O transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) é um distúrbio neurobiológico relacionado a uma combinação de fatores genéticos, ambientais e sociais. Afeta a região frontal do cérebro responsável por inibir comportamentos inadequados e encarregada da memória, atenção, organização, autocontrole e planejamento. Por isso, é muito comum que crianças com TDAH apresentem sintomas como desatenção, hiperatividade, impulsividade e dificuldade para cumprir regras.
Nesta entrevista, a psicóloga Luciana Tisser aprofunda o assunto. Ela é graduada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde também fez mestrado e doutorado em ciências da saúde com ênfase em neurociências. Especialista em neuropsicologia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), tem pós-doutorado em psiquiatria da infância e adolescência pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professora dos cursos de especialização do Instituto de Terapia Cognitivo-Comportamental (InTCC), colaboradora do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer) e psicóloga do Grupo Hospitalar Santa Casa/Hospital Santo Antônio.
Luciana é autora, entre outras obras, do livro ‘Por que eu tenho dificuldade de atenção? Crianças entendendo o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH)’ e do ‘Baralho do TDAH’, ambos publicados pela Sinopsys Editora. Trata-se de ferramentas para psicoeducação, automonitoramento, treino para solução de problemas e reestruturação do sistema de crenças. Têm como objetivo auxiliar pacientes e familiares a compreenderem os sintomas e prejuízos do transtorno, desfazendo rótulos que frequentemente o acompanham.
Qual o objetivo principal do livro e a partir de qual faixa etária é indicada a leitura?
Quando criei o livro, o objetivo principal era ter um material lúdico, ilustrativo e interativo por meio do qual a criança pudesse entender e ser psicoeducada sobre os vários sintomas do TDAH e suas interferências nas diversas áreas da vida, como no âmbito familiar, na escola, entre os amigos. Não havia algo nesse formato para o público a partir dos 5 anos até o início da adolescência, por volta de 14 anos. E sempre digo que é preciso entender o que se tem, em qualquer idade, para que possamos mudar e para que o processo de mudança faça sentido. Os próprios pais dos pacientes gostam muito do material, inclusive identificam sintomas e si mesmos muitas vezes, lembrando que se trata de um transtorno muito prevalente do ponto de vista genético. Trata-se de um livro esclarecedor em que procurei colocar mais informações visuais do que escritas de forma que crianças com TDAH consigam ler e entender.
O que é TDAH e como se manifesta na criança?
O TDAH está dentro dos transtornos de neurodesenvolvimento, pois vai aparecendo ao longo do desenvolvimento da criança, à medida que ela vai crescendo e tendo mais exigências externas para administrar ao mesmo tempo, seja em casa, seja na escola. Geralmente é diagnosticado em torno dos 5 ou 6 anos, mas pode ser identificado mais cedo.
Existem três subtipos de TDAH: o desatento, em que o carro-chefe dos sintomas é desatenção; o hiperativo-impulsivo, em que o carro-chefe é a impulsividade e a hiperatividade; e o combinado, em que o indivíduo tem tanto as características desatentas quanto impulsivas e hiperativas. O diagnóstico é clínico, ou seja, feito a partir de sintomas e prejuízos na funcionalidade da pessoa descritos no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM).
Do ponto de vista neurológico, crianças com TDAH têm gaps funcionais neuroquímicos – relacionados ao longo tempo de maturação cerebral humana – que resultam em dificuldade nas funções executivas, que são capacidade de iniciativa, capacidade de planejamento, de tomada de decisão, de organização e flexibilidade mental. Funções essas relacionadas ao lobo frontal, principalmente o córtex pré-frontal, cuja tarefa é inibir interferências do nosso sistema límbico, ou seja, nosso cérebro mais instintivo, mais irracional, mais dotado das nossas vontades e sem muita interferência do que é certo e errado.
