Autor do livro “Cem Bilhões de Neurônios?”, o neurocientista cativou leigos e especialistas ao sistematizar as Neurociências e traduzir a complexidade do sistema nervoso para crianças em sua obra “Aventura de um Neurônio Lembrador”. O pesquisador comenta estudos focados no desenvolvimento do cérebro na infância.
O pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro estuda a neuroplasticidade, que é a capacidade de as conexões cerebrais se alterarem em função de intervenções do ambiente. Esse fenômeno ocorreria com as sinapses, que são regiões de contato entre um neurônio e outro e por onde é transmitido o impulso nervoso. No entanto, as pesquisas em humanos também demonstraram que os grandes circuitos também são afetados – o que a ciência chama de plasticidade de longa distância.
Segundo Lent, a neuroplasticidade é a capacidade de adaptação do sistema nervoso às mudanças que ocorrem no dia a dia. Ela vale tanto para reações a processos patológicos, quanto para alterações na aprendizagem, o que faz parte do funcionamento normal do indivíduo. Também é possível a regeneração neural, isto é, a capacidade das populações de neurônios atingidas por um insulto ambiental voltarem a crescer, possibilitando a restauração do circuito danificado.
O trabalho do neurocientista se concentra no estudo da função do corpo caloso, uma estrutura do cérebro dos mamíferos que aloja 200 milhões de fibras do sistema nervoso. Lent gosta de comparar o sistema nervoso a uma cidade, que tem pequenos becos e grandes avenidas – o corpo caloso seria uma via expressa. Em seu laboratório, Lent demonstrou conexões cerebrais dos grandes circuitos que se modificam em várias situações, por exemplo, no caso de uma amputação de um membro, em que a pessoa continua tendo sensações provenientes do membro que não existe mais. Isso se explica a partir da premissa de que há uma reorganização do cérebro.
O neurocientista indiano Vilayanur Ramachandran, que estudou a síndrome do membro fantasma, observou que pessoas com membro amputado continuavam tendo sensações da perna ou do braço perdido – o que, até então, era considerado estranho pelos pesquisadores. Os estudos verificaram que a estimulação da face com um cotonete provocava sensações que provinham dos dedos do braço amputado. O cientista demostrou que os axônios das regiões atingidas pela amputação cresciam em direção a outras regiões do cérebro, que anteriormente recebiam informações das regiões amputadas.
O estudo de Lent mostra a forma como o cérebro realoca funções que são empregadas durante a aquisição cultural do indivíduo. Ou seja, ele estuda a maneira como as redes neurais vão se movendo dentro do cérebro. Um exemplo disso é a aprendizagem de leitura e escrita por crianças de cinco a seis anos. Quando bebês, elas aprendiam a reconhecer faces a partir da atividade de uma região cerebral chamada giro temporal inferior, que envolvia os dois hemisférios. No entanto, quando ela aprende os símbolos da escrita, a função empregada no reconhecimento de faces pelo hemisfério esquerdo é deslocada para o direito. Então, o hemisfério esquerdo é convocado para o reconhecimento de símbolos da escrita e leitura. Essa realocação mostra que o cérebro aproveita circuitos – um fenômeno que é chamado de reciclagem neural.
No passado, acreditava-se que a plasticidade cerebral estaria presente somente em crianças em sua fase de desenvolvimento e aprendizagem. Mas Lent lembra que os circuitos são plásticos durante toda vida, ela estaria presente inclusive em adultos. O que muda, segundo ele, é a espécie de plasticidade. Os adultos possuem uma faculdade específica chamada de metaplasticidade, que é a capacidade de aprender a ser mais plástico, isto é, as pessoas descobrem uma maneira de desenvolver suas inteligências de habilidades com mais sucesso.
A investigação mais conhecida de Lent, no entanto, envolve a contagem de neurônios. Em seus estudos, ele mostrou que o número de neurônios do cérebro humano e de animais é bem maior do que se imaginava. Somente o cerebelo possui cem bilhões de neurônios! Até então, a literatura especializada atribuía esse número ao cérebro todo. Segundo Lent, o cérebro possui uma enorme capacidade de modulação da informação, que envolve quatrilhões de sinapses e circuitos – o que o faz questionar antigos modelos de compreensão da inteligência diante do gigantismo da circuitaria cerebral.
O pesquisador também possui forte atuação na divulgação científica. É autor de diversos livros e fundou a primeira revista de divulgação científica do país, Ciência Hoje, e também contribuiu para o lançamento da Ciência Hoje para Crianças.
Lent ainda aceitou o desafio de traduzir os conceitos das Neurociências para crianças e adolescentes na coleção “Aventuras de um Neurônio Lembrador”. Seu trabalho foi adaptado para o teatro infantil da companhia Tibicuera, que encenou a peça em várias cidades do Rio de Janeiro.
Sobre células-tronco embrionárias no estudo de doenças do sistema nervoso, como elas se transformam em neurônios? Depende do meio ou de instruções presentes na própria célula?
As células-tronco embrionárias, por sua própria natureza, podem dar origem a diferentes tipos de células maduras. Para que elas se transformem especificamente em neurônios, é preciso que elas encontrem um ambiente, ou um meio químico, que reúna fatores moleculares, sinais químicos que direcionem o desenvolvimento delas na direção neuronal. Atualmente, não é nem mais necessário utilizar células-tronco embrionárias, que são difíceis de obter, especialmente de seres humanos. Por isso, já é usual utilizar as chamadas células-tronco de pluripotência induzida. São células adultas, que podem ser da pele ou da urina, submetidas a sinais regressores que as levam de volta à condição de célula-tronco e depois na direção das células que se deseja desenvolver, como neurônios, por exemplo.
