de uma transferência? Explique.
O processo de escrita desse artigo foi me levando a essa indagação. Se temos que o início de um tratamento se dá via o estabelecimento de uma transferência e se transferência é amor, logo temos que a entrada em análise se daria por essa condição. Por esse mesmo raciocínio, somos levados talvez a pensar que o fim de uma análise se daria com o fim dessa transferência. No entanto, quando voltamos ao título do artigo, temos o termo ‘o que o amor vira quando chega o fim?’. Acho que se trata de uma virada. O amor continua, mas de uma outra posição subjetiva. O amor ligado a essa dimensão imaginária, que tem a ver com a ideia de completude, a metade da laranja, um saber que me falta e que o outro possui.
Isso é comum de comparecer em um tempo inicial, nas entrevistas preliminares. O que chamamos de uma transferência voltada para o registro do imaginário. Esse amor vai tomando outras dimensões no decorrer de um trabalho de análise. Dessa forma, para além desse fascínio imaginário, o analista, em seu manejo com a transferência, visa o que Lacan nomeia por amor como dom ativo. Amar um ser para além do que ele parece ser. Acredito que essa seja a virada e, assim, a transferência passa a tomar um lugar em um outro registro, no registro do simbólico.