Sabemos que a humanidade passou por diversas transformações sociais e culturais. Até o século passado, ainda era possível ver um contingente de pessoas que sabia exatamente o que desejavam fazer e obter das suas vidas, pois a tradição familiar lhe apontava o caminho. Hoje, diante da infinidade de opções, é comum ver pessoas perdidas que relatam sentir um imenso e grande vazio.

O psiquiatra e neurologista Dr. Viktor Emil Frankl (2011) propôs o conceito de vazio existencial para descrever a origem desta situação. Para ele, trata-se de um vazio existencial que resulta da perda das tradições e do distanciamento dos instintos.

O filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (2010) é outro autor que, conhecido como o pai do existencialismo, pareceu prever já no século XIX, os rumos da humanidade no mundo atual. Ele apresenta com maestria como um mundo de múltiplas opções exigiria o exercício da escolha humana e inaugura a concepção de que a angústia é uma determinação universal, ou seja, todo ser humano ao deparar-se com a necessidade de escolher seu futuro, passaria pela angústia.

Apoiado no conceito de liberdade, Kierkegaard (1968/2010) propõe que o saber psicológico deveria estudar a existência humana em sua multiplicidade existencial, propondo uma interdependência entre liberdade e angústia, sendo esta última o que abre os caminhos para a realização do ser.

Nos rastros da omissão

Seguindo os rastros da omissão encontraremos, o que Frankl (2011) chamou de totalitarismo e conformismo. Enquanto o primeiro diz respeito ao fato de a pessoa fazer aquilo que outras a mandam, o segundo diz respeito ao ato de fazer o esperam que ela faça.

Frankl (2011) afirma que, ao nos omitirmos de responder à vida e às situações em que nos encontramos, é provável que estejamos agindo segundo o totalitarismo e/ou o conformismo. O resultado disso acaba sendo o nascimento ou crescimento do vazio existencial (Santos, 2016).

Nos limites da tensão

Indo além de reflexões psicológicas, percebemos que os artistas nos dizem muito sobre o viver.

Do alerta ao perigo de viver (e do estar vivo) de Guimarães Rosa, ao saber viver de Dona Canô, nos encontramos no enfrentamento de Clarice Lispector e na liberdade de Dercy Gonçalves. Esse mix nos ajuda a pensar nosso mundo atual. As tensões de todos esses encontros podem revelar aquilo que é propriamente humano: o sentido de vida. Para além da introspecção e no direcionamento a um futuro a ser realizado, Frankl (2011) apresenta a dimensão noética como uma das dimensões do ser humano capaz de ajudá-lo na transcendência do vazio existencial e no encontro do sentido de vida. Frankl (2011) propõe que o ser humano seja compreendido sob sua perspectiva ontológica dimensional, que, simplificadamente, é constituída pela hierarquização das dimensões somáticas (física), psíquica (mente) e noética (espiritual).

Essa hierarquização, para ele, institui a dimensão noética como a mais humana de todas, a que nos possibilita encontrar sentido na vida. Tanto para Frankl quanto para Kierkegaard, a vida é permeada por tensões e a fuga deste tensionamento pode desdobrar-se naquilo que Frankl denominou neurose noogênica, ou seja, a frustração existencial que culmina no esvaziamento de sentido da vida humana.

Vale ressaltar que nem Kierkegaard e nem Frankl propõem que a angústia e o vazio existencial sejam patologias; ao contrário, ambas são condições que podem aparecer em qualquer fase da vida humana.

Assim sendo, aquilo que é normal pode vir a ser potencialmente adoecedor à medida que o ser humano não enfrenta a situação exercendo sua liberdade para escolher. Ao contrário, pela mesma liberdade, ele adota uma postura passiva perante a vida que o leva ao vazio existencial. Apesar do potencial adoecedor desse vazio, é pela dimensão noética que conseguimos realizar nossos valores e sentidos de vida que, assim, ultrapassam os condicionantes de nosso tempo.

Para ilustrar estas conjecturas teóricas, passaremos a contar três histórias reais de casos clínicos de pacientes, cujas histórias podem ser facilmente observadas na vida cotidiana.

A menina obediente

Vanusa, mulher cis, de 25 anos, e negra chega à psicoterapia apresentando claras manifestações do vazio existencial. Por boa parte do seu processo psicoterapêutico ela se mostrava “refém” do totalitarismo imposto pela figura materna. Seguia as vontades e os desígnios da mãe, por mais que se percebesse infeliz com sua própria vida.

