A dupla adoecida, caracterizada por questões pré-edípicas, é o sintoma que denuncia algo que não vai bem na relação entre os corpos e as mentes de mãe e filha.
O filme “Enrolados”, produzido por Walt Disney Pictures, adaptação da fábula “Rapunzel”, dos Irmãos Grimm, me despertou a ideia de pensar a dupla mãe e filha de maneira lúdica.
No filme podemos perceber que a filha, Rapunzel, é a extensão fálica da mãe que não aceita o limite do tempo e projeta na filha a possibilidade de realizar seus próprios desejos.
A existência de um tipo de herança psíquica cujo conteúdo é permeado por objetos transgeracionais, os não-ditos que atravessam gerações, pode encontrar um ambiente-mente receptivo aos não-ditos, gerando o sintoma e um viver não criativo.
Sob a ótica da Psicanálise
Caros leitores, faço o convite a fecharem seus olhos e ouvirem Wiegenlied, Op. 49, de Johannes Brahms, publicada pela primeira vez em 1868. Para aqueles que não a conhecem, sugiro essa experiência estética inenarrável.
Começando assim esse artigo, convido-os a pensarmos “juntos” a relação entre mães e filhas: a raiz psíquica dos dolorosos e intermináveis conflitos familiares femininos. Porém, penso que os conflitos podem ser termináveis. E é aí que entra a psicanálise.
Neste texto abordarei o sagrado e o profano desta primeira dupla de todos nós. Desde seu início como ciência, a psicanálise se ocupa do bebê e de suas imagos parentais, ou seja, mãe, pai e todos aqueles que exercem essas funções no início da vida.
Freud começa pensando a origem dos traumas na infância a partir de uma suposta experiência traumática real, de ordem sexual com algum familiar. Ele abandona essa ideia em favor da realidade psíquica e não factual, e postula o conceito de complexo de Édipo que nos norteia até os dias de hoje.
De lá para cá muitos autores foram expandindo os conceitos psicanalíticos, e a maneira como entendemos a conflitiva edípica vem sendo construída todos os dias por meio da nossa prática clínica. Desde o início temos que lidar com a tríade, seja ela, bebê – mãe – pai, a conflitiva clássica, ou a que Melanie Klein nos propôs – boca, seio e pênis, se pensarmos a partir da escola inglesa.
Para que o continente seja shelter[1], a mãe precisa sonhar o seu bebê, a sua hospedaria, a manjedoura precisa estar receptiva a esse novo ser que chega com suas características, sua bagagem inata e com toda a sua predisposição para se relacionar com alguém.
Proponho pensarmos uma dupla mãe e filha adoecida e com dificuldades de lidar com o feminino como um sintoma que informa a respeito de conflitos psíquicos, cuja questão nuclear é a relação mãe e filha, caracterizada por aspectos pré-edípicos.
A inclusão do terceiro como Lei, que interdita a Folie à Deux, delírio que se desenvolve em um sujeito envolvido em um estreito relacionamento com outra pessoa (indutor ou caso primário), que segundo Lasègue e Farlet (1877), ainda não se deu. Por algum motivo a mãe impera soberana e fálica, detentora do saber e de segredos.
O filme “Enrolados” produzido por Walt Disney Pictures, adaptação da fábula “Rapunzel”, dos Irmãos Grimm, me despertou para a ideia de pensar a dupla mãe e filha “adoecida” de maneira lúdica. Primordialmente, porque é o lúdico que falta. A inanição não é só corpórea, é inanição psíquica, inanição simbólica, inanição criativa.
Em um trecho do filme, a “mãedrasta” (mamãe Gothel) mostra não se lembrar do aniversário de sua filha (Rapunzel), contando para nós que o outro, a sua filha, não é vista como separada dela, portanto não deve envelhecer.
Aniversários denunciam que os anos passam, contam para todos que não viveremos para sempre. Rapunzel é vista pelos olhos da mãe má como sua extensão fálica. No filme, a mãe tenta reeditar na filha seus desejos narcísicos. A mãe captura o desenvolvimento de sua filha para usar e viver sua juventude e beleza.
Freud e o conceito de narcisismo
Freud (1914) desenvolve o conceito de Narcisismo na teoria do desenvolvimento libidinal, falando sobre uma fase na qual o indivíduo toma a si próprio como objeto de amor.
Espera-se, com o desenvolvimento libidinal, somado às exigências do mundo, que o sujeito saia desse estado narcísico para conviver no mundo das diferenças.
Rosenfeld (1988), após estudo minucioso do artigo de Freud, Sobre O Narcisismo: Uma Introdução, de 1914, nos fala a respeito do tema:
“Ao se considerar o aspecto libidinal do narcisismo, pode-se observar que a supervalorização do self desempenha um papel fundamental, baseado principalmente na idealização do self. A idealização do self é sustentada por identificações projetivas e introjetivas onipotentes com objetos ideais e suas qualidades. Desse modo, o narcisista sente que tudo que é valioso nos objetos externos e no mundo externo é parte dele ou é controlado de forma onipotente por ele”. (Rosenfeld, 1988, p.139).
