A rápida propagação do novo coronavírus, a partir do início de 2020, levou à adoção de medidas de isolamento social com o intuito de diminuir a velocidade da disseminação do vírus. Acerca dos sistemas de educação, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO, 2020), como parte da política de distanciamento, houve a suspensão de aulas presenciais em mais de 165 países, causando alteração e modificação do calendário acadêmico de cerca de 1,5 bilhão de alunos. Em âmbito nacional, com mais de oito meses de afastamento escolar no ano6de 2020, nunca houve na história do Brasil um período de afastamento do ensino presencial tão amplo quanto este (Fonseca et al., 2020). Diante de mudanças drásticas, torna-se fundamental avaliar o impacto sobre as aprendizagens, competências escolares e desenvolvimento cognitivo dos alunos.
O prejuízo da interrupção de aulas já é um tema estudado na literatura e em contexto pré-pandêmico, descreve-se, por exemplo, o fenômeno do summer slump (traduzindo, a expressão significa “queda de verão”) referente ao período de recesso escolar, que acarreta um declínio das habilidades de leitura e escrita anteriormente desenvolvidos, por efeito da ausência das aulas durante as férias. Estudos apontam que crianças tendem a perder aproximadamente um mês dessas habilidades durante esse período (Cooper, 1996; Bao, 2020). Em relação aos fechamentos de escolas durante o período pandêmico, um estudo evidencia que alunos do 3º ao 7º ano do Ensino Fundamental teriam uma perda de cerca de 35% das capacidades de leitura, comparando a um período típico escolar (Kuhfeld, 2020; Bao, 2020). Podemos citar ainda outros períodos da história durante os quais houve fechamento temporário de escolas. Em 1916, houve a suspensão de dois meses de aula em função da epidemia de poliomielite nos EUA, que resultou em um declínio da escolaridade ao longo da vida dos alunos que sofreram com a quarentena (Meyes & Thomasson, 2017; Oliveira, 2020). De modo semelhante, durante uma greve de professores na Bélgica que perdurou por seis meses, verificou-se um declínio da escolaridade dos alunos afetados pela greve, em comparação a alunos não afetados (Belot & Webbink, 2010; Oliveira, 2020)
No intuito de diminuir os impactos da desescolarização, rapidamente as escolas se organizaram de modo a dar continuidade às aulas e o método de ensino a distância (EAD) passou a ser empregado pela maioria das instituições. Do ponto de vista dos educadores, muitos relataram maior sobrecarga, despreparo e frustração diante da súbita transição para o EAD (da Silva, Batista, Trotta, 2020).
Pais desamparados
Por outro lado, diante destas modificações repentinas, muitos pais acabaram se sentindo desamparados e despreparados para este novo desafio. Este novo cenário agrava-se ainda mais quando falamos da realidade de muitos pais trabalhadores que, devido ao acúmulo de suas funções laborais, ficaram impossibilitados de fornecerem assistência aos filhos. De forma paradoxal, a presença de um adulto ou dos pais se torna, portanto, imprescindível para auxiliar a criança durante as aulas online para evitar o abandono parcial das aulas e uma interrupção do processo de aprendizagem. Observaram-se se igualmente diversos empecilhos meramente relacionados à falta de acesso a tecnologias digitais de base para o EAD, como falta de equipamentos ou conexão segura a internet, atrapalhando o ritmo das aulas e, assim, prejudicando o processo de aprendizagem da criança.
Houve uma alteração da rotina dos alunos, o que foi vivenciado por alguns como “férias antecipadas/intermináveis” e por outros de forma emocionalmente traumática associada à ansiedade exacerbada relacionada à situação da saúde pública (Lee, 2020; Singh, 2020). Por outro lado, sabe-se que o EAD exige do aluno um alto nível de autonomia, organização e habilidades executivas. No entanto, tais competências se adquirem ao longo dos processos de aprendizagens, estes ainda em desenvolvimento e obviamente pouco disponíveis em crianças em idade escolar (Zelazo, 2003; Buss, 2014).
