“Você não pode vencer a morte, mas você pode vencer a morte durante a vida, às vezes.”
Charles Bukowski
Falar em suicídio ainda hoje é tabu. Mas falar em suicídio, é falar de vida. Pode soar estranho, porém o estranho (unheimlich), já sabemos com a Psicanálise, é o que há de mais familiar em nós mesmos. Sendo o suicídio algo estranho e o estranho algo faceado ao familiar, o que podemos lapidar em nível de escuta? Como lidamos com esse familiarmente estranho do suicídio em nosso dia a dia?
O suicídio nos é tão familiarmente estranho que basicamente todo ser humano já pensou nele ou algum dia pensará, como release, flash, vulcânica ideia que vem e vai, e ainda assim, ainda que tenhamos pensado em suicídio alguma vez na vida, acabamos, por demasiadas vezes, mudando a postura quando, de repente, um amigo e/ou familiar fala que está pensando em se matar. Ainda que este que escuta já tenha pensado em suicídio, este não entenderá o motivo do outro e naturalmente assusta-se.
Liev Tolstói, escritor russo, nos empresta reflexões desta perda de sentido pelo qual ele mesmo passou. Em seu livro “Uma Confissão” (título que nos reporta ao suicídio como pecaminoso) traz o seguinte: “Minha vida parou. Eu podia respirar, comer, beber, dormir, porque não podia ficar sem respirar, comer, sem beber, sem dormir; mas não existia vida, porque não existiam desejos cuja satisfação eu considerasse razoável.” (Tolstói, 1879).
O autor aqui destaca a importância na vida humana de se terem desejos, buscas singulares que movimentam para além das necessidades básicas de um ser vivo qualquer. E segue dizendo, após afirmar a ausência de sentido para a sua vida: “Com todas as forças, eu desejava me afastar da vida. A ideia do suicídio me veio de maneira tão natural quanto, antes, me vinham os pensamentos sobre o aperfeiçoamento da vida. Essa ideia era tão sedutora que tive de usar de astúcia contra mim mesmo, a fim de não colocá-la em prática com demasiada pressa.” (Tolstói, 1879).
Ele batalhou contra ele mesmo, naquelas divisões que temos, e que comumente dizemos ter uma parte da gente querendo algo e a outra relutando. Isso soa familiar à maioria das pessoas. No caso dele, esta divisão de si veio no tema do suicídio.
O trabalho do luto
Viver é se rechear de história, de ilusão, de linguagem que vai para além das palavras. As bobagens nos mantêm vivos! Pois, o que para um é precioso e preciso, para outros pode ser uma grande bobagem. Isso se dá porque viver é sem um sentido à pronta entrega, é preciso criá-lo, fazer emergir uma busca e com ela apostar em um trilho para seguir. Ainda que vulnerável, é dessa malha que se faz a vida humana. O que Tolstói nos traz nos é tão familiar quanto cotidiano. Voltemos, então, ao estranho.
Comumente, quando chega a notícia de que a morte fora por suicídio, logo o rosto muda, o semblante altera desnorteadamente, e emergem frases do tipo: “que estranho, mas ele não demonstrava motivos…”, “bem que pensando agora fica nítido que dava sinais…” ou até o inverso “ele? Nunca pensei que faria isso!”, “se estive com ele ontem…” e por aí vai uma gama de reações.
O trabalho de luto (sim, o luto é um trabalho psíquico de matar o morto, de se restabelecer na vida ainda que com dor e saudade; o luto é tempo singular para reelaborar e reinvestir) daquele que perde alguém por suicídio é ainda mais laborioso, justamente pela estranheza que inquieta e fica indagando o sujeito, convocando-o a inexplicáveis cenas de outrora. As peças do quebra-cabeça começam a aparecer. Inúmeros familiares resgatam memórias que eles não haviam percebido como sinais de pedido de ajuda e/ou dizeres camuflados acerca do suicídio. Frases desesperançosas, de retiradas de cena, de autorrecriminação são as mais comuns.
Areia nos olhos
O luto na questão do suicídio é um luto culposo, martirizante, pela impotência de não terem conseguido evitá-lo e, ainda, um luto que indaga o porquê? Esta indagação advém como areia nos olhos, castração que nos cega, bem como o fantástico conto “O Homem da Areia”, de Hoffmann, apontado por Freud em seu texto “O estranho”. Trata-se daquela areia que até se espera por ela, mas duvida-se que irá mesmo ocorrer. Uma cegueira gerada pelas fantasias de mentir para si mesmo.