O seu trabalho na universidade tem sido a neuroplasticidade, especialmente a plasticidade de longa distância. Quais as novidades nessa área?
A neuroplasticidade é a capacidade do sistema nervoso em se modificar por influência do ambiente, para o bem ou para o mal. Inicialmente, se considerou que isso ocorria apenas nas sinapses, aquelas microestruturas que conectam os neurônios entre si e transmitem as informações entre eles. Hoje, se sabe que as macroestruturas também podem se modificar fortemente. Os grandes circuitos se modificam também, além das sinapses. É a isso que se chama plasticidade de longa distância, que descobrimos em pesquisas com seres humanos. Desse modo, as redes funcionais das pessoas podem se modificar fortemente ao longo da vida, por ação da educação, do lado benéfico, como por ação de doenças e traumatismos, do lado maléfico.
O Sr. poderia dizer como foi sua experiência em traduzir o sistema nervoso para crianças?
Muito difícil, mas muito instigante. A experiência de traduzir a linguagem sisuda de um cientista adulto para a linguagem simples e florida de uma criança de dez a doze anos foi um desafio para mim. Depois dos livros que escrevi, fiquei muito gratificado em vê-los adotados por um grupo de teatro infantil, o Grupo Tibicuera, que os roteirizou e transformou em uma peça de teatro que foi encenada com muito sucesso em várias cidades do Rio de Janeiro, durante vários meses.
O que os cérebros de Einstein e Mozart tinham de especial?
O cérebro de Mozart não foi acessível aos cientistas, pela época em que ele viveu. O cérebro de Einstein, por outro lado, foi estudado por anatomistas e microscopistas, e nada de grande relevância se encontrou nele que explicasse sua criatividade e genialidade. Possivelmente, uma especulação, Einstein devia dispor de uma enorme capacidade neuroplástica, o que talvez lhe tenha proporcionado o resultado tão incrível que conseguiu em sua obra. Mas, na verdade, a neurociência não sabe o que faz com que algumas pessoas ocupem o extremo superior da curva de criatividade da humanidade. Quem descobrir isso certamente vai ganhar o Prêmio Nobel.
O que as Neurociências podem dizer sobre as altas habilidades, os superdotados? Há uma relação com características das redes neurais?
Também isso é pouco conhecido. Apenas agora se começa a estudar essas pessoas. E o termo “superdotado” é enganoso. Parece que se trata de pessoas inteligentes em qualquer coisa e em tudo, o que não parece ser o caso. São pessoas com talento especial em alguns aspectos das funções mentais.
Quando o cérebro começou a ser considerado sede da alma?
Não tenho certeza quem foi o primeiro, mas acho que o autor mais importante para o “deslocamento” da alma do coração para o cérebro foi René Descartes. Pelo menos, se não foi o primeiro, foi o mais famoso. Isso se considerarmos que a palavra “alma” tem a acepção de consciência, razão e emoção juntas.
Qual a contribuição da frenologia para o conceito de localização tal como se estuda hoje?
A frenologia foi uma teoria idealizada sem base científica, mas por coincidência se mostrou interessante para explicar a distribuição de funções no cérebro. Ela considerava que as funções eram localizadas em áreas cerebrais específicas e, quando se desenvolviam mais em um indivíduo, causavam impressões no crânio que podiam ser detectadas de fora por medidas e palpações. Tudo errado, não ocorre assim. Mas de fato muitas funções são relativamente localizadas no cérebro, sempre em comunicação com outras funções paralelas. Atualmente, prefere-se o conceito de rede, envolvendo várias regiões em comunicação sincrônica, para explicar o funcionamento do cérebro.
O que caracteriza a criatividade?
A criatividade é “pensar fora da caixa”, encontrar soluções inesperadas para problemas difíceis, juntar fatos aparentemente desconexos de modo que passem a fazer sentido. E muito mais. Quem é criativo arrisca, inova, ousa pensar sem medo de errar. E depois testa se sua ousadia deu o resultado que esperava.
A metacognição é uma característica humana? Pessoas têm níveis diferentes dessa capacidade?
Aparentemente sim. Mas pode ser que algum tipo de metacognição exista em primatas superiores, o que não sabemos, porque eles não se comunicam como nós o fazemos. Pessoas têm níveis diferentes dessa capacidade, mas trata-se de algo que se pode aprender, não é necessariamente inato. A escola e a família podem desenvolver a metacognição nas crianças. Isso é altamente desejável, porque estimula a formação de pessoas mais criativas e capazes de ultrapassar os limites convencionais do conhecimento.
Como é o funcionamento do cérebro dos psicopatas?
O cérebro dos psicopatas carece de uma função chamada controle inibitório, ou mais amplamente controle executivo. Não apresentam a capacidade de modular o seu comportamento de acordo com as circunstâncias e regras sociais. E isso, de um modo extremo, pode levar a ações altamente agressivas com as pessoas que estão ao seu entorno. O controle inibitório é uma função das regiões frontais do córtex cerebral e, ao que parece, essas regiões são menos ativas e estruturalmente prejudicadas em pacientes portadores desse tipo de transtorno psiquiátrico.
Qual a importância dos conhecimentos sobre os neurônios-espelho para as Neurociências?
A descoberta dos neurônios-espelho foi inspiradora, porque revelou que o nosso cérebro não se pauta apenas pelo que nós fazemos, mas também pelo que os outros fazem em torno de nós. Levou a todo um desenvolvimento do estudo do significado da imitação nos processos de aprendizagem das crianças, por exemplo. Entre muitas outras coisas.