O livro Lacan para analistas (Appris Editora) trata da proposta do autor, o psicanalista José Marcus de Castro Mattos, de reinvenção teórica e prática da psicanálise no Brasil com base no ensino do francês Jacques Lacan (1901-1981). Tal proposta não é inédita, visto que, nos anos 1980, o psicanalista Magno Machado Dias, conhecido como MD Magno, tentou algo semelhante. “Porém Magno e seus epígonos não foram suficientemente audazes a ponto de – como faço – exibir a existência de uma psicanálise brasileira cuja matriz textual seria o romance Grande sertão: veredas (1956), do poeta e escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967)”, afirma.

Com formação pela Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano (EBPMF) e pela Escola Letra Freudiana, ambas no Rio de Janeiro/RJ, Mattos é psicanalista presencial desde 1990 e on-line desde 2020. Também é professor universitário aposentado e fundador, diretor e coordenador-geral da Escola Popular de Psicanálise Brasileira: João Guimarães Rosa (EPPB: JGR).

Do que trata, qual o objetivo e o que o motivou a escrever o livro Lacan para analistas?

O meu livro Lacan para analistas (Appris Editora: 2024, 583 páginas) trata de minha proposta de reinvenção da psicanálise em nosso país, baseando-me, para a consecução dessa proposta, no ensino do psicanalista francês Jacques Lacan. Portanto, o objetivo é este: modéstia às favas (porque não é disso que se trata), proponho uma reinvenção prática e teórica da psicanálise no Brasil.

O que me motivou a escrevê-lo é o fato de eu praticar a psicanálise há 35 anos na cidade do Rio de Janeiro, seja por meio de atendimentos de analisandos, seja por minhas participações em escolas lacanianas, seja, ainda, por publicações especializadas (livros, revistas, etc.). Penso que eu poderia, com a publicação do livro, contribuir para a formação de meus pares analistas, sobretudo os lacanianos, tendo por horizonte a proposta de reinvenção da psicanálise em nosso país.

Por que a escolha de Lacan para o título?

Porque o ensino de Lacan pauta cada página do meu livro, inclusive nos momentos em que procuro retificar alguns conceitos e criticá-lo (no sentido kantiano do termo: ‘quais são as condições de possibilidade de um discurso?’). A minha análise pessoal (como está dito na página intitulada ‘Agradecimentos’) e a minha formação são devidas à extraordinária contribuição de Lacan para a psicanálise, posto que, a meu juízo, ninguém melhor do que ele soube ‘desimaginarizar’ a clínica psicanalítica inaugurada por Sigmund Freud (1856-1939), protegendo os analisandos do aluvião contratransferencial advindo de psicanalistas inadvertidos para determinados fatos de estrutura.

Como o livro se diferencia de outras obras sobre Lacan?

A diferença está em minha proposta de reinvenção da psicanálise em nosso país. Essa proposta não é inédita, visto que, nos anos 1980, o psicanalista carioca Magno Machado Dias (conhecido como MD Magno) tentou algo semelhante por meio da fundação do hoje mítico Colégio Freudiano do Rio de Janeiro e da criação de alguns conceitos psicanalíticos próprios. Porém Magno e seus epígonos não foram suficientemente audazes a ponto de – como faço – exibir a existência de uma psicanálise brasileira, cuja matriz textual seria o romance Grande sertão: veredas, do poeta e escritor mineiro João Guimarães Rosa.

Essa é a diferença principal para com as demais obras sobre Lacan publicadas no Brasil. Entretanto, há outras importantes diferenças, sobretudo as que dizem respeito à criação de conceitos analíticos até então inéditos, tais como ‘alíngua sertoma’, ‘plataforma discursiva’, ‘discurso redemunho’, ‘gramática analítica’, etc.

Por que Lacan ainda é tão relevante para a psicanálise contemporânea?

Lacan é ‘em sempre’ (expressão criada por Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas) sumamente relevante para a psicanálise: ele é o único analista que forneceu as bases lógico-estruturais do dispositivo clínico do qual Freud foi o primeiro ‘analisando selvagem’ e não o ‘primeiro analista’ (Freud é tido erradamente como ‘pai da psicanálise’). Há, em meu livro um texto intitulado precisamente Freud: um analisando selvagem, no qual forneço as razões conceituais pelas quais ele não foi, sob hipótese alguma, o ‘pai da psicanálise’. Convido os leitores à sua apreciação.

