O cérebro pode se reorganizar após lesões graves, como as sequelas ocasionadas por um derrame, preservando habilidades motoras e cognitivas, concluíram pesquisadores norte-americanos em um estudo conduzido pelo neurocientista Nico Dosenbach, PhD pela Universidade de Washington, do Hospital Infantil St. Louis, nos Estados Unidos. Dosenbach é interessado no fenômeno da plasticidade cerebral, que é a capacidade de adaptação do sistema nervoso às mudanças que ocorrem por lesões ou pelas experiências do dia a dia, como a aprendizagem.
Apesar das lesões causadas por enfartes sucessivos, os neurônios podem se reconectar, preservando as funções do cérebro. Essas redes neurais são realocadas, isto é, elas vão se movendo dentro do cérebro. Isso acontece porque essas células nervosas passam a se formar em regiões próximas ao tecido do cérebro saudável, não atingido pelo derrame.
Lesões cerebrais
A conclusão partiu de um estudo publicado recentemente pela revista científica sobre medicina“The Lancet”, na qual Dosenbach relata a história de um adolescente, jogador de baisebol, que apresentou reorganização cerebral após vários enfartes sofridos ainda quando era recém-nascido. O caso demonstra uma enorme capacidade do cérebro se adaptar a lesões.
“É amplamente aceito que o remapeamento funcional é a base da recuperação da função após o AVC, tanto em adultos como em crianças. Muitas das evidências que apoiam essa perspectiva foram obtidas por estudos de neuroimagem”, relata Dosenbach.
Curiosamente, o bebê não havia morrido e tampouco sofria deficiência física ou mental. Pelo contrário, o garoto tinha uma vida normal para sua idade. Mas, embora seja capaz de lançar a bola a uma grande distância com o braço esquerdo, ele tem dificuldade de usar o seu braço direito. Canhoto, o menino de 13 anos fora orientado pelo treinador a procurar acompanhamento médico. Então, ele foi encaminhado para fisioterapeuta, pediatra e ortopedista.
A resposta para a preocupação da família do menino veio através da avaliação de Dosenbach, que descobriu que o garoto havia sofrido enfartes quando bebê – o que não fora descoberto por mais de uma década. O neurocientista, com auxílio de sua equipe, submeteu o garoto a testes motores, neurocomportamentais e de neuroimagem. Ele escaneou o próprio cérebro e o comparou ao do seu paciente, destacando as regiões do cérebro atingidas pelas lesões.
Avaliação do histórico
Revisando o histórico do jogador, o neurocientista descobriu que o nascimento do garoto ocorreu após 36 semanas de uma gravidez sem complicações. No sexto dia de vida, ele teve uma rápida apneia, (complicação em que a respiração cessa, impedindo que o ar chegue aos pulmões) e foi avaliado no pronto-socorro. Em seguida, ele apresentou má alimentação, vômitos e diarreia, o que o levou à letargia, que é um estado de fraqueza. Então, ele foi internado em unidade de terapia intensiva e recebeu transfusão de sangue.
À época, uma tomografia computadorizada do crânio mostrou que havia algumas áreas mais escuras que o tecido sadio ao redor. Existe uma série de causas que podem gerar esse tipo de imagem, mas muitas são consideradas benignas. A ressonância magnética foi relatada como normal. Não foram encontradas as causas da diarreia e intolerância alimentar.
AVC perinatal
“O prognóstico após AVC perinatal é variável, mas, em geral, mais favorável do que em adultos. A morte é incomum, embora déficits motores ou neurocognitivos ocorram em taxas estimadas variavelmente entre 40% e 75%. Assim, uma fração substancial de sobreviventes de longo prazo de AVC perinatal desenvolve tipicamente ou com apenas pequenos atrasos ou deficiências”, disse Dosenbach.
Os pesquisadores realizaram exames de ressonância magnética e notaram que o menino perdera cerca de 259 centímetros cúbicos das regiões mais nobres do cérebro, ou seja, cerca de 20% do volume do considerado normal. Essa porção tem cerca de 1186 centímetros cúbicos em pessoas saudáveis. O caso é espantoso, pois o paciente perdera quase um quarto!
Os enfartes haviam afetado o hemisfério esquerdo (lembrando que o lado direito do cérebro controla os movimentos do lado esquerdo e vice-versa). Foi observada uma extensa perda do córtex, incluindo perda quase total do sulco central, giro pré-central e giros frontais superiores.
A perda cortical à direita era ainda mais extensa e envolvia tanto a região frontal como a região parietal do córtex, mas com preservação notável dos giros pré e pós-centrais inferiores. Normalmente, o derrame atinge somente um lado, sendo que o derrame bilateral pode resultar em lesões muito mais graves.
Mapeamento funcional
O que chamou atenção é que a capacidade motora do lado esquerdo estava intacta, embora comandada por uma porção muitíssimo pequena do córtex motor do hemisfério inferior direito (responsável pelos movimentos do lado esquerdo). A avaliação mostra que o cérebro pode compensar mais rapidamente os derrames sofridos quando os bebês são muito pequenos. “As respostas da tarefa motora direita ativaram o giro pós-central do hemisfério esquerdo, demonstrando remapeamento posterior da função motora. As respostas da tarefa motora esquerda estavam intactas, mas restritas a uma porção notavelmente pequena e preservada do córtex motor do hemisfério inferior direito”, escreveu Dosenbach.
Apesar dessa extensa lesão, o paciente desenvolveu normalmente as habilidades cognitivas e motoras, com exceção de um déficit no braço direito em força, velocidade e destreza em relação ao braço esquerdo.
O estudo mostrou que o tecido morto resultou em cavidades cheias do líquido cefalorraquidiano, que é um fluido incolor encontrado no cérebro e na medula espinhal que tem a função de fornecer nutrientes para o tecido nervoso e remover resíduos metabólicos. Esse líquido protege o cérebro de lesões.