Como num conto de fadas que ouvimos na infância, aquele do final “felizes para sempre”, os pais ainda sonham com o casamento da filha ficando orgulhosos de “sua princesa”, mal enxergando, muitas vezes, a verdadeira fera escondida no “príncipe”.
Foi assim que naquela manhã a paciente chegou à sessão transtornada e desabou no choro, muito diferente das sessões anteriores em que relatava uma harmonia familiar com seu marido, suas três filhas, a mais velha de 25 anos, a do meio de 22 e a menor com apenas 12.
Enlace dos sonhos
A primogênita havia se casado há apenas seis meses com um homem de 35 anos, médico cirurgião plástico, bonito, inteligente e muito bem sucedido, o genro dos sonhos, como o descrevia. Um rapaz sensível, preocupado com os pais, “muito família” dizia.
O enlace se realizara após dois anos de relacionamento, com direito a noivado e pedido formal de casamento o qual se deu numa cerimônia simples, pequena, mas muito emocionada, com calorosa troca de votos de amor entre os noivos.
A razão de sua profunda tristeza? É que no final de semana numa briga do casal o genro agrediu fisicamente sua filha que, machucada, emocional e fisicamente, com hematomas no rosto e braços, fugiu de sua casa e veio refugiar-se na casa dos pais.
Todos chocados e surpresos, apresentaram reações diversas. A filha de 22 anos, indignada, repetia que deveriam ir à delegacia da mulher para formalizar uma denúncia contra o agressor pelo crime que cometera; a mais nova, sem entender direito o que acontecera chorava com a irmã agredida; enquanto o pai queria mesmo ir ter com o genro para revidar as agressões à sua filha.
Já a mãe buscava entender como aquilo havia acontecido. Sua preocupação, como a de todos, era acolher a filha e permitir que ela pudesse, com mais calma, decidir sobre o que deveria fazer.
A paciente descreveu o que sentira como se tivesse levado um forte soco no estômago, não conseguia digerir tudo aquilo. Como seu genro, aquele que tinha como a um filho, a quem tanto admirava, pode agredir sua filha? Como ela não leu os sinais, se perguntava?
Perceber os sinais
Sim, pode perceber agora que ele tinha algumas ideias machistas, como a de que uma mulher não podia almoçar com um amigo ou colega de trabalho; que alguns programas entre mulheres também não caiam bem, como irem beber com amigas em um barzinho; que algumas roupas não eram adequadas, aquelas decotadas, saias curtas, calças muito justas, tops etc. Ah, mas não era só, também havia muito controle, como várias ligações por dia, fiscalização do celular, críticas às amigas, além de vitimização e muita culpabilização do outro, agora reconhece.
A paciente sentia-se destroçada em ver a filha naquele momento tão triste, delicado e dolorido, machucada na carne e no espírito e se ressentia muito, muito mesmo por não ter percebido os sinais. Como não viu o que acontecia? Como não ajudou a sua filha a enxergar aquele homem, aquela relação?
Venceu a cultura de não intervir na relação do casal, dois adultos?
É certo que a política de não se intrometer na relação alheia até a pouco era muito difundida, mas felizmente vem sendo abandonada.
Defesa do ego
Será que como a filha deixou-se encantar pelo que o genro parecia ser? Será que “ficou cega” quando viu que seu sonho de ver a filha “bem casada” teria se realizado?
É fato que os pais projetam muitos sonhos em seus filhos e um deles, especialmente para a filha mulher, ainda é para muitos a de um casamento.
Isto pode explicar a razão dos pais fazerem uso da negação, mecanismo de defesa do ego, para não tomar conhecimento de uma situação real que poderia impedir que aquilo que projetaram para sua filha se realizasse.
A negação somada à idealização, outro mecanismo de defesa que consiste na atribuição de qualidades perfeitas a outras pessoas, e o estrago está feito.
Até a velha ideia de que só somos felizes em pares pode pesar.
Cuidado com a idealização
Hoje fala-se muito da necessidade das mulheres ficarem atentas aos sinais do seu parceiro, esclarece-se sobre as possíveis formas de violência física, moral, sexual, psicológica e até patrimonial.
Esta atenção, no entanto, a cada dia, deve ser também dos pais que precisam se despir de velhas crenças, inclusive entrando em contato com as projeções nos seus filhos, cuidando menos de idealizar o que eles devem ser ou fazer, e desejando mais apenas vê-los felizes.
Cavaleiro de armadura não existe
Mas o que falar para essa mãe? Como quebrar esse conto de fadas que ela sonhou para a filha? Ou, até mesmo como ela se desprende dessa idealização que foi posta sobre ela pela sociedade machista?
Penso que é preciso que os pais se apropriem, através da conscientização/desconstrução, que pode vir por meio da análise pessoal, de que a negação é utilizada por todos nós, mas no mais das vezes é ela rompida pela realidade que ao final se impõe; que ninguém é perfeito, que todos temos um lado sombrio adormecido ou aflorado; que temos que rever de tempos em tempos nossas crenças tomadas da sociedade fazendo uma avaliação sobre seu acerto ou erro; de que sim, podemos ser felizes sozinhos e não somente em pares, felizes com amigos, com familiares queridos, com parceiros amáveis, somos felizes quando há o respeito do outro à pessoa que nós somos.
Talvez com isso os pais possam deixar de sonhar esse sonho e identificar que o cavaleiro de armadura não existe, muito menos se ele julga a saia da princesa.