Retomando: sem o ensino de Lacan (seu ensino oral e o textual), a psicanálise teria se degradado em psicologia e/ou em uma terapia qualquer. Aliás, o que vemos hoje por aí são ‘analistas influencers’ movendo mundos e fundos para rebaixar a psicanálise à psicologia, subsumindo-a e indexando-a ao discurso universitário, tudo para que ela jamais volte a ser a ‘peste freudiana’ (peste que, felizmente, ela já o foi um dia).

Nesse contexto, os Escritos (1966) e O seminário (1953-1980), de Lacan, são os pilares que impedem e impedirão a implosão da psicanálise pelos ‘idiotas da objetividade’ (imortal expressão de nosso Nelson Rodrigues [1912-1980]).

Como o ensino de Lacan pode contribuir para a prática clínica atual?

O ensino de Lacan é absolutamente decisivo para a prática clínica atual porque, a meu juízo, esse ensino é o único a tematizar e esclarecer de modo suficiente o elemento que verdadeiramente está em jogo no dispositivo analítico, qual seja, o desejo – entendido a título conceitual enquanto ‘falta como objeto’. Assim, para nós, analistas freud-lacanianos, uma análise consiste no ordenamento discursivo da ‘falta como objeto’ (desejo) no campo da ‘falta como saber’ (inconsciente). O desdobramento dessa minha resposta encontra-se em vários textos do meu livro Lacan para analistas; convido os leitores à verificação.

O livro é indicado apenas para analistas experientes ou também para estudantes e iniciantes em psicanálise?

O meu livro Lacan para analistas, apesar do título aparentemente restritivo, está aberto à leitura e ao entendimento de pessoas interessadas nos temas abordados por ele, sejam estudantes da área ‘psi’ (psicanálise, psicologia, psiquiatria), sejam analisandos em tratamento, sejam os oficiantes da referida área (psicanalistas, psicólogos, psiquiatras), sejam, enfim, pessoas leigas.

Explique sua afirmação: “A psicanálise praticada e pensada no Brasil é uma mixórdia colonizada, intimidada dos pés à cabeça pelo alemão de Freud, pelo inglês de Winnicott, pelo ilegivês de Lacan, pelo lerolês de Joyce, etc.”

De fato, os psicanalistas que praticam e refletem sobre a psicanálise em nosso país ainda não se deram ao trabalho de fazê-lo em ‘brasilês canibalírico’, ou seja, infelizmente ainda não lhes passou pela cabeça que nossos analisandos (os ditos ‘pacientes’) não fazem suas análises nem em português, nem em alemão, nem em inglês, nem em outra língua a não ser naquela esplendidamente materializada nas obras de nossos poetas, romancistas e escritores em geral, tais como Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre, João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa, etc. No caso do meu livro, inspira-me sobretudo o romance Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa.

Na sua opinião, quais as principais lacunas da psicanálise no Brasil e suas consequências?

A principal lacuna da psicanálise praticada e pensada no Brasil consiste, como lembrei na resposta anterior, em sua abjeta colonização: ela é incapaz de estruturar o dispositivo analítico na língua que falamos, qual seja, o ‘brasilês canibalírico’ (tupiportuguesiorubá). A consequência desse colonialismo é o mau ordenamento discursivo dos analisandos no desejo (‘falta como objeto’).

De que forma é possível suprir essas demandas?

Para ‘decolonizar’ a psicanálise em nosso país, é preciso que os psicanalistas ‘brasileiros’ leiam, releiam e tresleiam Grande sertão: veredas. Simples assim.

O que é e quais os objetivos da Escola Popular de Psicanálise Brasileira: João Guimarães Rosa (EPPB: JGR)?

A Escola Popular de Psicanálise Brasileira: João Guimarães Rosa (EPPB: JGR) objetiva a formação continuada (on-line) de analistas brasileiros, valendo-se para isso dos textos de Freud, Lacan e Guimarães Rosa (entre outros). Fundada em 1º de janeiro de 2021, estamos há quatro anos nos reunindo semanalmente para ler e comentar vários textos dos autores citados anteriormente, além de nos reunirmos para a apresentação e o debate de casos clínicos. Nossos membros são psicanalistas residentes em vários estados do Brasil. Temos um canal no YouTube intitulado Lacan para analistas, no qual postamos os vídeos de nossas reuniões.