Freud pondera que há algo de estranho no silêncio, solidão e na obscuridade, três pontos que se entrelaçam enodando o suicídio como advento ligado à angústia infantil que se renova por toda a vida. Pensar em suicídio é algo comum, oriundo da vida humana que se difere de todos os animais pelo uso da linguagem e de indagações, que pode servir inclusive para renovação na vida. O retorno a si mesmo é um dos destinos da pulsão segundo Freud (1915). Se virar é mudar de posição. No livro Solidão, Françoise Dolto, psicanalista francesa, tece o seguinte: “A fantasia de suicídio é indispensável. Nenhum ser humano pode prescindir dela. (…) Enfrentar a fantasia do suicídio e sobreviver é fazer o luto da onipotência” (Dolto, 1962).
Pulsão de vida e de morte
O destino pulsional de voltar-se a si mesmo é no suicídio a face dupla de toda pulsão, de vida e de morte. A agressividade da pulsão de morte que visa desintegrar o sofrimento com o sujeito em seu misterioso silêncio arranca a vida, porém este ato advém como forma de tentar salvar o sujeito de seu mal-estar, de sua angústia. Pulsão de vida e pulsão de morte estão o tempo todo presentes. Estas duas faces da pulsão também são demarcadas no caso dos cortes dos adolescentes, as automutilações, que são a forma encontrada naquele instante para darem conta de suportar aquilo e viverem, ainda que matando algo em si. Certamente, a questão da automutilação vai além deste clássico ponto e, por este motivo, deixamos como um assunto futuro a ser tratado. Agora, o que nos interessa pontualmente é que o ato pulsional que habita aquele que se inclina ao suicídio não é recheado apenas de morte, pois há também vida.
O flash de pensamento suicida se difere do planejamento, do ato e daquele pensamento corriqueiro que vem de forma tenazmente fetichizado com a morte, obsessivamente presente e que inesperadamente surge, causando desânimos ao ser. Isto é, pensar, vez ou outra, não indica tendência à, porém pensar a todo instante, frequentemente, repetidamente, como se o texto da vida fosse totalmente mortífero e nenhum outro arranjo fosse possível, é um fator de alerta que pode tornar-se fator iminente de risco.
O planejamento suicida é uma história que o sujeito cria, com cenário, dramatização, se prepara para tal, chega a colocar até data, descreve como será, esquematiza, trabalha todo o enredo e funda um compromisso que, se não tiver alguma intervenção, pode se concretizar na realização da passagem ao ato. O planejamento é uma história e, por assim ser, pode-se escrever novos acontecimentos, porém se não houver atravessamentos, o seu fim estará alinhavado ao previsto suicídio. Inúmeros, ainda que no um a um de sua singularidade, é o paciente que “já sabe o que vai fazer”, que tem definido quando, onde e como será o até então derradeiro ato de sua vida.
Acolher, escutar, fazer falar, deslocar os significantes ali colocados, favorece o tratamento. Segundo Françoise Dolto “ajuda-se uma pessoa mostrando-lhe que não é uma pária por pensar nisso.” (Dolto, 1962).
Dimensões psíquicas do luto
O processo de luto está interligado às demandas entre dois extremos da existência humana: a vida e a morte. O luto é um sentimento de extrema dor, afetando o enlutado tanto na mente, como na alma. Sua dor não distingue da dor de amar, pois a perda do objeto se configura como uma ruptura traumática do corpo e alma, relegando ao indivíduo uma dor incomensurável. Necessitando representá-lo, nomeá-lo e refleti-lo para realizar o luto dele. Mas também para que, ao falar dele, ao nomeá-lo e representá-lo, eu seja capaz de me angustiar (NASIO, 2007, p.68).
O luto é a preservação desse morto dentro de nós. No entanto, resta ao enlutado desligar-se do morto e, apenas, preservar em si toda a nobreza proveniente de sua relação com o indivíduo falecido, sendo o amor uma mola propulsora de todo o apego. O luto não se limita apenas à morte de um ente querido, mas a perdas reais e simbólicas ao longo do nosso desenvolvimento, perpassando pelas dimensões físicas e psíquicas.