O parto em si pode ser entendido como a primeira perda primordial do ser humano. No nascimento, morre uma filha para nascer uma mãe, que perde sua silhueta de grávida para ganhar novos contornos com seios fartos para amamentar seu bebê, que também perde a proteção da vida intrauterina.
A natureza tem diversas formas de anunciar uma novidade. Quer seja pelo germinar da semente lançada ao solo, quer seja pela polinização das abelhas, mas em todos os casos são sinais do mundo informando que há algo novo para acontecer em breve.
Já nascemos morrendo
Conosco, humanos e mamíferos, não é diferente. Já nascemos morrendo! Isso porque, após a fecundação e nove meses de gestação, o novo ser que nasce morre como feto para nascer como bebê, um ilustre desconhecido para seus pais. O nascimento é um evento envolto por perdas, reais e simbólicas, que representam as transformações necessárias para a chegada de uma nova vida. Perdemos um pouco de nós como filhos para fazer nascer nossos filhos! Qual grávida não experimentou uma sensação de vazio ao se deparar com a perda de sua barriga e um desespero que a faz crer que melhor seria morrer por não saber o que fazer para seu recém-nascido parar de chorar? Ah, esse recém-nascido que reina absoluto como “Sua Majestade o Bebê”, como já dizia Freud em seus escritos sobre o narcisismo de 1914. E é o nascimento deste bebê, desejado e planejado ou não, mas quase sempre temido, que se imprime o início das experiências humanas existenciais de perdas, mortes e lutos.
Ao longo da existência humana, desde o parto, ou seja, o nosso nascimento biológico e também simbólico, nos envolvemos em diversos processos de perdas e mortes. A chegada de um bebê é em si um processo subjetivo e simbólico baseado em perdas e ganhos de todos os envolvidos no cenário do nascimento. No drama do surgimento de um ser humano, o bebê, os pais perdem seus papeis sociais como filhos para ganharem novos scripts para seus novos personagens como pais. Também os avós entram em cena na peça familiar e deixam de ser somente mãe e pai para assumirem um papel que lhes permitirá o exercício de uma maternidade/paternidade diferente, chamada de grã-parentalidade, ou seja, a parentalidade dos avós. Para esse tipo de exercício parental também ocorrem perdas e ganhos. Por exemplo, os avós perdem seus filhos, que casam e “abandonam” seus ninhos para construírem suas próprias famílias, o que para alguns pode, inclusive, gerar um sofrimento psíquico capaz de resultar em angústias e no mal estar contemporâneo chamado “Síndrome do Ninho Vazio”. Por outro lado, estes mesmos avós podem ganhar nos netos novas oportunidades de se realizarem como cuidadores parentais, mas sem o dever do zelo absoluto pela sua criação.
Assim, desde o nascimento perdas e mortes simbólicas se apresentam pela transformação dos progenitores e de outras pessoas dos contextos familiar e social. Diríamos que até os amigos são afetados pelas perdas do nascimento de um bebê. Embora os amigos “morram” indiretamente, o nascimento de um bebê não passa em branco para eles, quer seja pela exigência de tomar para si a tarefa de organizar os famosos rituais para a chegada do bebê, quer seja porque amigos solteiros já não cabem mais nos programas da nova família até que se casem, tenham filhos e a vida continua!
Rituais de transição existencial
Para marcar e demarcar isso que nomeamos um dos primeiros processos existenciais de perda, morte e luto pelas transições da vida existem diferentes rituais simbólicos, que são marcos do nascimento do humano e simbolizam, de muitas maneiras, este nascer. O chá de bebê, e agora sua versão mais contemporânea que é o chá de revelação, são exemplos destes rituais de transição que dão leveza à morte implícita no nascer e facilitam o luto simbólico próprio e necessário para elaboração das perdas do nascimento. Bem sabemos, como mulheres, – mas também mãe -, que não é fácil perder a identidade como mulher para se tornar mãe e assumir todas as exigências que isso pressupõe! Logo, reunir a família e os amigos em torno de uma festa, as vezes com ares de pompa e circunstância, para revelar o sexo do bebê, retrata alguns desses muitos rituais de transição que ajudam na elaboração do luto materno pela perda do seu ideal de mulher, filha, solteira etc.
Os rituais de transição nestes casos inauguram uma nova existência, marcada por símbolos próprios, como o nome, as roupas e os diferentes adornos marcados tradicionalmente por matizes rosadas (para menina) e azuladas (para menino), a ordem mais tradicional dos gêneros feminino e masculino. Embora essas tradições tenham mudado com a possibilidade da multiplicidade dos gêneros, é por meio destes rituais que transmitimos ao mundo a metamorfose dos absolutos na criação de uma outra vida, que principia e ressignifica os sentidos do viver. Por vezes não nos damos conta de que um ser-eu morre simbolicamente na direção de uma parentalidade autotranscendente com o nascimento de um ser-outro.