As observações científicas apontam dados que chamam atenção sobre a necessidade de considerar de forma mais atenta as consequências de um sistema de EAD. O método foi instalado de forma emergencial e, apesar do fato das instituições escolares reagiram com maior celeridade possível, oferecendo com qualidade diversas adaptações inovadoras, a nova modalidade não deixará de trazer consequências. Segundo um relatório publicado pela FNEEQ (Federação Nacional de Professores de Quebec), em outubro de 2020, esse método possui inúmeras limitações, tais como: a falta de motivação dos alunos, o alto índice de dispersão frente aos diversos estímulos digitais, bem como a queda de qualidade de interação entre aluno e professor. Foi observada uma baixa retenção do conteúdo mesmo adaptando a densidade. Houve ainda uma alta taxa de abandono das aulas, impactando, dessa forma, o desenvolvimento adequado de processos cognitivos superiores e as aprendizagens. Consequentemente, observou-se uma dificuldade dos alunos em prosseguir com o programa de forma autônoma, o que resultou em uma irregularidade do acesso ao cronograma escolar.
Falta de regularidade escolar
Segundo Fonseca, Sganzerla & Enéas (2020), o impacto do ensino remoto ou ainda da falta de regularidade escolar se apresenta de diferentes formas nas diferentes faixas etárias, visto que há diferenças no desenvolvimento cognitivo e socioemocional em relação a cada ciclo escolar. Por exemplo, as atividades escolares do grupo que compõe a educação infantil de pré-escolares (4-6 anos de idade) são baseadas em conteúdos relacionados à pré-leitura, pré-escrita e pré-matemática, como também no desenvolvimento da motricidade ampla e fina, autorregulação emocional, funções executivas (atenção sustentada, automonitoração de motivação intrínseca e adiamento de recompensas) e linguagem oral (consciência fonológica, vocabulário, conhecimento e diferenciação de letras e números, noção de quantidade, entre outras). O desenvolvimento de tais habilidades no período pré-escolar ocorre de forma acelerada e interdependente e, dessa forma, ressalta-se a importância da assistência pré-escolar para o desenvolvimento global de crianças na faixa etária que corresponde a esse período (Fonseca, Sganzerla & Enéas, 2020).
Já no grupo de crianças no 1º e 2º ano do ensino fundamental, há um maior foco na aquisição e consolidação de leitura, escrita e matemática que necessita sobretudo de um método de ensino sistemático e dirigido, mediado pela motivação, ludicidade e modelagem do grupo (Larsen & Luna, 2018).
Consequências drásticas
Com a interrupção escolar, são previstos resultados que podem ou não ser percebidos a curto prazo, todavia, essas consequências prejudicáveis/negativas podem se tornar drásticas a médio e longo prazo (Fonseca, Sganzerla & Enéas, 2020).
Assim, torna-se evidente o risco da interrupção escolar associado ao lockdown. Por outro lado, é legítimo questionar o impacto do ensino remoto na tentativa de substituir e prosseguir com o andamento das aulas no período de suspensão das aulas presenciais, principalmente com crianças em período de alfabetização – sendo este um dos períodos mais importantes do seu desenvolvimento.
Sabe-se que, nesta faixa etária, um atraso escolar implica em desmotivação, o que tem impacto sobre o desenvolvimento cognitivo, intelectual, linguístico e socioemocional. De forma mais específica, percebe-se classicamente um declínio das funções executivas, de memória, da capacidade de autorregulação emocional, provocando dificuldades na adesão e consolidação de conteúdos e estratégias de aprendizagem (Fonseca, 2021). Cabe ressaltar, ainda, que a retomada das aulas presenciais em 2021 se dará de forma gradual, através do ensino híbrido, podendo prolongar os eventuais prejuízos associados ao ensino remoto.
Janelas de aprendizagem
Neste contexto de “desescolarização”, Morais e Kolinsky investigaram os efeitos da não-escolarização e do analfabetismo no desenvolvimento de funções mentais superiores e apontaram que a capacidade de memorização e de resolução de problemas são mais desenvolvidas em indivíduos que foram devidamente escolarizados nas janelas de aprendizagens adequadas. A literatura evidencia, amplamente, a existência dos chamados períodos críticos de maturação, caracterizados por específicos períodos da vida em que o aparecimento ou a ausência de determinados eventos afetará, de forma específica, o desenvolvimento humano. Tratam-se, portanto, de períodos mais propícios para a aquisição de determinadas capacidades, em função do refinamento de conexões neurais neste meio tempo. No que tange ao desenvolvimento da linguagem, a não escolarização e analfabetismo têm potencial de empobrecer as capacidades cognitivas superiores. Sabe-se, por exemplo, que uma aprendizagem mais tardia da leitura não é suficiente para compensar as alterações do processamento de informações, ocasionadas pela ausência de escolarização nos períodos críticos para a aprendizagem.