O TDAH, portanto, é muito mais do que dificuldade de atenção. Engloba dificuldades em todas as funções executivas mencionadas e, dependendo do nível de gravidade, podem acarretar problemas importantes de comportamento, disciplina e cognitivos. Uma visão errônea que havia no passado, quando se começou a diagnosticar o transtorno, era de que todas crianças com TDAH tinham dificuldades escolares. E isso não é verdade, porque a área intelectiva é de outra ordem, não está relacionada apenas com funções executivas e atenção. Ela é muito maior. Portanto, uma criança com TDAH pode ir muito bem no colégio, porque sua boa capacidade cognitiva compensa todo o resto.
Outro erro lá do início era descartar o TDAH se houvesse ansiedade. Hoje se sabe que há muitas comorbidades e que o TDAH pode estar associado, principalmente, com transtornos de humor, ansiedade e disruptivos, do controle do impulso e da conduta. Eu brinco que é difícil o TDAH vir purinho, pois ele geralmente vem acompanhado de outros transtornos.
Há cura? E como é feito o tratamento?
Existem estudos que mostram que o TDAH pode se autorregular na idade adulta com a maturação do córtex pré-frontal cerebral, a qual ocorre por volta dos 24 anos segundo estudos atuais. O fato de a pessoa se livrar do transtorno também está muito relacionado ao tratamento correto. Por isso que é tão importante sensibilizar os pais para que percebam a importância de tratar os filhos do ponto de vista medicamentoso. E, sim, TDAH requer, na maioria das vezes, tratamento combinado: psicoterapia e medicação. Salvo algumas raras exceções em que é muito leve e somente a psicoterapia dá conta. Quanto mais cedo for feito o tratamento combinado, mais êxito haverá na melhora dessas crianças, no monitoramento dos sintomas, em torná-las mais funcionais e assertivas e futuros adultos mais funcionais, inclusive podendo se livrar do diagnóstico e dos sintomas que prejudicam sua vida.
Que outras dicas você daria aos pais?
Todas as crianças precisam de monitoramento constante, mas a criança com TDAH precisa muito mais. Ela vai demandar muito mais dos pais, porque, por si só, não consegue se organizar. Precisa, portanto, de um suporte sistemático dos pais. Não adianta só dizer a ela que precisa organizar sua agenda e sua mochila. Ela vai precisar que alguém seja o auxiliar dela para se organizar e executar suas tarefas. Caso contrário, não vai levar o livro para a escola, não vai fazer o tema, nem fazer anotações da aula. Uma dica é ter um mural no seu quarto e os pais o atualizarem constantemente e fazerem feedbacks diários: ver o que teve no dia, revisar, ver os temas a fazer, os prazos dos trabalhos e datas de provas.
Punições em caso de combinações descumpridas não funcionam e ainda resultam em efeitos colaterais emocionais como baixa autoestima, porque os pais exigem da criança o que ela não pode dar. E se uma criança com TDAH está totalmente perdida na escola ou desorganizada, quem fracassou não foi ela, mas toda a rede de apoio que deveria ter tido para conseguir se organizar. E esse apoio e monitoramento precisam ser imediatos, diários e constantes. Dá trabalho? Sim. Mas se queremos auxiliar os filhos, esse é o caminho.
Por que as pessoas devem comprar o livro, seja para uso no contexto clínico, familiar ou outro?
Principalmente para entender o que realmente ocorre no cérebro da criança com TDAH, quais as principais dificuldades que ela pode experimentar, que os sintomas não estão relacionados ao querer ou não querer, pois toda criança quer conseguir, mas, se ela tem TDAH, não consegue. O livro desmistifica que o TDAH é uma vontade da criança e faz as pessoas entenderem que se trata de um transtorno, ou seja, algo que dificulta, que transtorna a vida do sujeito ou a vida de outros. A rede de apoio tem que entender quais são as dificuldades para poder se sensibilizar e auxiliar essa criança. E poder monitorar.