Processo de autotranscendência
Façamos um parêntese para explicar do que estamos tratando. A autotrascendência, baseado na Logoterapia e Análise Existencial (LAE) de Viktor E. Frankl, é a potência fundamental e inerente à existência humana, que imprime no humano a qualidade de um ser que é direcionado a algo que não é ele mesmo (Frankl, 2011). Como um ser essencialmente em relação às coisas, ao mundo, aos objetos, às pessoas, às ideologias etc., o humano está em um processo imanente de autotranscendência na busca pelos sentidos da sua vida. Logo, o que é então a maternidade/paternidade senão processos de autotranscedência na direção de se cumprir um ritual de transição existencial quando se escolhe investir em um projeto de família? Tornar-se um ser-mãe/pai responsável por um ser-filho não é tarefa fácil. Às vezes é da ordem do insuportável ocupar este lugar de cuidado e amor incondicional, tal como os mitos acerca da parentalidade impõem. Por exemplo, o Mito do Amor Materno, proposto pela filósofa francesa Elizabeth Badinter (1985), desconstrói a ideia de uma maternidade baseada em um amor inato e mandatório a qualquer mulher, o que nos ajuda a compreender que a relação de cuidado e de amor entre pais e filhos não é a priori, mas sim uma construção a posteriori. Essa ideia nos permite também entender que a autotranscedência parental se baseia em algo maior do que um amor devotado e baseado exclusivamente no cuidar mais do outro (o filho) do que de si próprio.
Embora o nascimento não desvele a ansiedade exclusivamente relacionada à inauguração da vida, porque representa em si também perdas e mortes, ele inaugura um palco para a experiência do luto, real e simbólico, dos recém pais, que podem investir nisso e perceber ali um horizonte de possibilidades existenciais. Das muitas perdas e mortes que o nascimento representa, costumamos focar majoritariamente nas consequências negativas que elas encerram e não nas possibilidades inventivas e infinitas que elas nos apontam. Com isso, podemos nos questionar: Por que desde o nascimento não conseguimos obter, ou perdemos ao longo do tempo, a capacidade de vislumbrar as novas possibilidades que as perdas e mortes encerram? Talvez, logo no início, o sopro de vida presente no sorriso de um bebê nos conforte e nos cegue para enxergar as perdas presentes desde o começo da vida; entretanto, as perdas e mortes, físicas e simbólicas, são mais presentes na existência humana do que se pode supor. Tomamos o nascimento para ilustrar, mas outros tantos exemplos seriam possíveis, como a entrada na escola, a adolescência, a maioridade, a escolha profissional, o início da vida sexual, o casamento, e outros. Todos estes eventos humanos são transições existenciais que levam o ser, necessariamente, a romper um status quo ante às suas condições existenciais na direção da sua autotranscendência. Tal como a parentalidade em si, a autotranscedência parental também não é simples e exige ultrapassar os condicionantes psicossociais e existenciais. Ela imprime uma continua reflexão do ser baseada na desconstrução, ressignificação e transformação dos seus valores existenciais, sentidos de vida e dos “mitos em torno do berço” (grifo das autoras), tal como o Mito do Amor Materno que Badinter (1985) nos apresentou.
Novas funções parentais
Nessa perspectiva, valores antigos que balizam o ser-mãe/pai e seus papéis morrem a cada dia para permitir que novas funções parentais sejam propostas, baseadas na compreensão dos novos significados de ser mãe, pai, família, especialmente nos tempos atuais em que estes papéis estão sendo redefinidos e que a morte da ordem familiar tradicional está posta. Autores como Roudinesco (2004) nos permite entender que a família tem passado por expressivos momentos de perdas, mortes e lutos, especialmente pela quebra da hegemonia das antigas tradições patriarcais. Para essa autora, o que se coloca é a desordem familiar, não no sentido do caos, mas sim de um movimento necessário para reorganização da dinâmica familiar sob os pilares contemporâneos de um novo ser-família. Para isso, a perda do que tradicionalmente se espera da mãe, do pai e dos filhos é necessária para instaurar novas funções, materna, paterna e filial, que possam destronar os antigos papéis que estes personagens da cena familiar exercem ao longo da história da humanidade.
Morte como potência para autotranscendência
É no nascimento que se inicia o movimento de autotranscendência do ser, quando ele começa sua busca pelo sentido do seu viver, que, primordialmente, pode se expressar por manter-se vivo na procura pelo seio materno. Essa tendência aparentemente inata pode ilustrar o que Frankl legitima como a dimensão noética/espiritual do ser, onde subjaz a vontade de sentido na busca da autotrancendência (Frankl, 1978). Cada nascimento faz surgir um ser novum absoluto, uma “possibilidade psicofísica” originada pela constituição biológica e psicológica dos pais, mas que tem possibilidades para além disso. Na perspectiva teórica da LAE este ser, novo e psicofisicamente condicionado, tem uma dimensão constituinte maior, a dimensão noética ou espiritual, que se sobrepõe às dimensões somáticas (do corpo) e psíquicas (da mente) e que permite a escolhas para além dos condicionamentos psicossociais. É através dessa dimensão que ele conquista a expressão do que lhe é próprio: a expressão de sua existência espiritual. Essa existência, que não é transmitida e nem pode ser herdada pelos pais, se expressa por meio da liberdade do ser e existe em si na intersecção entre as dimensões somática e psíquica. Citando Frankl: “o que é transmissível são as fronteiras psicofísicas, não o que fica entre elas. São as pedras da construção, jamais o mestre-de-obras” (Frankl, 1978, p. 126). Logo, se o ser humano pela sua dimensão noética pode se posicionar frente aos condicionantes e às perdas experienciadas durante sua vida, porque a morte o confronta a ponto dele querer se distanciar, quando, ao contrário, poderia exercer sua liberdade noética (ou espiritual) para se opor e decidir como enfrentá-la? Diríamos que aí reside uma das maiores angústias existenciais: a finitude da existência.