Como apontado em um artigo publicado no site da CONTEE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino), em janeiro de 2021, apesar das preocupações incessantes das famílias em relação ao contágio de seus filhos, elas reconhecem a importância do retorno às aulas. Com o retorno às aulas no início do ano de 2021, antecipa-se que haverá uma maior dificuldade de integrar os conteúdos previamente absorvidos pelo ensino remoto (de forma precária e insuficiente), podendo levar a um efeito “bola de neve” prejudicial ao desenvolvimento cognitivo das crianças (Fonseca et al., 2020).
O projeto PADA foi desenvolvido por dois neuropsicólogos, uma neuropediatra e um professor e consiste num projeto de redução de risco que tem por intuito avaliar o desenvolvimento das competências cognitivas e pré-requisitos para as aprendizagens da população de escolares em nível da pré-alfabetização e da alfabetização no contexto da pandemia.
Rastreamento
O PADA se propõe em avaliar com medidas objetivos requisitos cognitivos num intuito de rastrear alunos que apresentam maiores riscos de sofrer das consequências a curto e longo prazo sobre suas aprendizagens e integração escolar no contexto da atual situação socioeducacional.
A idealização do projeto tem por intuito atender, em uma época de incertezas, possíveis demandas de alunos, pais e professores, em face do desafio de lidar com turmas provavelmente bastante heterogêneas. De forma mais específica, sabe-se que a maioria dos alunos passará ou ilesa, ou somente sofrerá um impacto leve a longo prazo. Porém, por diversos motivos, é razoável prever que uma porcentagem não negligenciável sentirá dificuldades maiores. O PADA apresenta ferramenta que permite distinguir as razões principais das dificuldades de aprendizagens evitando, desta forma, a armadilha perigosa de minimizar eventuais dificuldades intrínsecas ao aluno. Deve-se evitar, a todo custo, que distúrbios genuínos de aprendizagem sejam mascarados pelo rótulo sedutor e enganoso do “efeito pandemia”. Nestes casos, a ruptura do processo de aprendizagem pode ter funcionado como catalisadora, levando à tona de forma mais significativa alterações que são inerentes ao próprio neurodesenvolvimento do aluno. O risco, nesse caso, é a possibilidade da instalação de dificuldades mais duradouras e permanentes, como consequência da falta da intervenção necessária e adequada no período crítico do desenvolvimento.
No segundo momento, o PADA permitirá, após identificação da população de risco, oferecer uma consultoria baseada em informações específicas para cada aluno para auxiliar a instituição escolar, responsáveis pedagógicos e professores a fornecer reforços pedagógicos aos mais necessitados. Em caso eventual de distúrbios específicos de aprendizagem, como sinais de dislexia ou outro comprometimento da cognição, o PADA oferece um suporte informativo e de orientação especializado para os pais, a escola e atores psicopedagógicos.
Mapeamento do grupo escolar
Não menos importante, o PADA permite, ainda, a utilização de uma ferramenta de seguimento a longo prazo. As avaliações iniciais permitirão o mapeamento de todo o grupo escolar e a verificação das aquisições e o impacto das adaptações oferecidas sobre as competências a ser remediadas no grupo de risco. O PADA permitirá um olhar criterioso sobre a evolução de cada aluno, impedindo a “banalização” ou a não detecção de eventuais alterações do neurodesenvolvimento.
Em suma, no cenário pandêmico, temos a convicção da inquestionável importância de buscar dados objetivos sobre competências cognitivas e sobre os níveis de pré-requisitos escolares para as aprendizagens. O acompanhamento evolutivo do processo de aprendizado – tanto em nível individual quanto coletivo – permitirá intervenções racionais e baseadas em evidências. Mais que de que nunca, neste contexto específico e desafiador, o famoso lema “cada criança tem seu ritmo”, que muitas vezes é usado para reassegurar pais e alunos para justificar atrasos de aprendizagens, perde de vez a sua relevância.