A mamãe Gothel de Rapunzel encontra nos cabelos longos da filha a expressão de falicidade, do suposto poder que ele representa – a possibilidade de manter-se jovem para sempre.
O cabelo de Rapunzel é mágico e tem o poder de curar e rejuvenescer as pessoas. Desta forma, a mamãe Gothel se relaciona com parte da filha, não pode vê-la enquanto separada, diferente e total. Rapunzel fica como extensão da própria mãe, “um corpo para dois” (Mc Dougall, 1999). No início a mãe empresta o corpo para gerar a filha e depois a aprisiona na torre-corpo-mente na qual sua mãe sabe mais![2]
A mãe não permitindo o saber da filha, a mantém na torre tentando aterrorizá-la pelos perigos da vida. Adami-Lauand (2010), nos aponta para a existência de um tipo de herança psíquica cujo conteúdo é permeado de objetos transgeracionais. Eles se caracterizam por conteúdos que a geração anterior, no caso a mãe, não conseguiu elaborar e transformar e, desta forma, são carregados de segredos, frustrações, traumas que impedem a geração seguinte de ter a experiência de uma vivência separada da anterior (mãe).
A herança destes objetos atravessa gerações e se encontrar um ambiente-mente receptível, pode provocar sintomas e um viver não criativo. Usualmente esta herança passa despercebida pela dupla e passa a se revelar na relação que mãe e filha constroem durante sua existência.
Adami-Lauand ainda nos diz:
“O regime narcísico das funções de apropriação e intrusão força a geração seguinte a uma adaptação alienante na qual há a transmissão de uma história que não lhe pertence, mas lhe habita a mente, impedindo qualquer possibilidade de desejo e existência de um mundo mental próprio”. (2010, p. 5).
Meltzer (1992) nos oferece a ideia do fenômeno do claustro para pensarmos as diversas fantasias em relação à mãe, mais precisamente ao corpo dela. As fantasias ligadas à figura materna e ao seu corpo são relacionadas tanto à existência intrauterina, como também, às partes do corpo da mãe. Ele nos chama a atenção para a tendência à apreensão do belo. Mamãe Gothel está sempre linda, jovem, perto de Rapunzel.
Tentando sustentar um ideal de perfeição, aprisiona a filha em um suposto mundo fantástico, sem perigos externos. Mas nós sabemos, na experiência em nossos consultórios, que o aprisionamento materno é capaz de alienar e subtrair a possibilidade de serem sujeitos desejantes e responsáveis pelos seus destinos.
Precisamos salientar que Rapunzel é o estereótipo da menina linda. Para Rapunzel a beleza é natural e ela quase não se dá conta disso. Ela quer dar vazão a sua criatividade, mas a torre é o limite. A mãe, com ideal tirânico de perfeição, não pode contemplar o irreal de seu desejo-necessidade.
Chamo de desejo-necessidade a equação simbólica (Segall, 1991) feita na qual o simbólico é fantasia para encobrir o que ainda não se pode fantasiar. Não há inserção na esfera do desejo-fantasia, a mãe ainda não está, não foi autorizada a ser e segue perseguida por ter que ter, não havendo tolerância para a falta.
Assim, Rapunzel segue em busca de realizar o desejo da mãe, sabendo/sentindo que sua história precisa ser contada. Precisamos atentar para o fator genético que pode contar a favor de nossas meninas aprisionadas.
Muitas, como Rapunzel, demonstram uma força pulsional vital que as ajuda, e nos ajuda, a construir ferramental psíquico como ancoradouros das vivências terroríficas de aprisionamento e aniquilamento, muitas vezes presentes nas histórias de vida de nossas pacientes.
As luzes das lanternas que são lançadas aos céus todos os anos, no dia do aniversário de Rapunzel, por seus pais verdadeiros e amorosos são para ela. As lanternas, brilhantes, representam, a partir do meu olhar, a pulsão de vida que impulsiona Rapunzel em busca das “palavras perdidas” (Miranda, 2007, p. 2r.8). As lanternas impulsionam Rapunzel a buscar a sua história e seu verdadeiro lugar.
Com a entrada do terceiro, que interdita a dupla “mãedrasta” e filha, Rapunzel cria coragem e sai para conhecer o mundo com o “príncipe-sapo”. Ela corta os cabelos e volta a viver no seu reino. Rapunzel e seu príncipe são felizes. Não sabemos se para sempre, mesmo porque para sempre é muito tempo e pertence aos contos de fadas, justamente de onde tentamos resgatar essas meninas-torres.