Embora alegasse um desejo por liberdade e se tornar adulta, Vanusa, que já era maior de idade, permanecia no automatismo da época da adolescência. Ela pedia autorização para a mãe para ir a qualquer lugar ao invés de, simplesmente, comunicar aonde iria. Se a mãe a impedisse por motivos arbitrários, ela se privava de sair.

Vanusa clamava por uma vida de independência, mas não percebia por si mesma as diversas pequenas amarras que a prendiam a uma vida de submissão e falta de autenticidade. Uma postura de certo medo, revestido com uma roupagem de respeito, a acompanhava. Segundo ela, sua mãe possuía um humor explosivo.

Durante as sessões de terapia, ao ser confrontada com a situação por meio do questionamento socrático, “método usado na psicoterapia em geral e na Logoterapia em especial através de perguntas que tem por intenção “dar à luz” a pessoa espiritual e ajudar o paciente a descobrir um sentido” (Guberman e Soto, 2005, p.43), a paciente justificava permanecer nas mesmas condições autodeclarando que queria ser “uma boa filha”.

Por diversas vezes a paciente declarava se sentir “ferida emocionalmente”, por ataques ditos “gratuitos”, segundo ela, da sua mãe, que sempre a magoava com agressões verbais. Parecia ocupar um lugar subjetivo de alguém presa a um papel que lhe conferia um lugar estanque, do qual desejava sair, mas aguardava a permissão da mãe para tal. Parecia que precisava de autorização externa para concretizar seus próprios desejos.

Ao longo da terapia, Vanusa foi percebendo seus próprios desejos, não se limitando à uma única posição de não desagradar à mãe, acessando seus recursos noéticos de liberdade e responsabilidade para se tornar capaz de perceber que ela mesma permitia o cenário de clausura em que se encontrava.

A culpa é minha?

A paciente Roberta, de 21 anos de idade e negra, manifestava em duas experiências distintas o vazio existencial: o conformismo. Primeiramente, ela lutava avidamente para não cair numa experiência de conformismo repetindo o padrão de conjugalidade dos seus pais, que era abusivo e tóxico.

Num segundo aspecto, ela vivenciava, embora de forma menos consciente, o conformismo também nas relações de amizade. Sobre o relacionamento dos pais, Roberta demonstrava franco esforço de fazer diferente deles em relação ao seu próprio namoro, pois relatara que o pai fazia uso de força e que chegou até mesmo a ser afastado por medida protetiva, mas que apesar disso a mãe o aceitara de volta posteriormente.

Com as amizades, ela literalmente se conformava em permanecer num grupo de amigos o qual já não fazia mais sentido para si, cujas pessoas não tinham afinidades de pensamento com ela.

Ainda assim ela os considerava amigos, embora, através do questionamento socrático, verificasse que eles não agiam numa perspectiva saudável e verdadeira de amizade. Pela necessidade de pertencimento a um grupo e medo de rejeição e desaprovação, ela permanecia junto daquelas pessoas.

Humanos demais

A paciente Lara, de 18 anos e negra, iniciou a psicoterapia relatando sua experiência de perda por morte. Ela passou por um esvaziamento de sentido devido a um processo de luto muito doloroso. Ela perdera uma pessoa muito querida que era uma grande referência para ela em diversos âmbitos de sua vida: pessoal, familiar e profissional .

O valor de experiência era a base principal da existência de Lara e essa perda tinha impactos ainda mais dolorosos por conta disso. Parecia relatar que a partida deste ente querido a deixou esvaziada de sentido, já que ele era uma fonte de sentido na jornada dela. Nesse prisma, a superação do vazio deixado pelo luto se deu no investimento no valor de atitude, a fim de  ressignificar todo o processo da perda, através de uma perspectiva de  legado deixado pelo ente amado que partiu. 

E MAIS…

Lidando com o vazio

Ao nos depararmos tanto com a angústia quanto com a constatação do sentimento de vazio existencial, não devemos nos alarmar. Trazer à tona a angústia e enfrentá-la, assim como o vazio existencial, é a atitude mais humana que podemos ter. Isso só é possível pelo exercício noético do ser através da realização de valores e sentidos propriamente humanos e singulares, como explicitado nos casos supracitados.

Referências
Frankl, V. E. (2005). Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Aparecida: Idéias e Letras.
Frankl, V. E. (2011). A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da Logoterapia. São Paulo: Paulus.
Guberman e Soto (2005), Diccionario de Logoterapia.
Kierkegaard, S. (1968). O conceito de angústia. São Paulo: Hemus. (Publicado em 1844).
Santos, Ranielly Cristina Silva. Do Vaciuus ao Logos [manuscrito]: a logoterapia em resposta ao vazio da sociedade contemporânea/Ranielly Cristina Silva Santos. — 2012. 24 p.