A investigação do PADA se delineia em 5 pontos fundamentais ao nível do aluno: INDENTIFIÇÃO, INFORMAÇÃO, ORIENTAÇÃO, REMEDIAÇÃO, SEGUIMENTO.
Proposta e trabalho
Idealizado e inspirado a partir do trabalho do médico francês Michel Zorman (Zorman & Jacquier-Roux, 2002) o projeto PADE/A (Projeto de Avaliação de Desenvolvimento Escolar/das Aprendizagens) visa a oferecer uma avaliação cognitiva em larga escala dos pré-requisitos em crianças na fase da pré-alfabetização e alfabetização. Este tipo de projeto é inovador no Brasil, porém já frequente e institucionalizado desde os anos 1990 em países da Europa fazendo, desta forma, parte integrante dos projetos de políticas educacionais.
O recorte da faixa etária com crianças entre 5 e 6 anos de idade (Zorman & Jacquier-Roux, 2002) foi considerado adequado pois, nesta faixa etária, as crianças tendem a comparecer a diversas consultas médicas anualmente – sendo as dificuldades de aprendizagem o principal motivo para essas consultas, em sua maioria.
Com os efeitos nocivos da pandemia (não só na aprendizagem, como também no neurodesenvolvimento de crianças), o rastreio do ponto de vista cognitivo e psicopedagógico se torna imprescindível. Realizá-lo dentro das próprias escolas com a presença de educadores é a melhor forma de investigar tais alterações de forma completa sem estigmatizar os alunos.
O objetivo do PADA é informar pais e professores acerca das possíveis alterações e sinais preditivos de dificuldades e atraso no neurodesenvolvimento, sobretudo nos processos de aprendizagem, cálculo e leitura e escrita, ocasionados ou não pela ausência de aulas durante o período pandêmico. Trata-se de uma coleta de dados em grupo que permite avaliar a possível necessidade de uma intervenção precoce, seja no aspecto psicopedagógico ou, em casos específicos, por meio da reabilitação neuropsicológica, acompanhamento psicoterapêutico, ou consultas neuropediátricas. Além disso, o projeto visa a estabelecer os novos pré-requisitos acadêmicos segundo o ano letivo, em vista da alteração dos parâmetros tradicionais ocasionados pela evasão escolar durante o período de quarentena, bem como o EAD.
Objetivos da pesquisa
Os pesquisadores pretendem avaliar pré-requisitos cognitivos para aprendizagem.
Objetivo 1: Informar os pais e a instituição sobre os riscos reais em termos de atraso de aprendizagens, evitar o pânico, responder a questionamentos apontar riscos.
Objetivo 2: Fornecer um panorama do funcionamento geral das turmas, rastreando os pré-requisitos cognitivos para aprendizagens dos hábitos de leitura e escrita.
Objetivo 3: Estabelecer um canal de comunicação com a escola e a equipe pedagógica com o intuito de informar sobre eventuais grupos de risco que podem se beneficiar de uma assistência pedagógica reforçada.
Objetivo 4: Através deste canal de comunicação com a escola e a coordenação psicopedagógica, rastrear eventuais alunos que necessitam de intervenções específicas, evitando, principalmente, a banalização de eventuais distúrbios de aprendizagens e do neurodesenvolvimento (com a ajuda da avaliação, evitar o “efeito pandemia”)
Objetivo 5: Auxiliar os alunos, em colaboração com a equipe psicopedagógica, para que eles possam se beneficiar de uma avaliação mais específica e individualizada do ponto de vista psico-médico-social em caso de necessidade especifica.
Objetivo 6: Abrir um canal de comunicação com os pais que querem informações mais especificas a respeito do desempenho observado ao longo do projeto, tanto em âmbito grupal como em âmbito individual.
Objetivo 7: O grupo de risco poderá ser reavaliado ao final da série escolar no intuito de mensurar os progressos e oferecer eventuais suportes suplementares para os mais necessitados.