O desafio educacional perpassa diversas frentes de aprendizagem, e o período da pandemia, assim como a retomada do modelo presencial nas escolas este ano, reforçou discussões sobre déficit de aprendizagem, desigualdades e habilidades que vão além das competências cognitivas. Nesse cenário, com o emprego de software específico, metodologia científica elaborada pela startup Motrix analisa estudantes por meio da fala e da leitura, identificando o nível de alfabetização e letramento O objetivo é instrumentalizar os professores para personalizar o ensino na educação básica dentro do contexto individual de cada aluno.
Nesta entrevista, a psiquiatra e pesquisadora-chefe da startup, Natália Mota, explica como a teoria dos grafos, base de sua pesquisa em neurociência, chegou a esse modelo de metodologia para as escolas.
Também professora do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), Natália tem mestrado, doutorado e pós-doutorado em neurociências. Atuante nas áreas de desenvolvimento infantil e neuroeducação, é pioneira e reconhecida internacionalmente na área de psiquiatria computacional pelo desenvolvimento de métodos computacionais que auxiliam a caracterização de sintomas mentais pela fala preditivos de diagnósticos, assim como auxiliares na caracterização do desenvolvimento infantil e aprendizagem.
Personalização
“O objetivo do trabalho que estamos fazendo é mensurar o desempenho dos alunos por meio da fala e da leitura, identificando o nível de aprendizado de alfabetização e letramento, prevendo ainda o desempenho de turmas ao final de um ciclo escolar e até mesmo para o futuro acadêmico”, destaca a pesquisadora. Segundo ela, quando o professor, diretor e gestor escolar conseguem entender como funciona a mente de cada estudante, o que mais prende sua atenção e como tem sido o seu aprendizado a partir da análise da fala e leitura, é possível personalizar esse ensino para haver um aproveitamento máximo do potencial de cada aluno.
A neurocientista deu início a essa linha de pesquisa em Natal/RN ao notar que algumas crianças tinham frases estruturadas como se fossem “pequenos adultos”, enquanto outras tinham dificuldades em organizar ideias e falas. “A forma de perceber isso é muito natural, a partir de algo que fazemos desde muito cedo: contar histórias. Mostrávamos imagens, e as crianças contavam algo a partir do que viam. Notamos que as mesmas características que aparecem quando a pessoa está em fase de adoecimento mental – por exemplo, a baixa sociabilidade – são desenvolvidas durante a infância, no processo de alfabetização. Mas não nos restringimos a isso: com base nessa pesquisa, foi possível entender meios de aprimorar a fluência na língua-mãe e até mesmo dar mais amparo para um futuro acadêmico”, ressalta.
O trabalho vem impactando instituições de ensino que estão passando por essa fase de experimentação da metodologia antes de ela ser disponibilizada no mercado. “A Motrix tem a missão de tornar real a neurociência para a educação brasileira. Sou psiquiatra de formação e, há mais de dez anos, quando estava na residência, iniciei esse projeto de análise de fala por meio da teoria dos grafos. Percebemos que a avaliação em saúde mental ganhava muito adicionando precisão em avaliações que antes eram puramente subjetivas. Uma das vantagens é poder fazer um paralelo de um comportamento humano tão complexo como linguagem e o desenvolvimento cognitivo das pessoas”, pontua.
Atualmente, a metodologia está em fase de testes em escolas no interior de São Paulo a fim de consolidar a melhor solução para ser aplicada nas instituições de ensino. “Nós não queremos propor apenas uma nova metodologia para as escolas, mas sim produzir ciência para a educação, e é o que estamos fazendo”, reforça a pesquisadora.
Quais são os principais desafios do ensino-aprendizagem hoje e quais as causas?
No nosso país, temos muita diversidade e desigualdades bastante complexas que dificultam olhar para o processo de ensino-aprendizagem como uma unidade. Além disso, estamos habituados a olhar na educação muito mais para formas de ensinar do que entender a maneira como uma criança naturalmente aprende, considerando as diversas fases de desenvolvimento em que ela está. Isso gera uma expectativa de aprendizagem semelhante para toda criança, sem considerá-la em sua diversidade, em sua trajetória singular de aprendizagem. Assim, aspectos que ajudam e atrapalham a aprendizagem podem ser pontos cegos para o educador, que precisa olhar para várias crianças diferentes ao mesmo tempo. Por isso, a importância da individualização desse olhar para cada trajetória de aprendizagem, encontrando potencialidades e dificuldades a tempo de nos adaptarmos a elas.
Déficits de aprendizagem, desigualdades e habilidades vão além das competências cognitivas. Fale a respeito.
Sem dúvida, e esse ciclo que conversa entre fatores ambientais e da própria saúde cognitiva de cada criança segue em dinâmica, em constante modificação, à medida que a criança se desenvolve. Como seres humanos, somos uma espécie extremamente social e nosso aparato cognitivo sustentado pela nossa neurobiologia é mantido em movimento, se desenvolvendo como uma máquina de aprender, quando encontra condições equilibradas que sustentam minimamente esse desenvolvimento. Nascemos muito imaturos e despreparados para sobreviver, porque temos um período longo de amadurecimento já em sociedade. Assim, quando um bebê começa a falar, ele já estava imerso numa sociedade de indivíduos falantes há tipicamente mais de dez meses até começar a tentar falar, elaborando essa forma de se comunicar à medida que cresce, interage, socializa. Após alguns anos aprendendo e desenvolvendo essa linguagem oral, passa a conhecer o mundo da linguagem escrita, para o qual precisa ser ensinado, inicialmente aprendendo esse código, integrando informações sensoriais de campos diferentes (como audição e visão), para então conseguir compreender e reproduzir essa forma de comunicação que se torna cada vez mais complexa. Mas para que consiga expressar sua potencialidade, é importante que tenha condições de se manter saudável física, cognitiva e emocionalmente.
Explique o que é a teoria dos grafos.
Teoria dos grafos é um ramo da matemática em que representamos as relações entre unidades que observamos no cotidiano. Por exemplo, podemos representar o tráfego aéreo mostrando um grafo em que as unidades (no grafo chamadas de nós) seriam cada aeroporto e as ligações entre unidades (no grafo chamadas de arestas) seriam as viagens entre aeroportos. Mas se quisermos entender a relação entre pessoas em uma rede social, podemos representar cada perfil da rede como um nó e a ligação entre perfis que se seguem como arestas, que podem apontar uma direção entre elas (um perfil A que segue o perfil B, mas o perfil B não segue o A, teria apenas uma aresta saindo do A em direção ao B, por exemplo). Dessa maneira, podemos olhar para o conjunto de interações entre essas unidades e a complexidade delas de maneira precisa, identificando padrões de interações entre eles.
Explique o modelo de metodologia para as escolas ao qual chegou sua pesquisa, quais são os objetivos dele e como funciona na prática.
A Motrix tem como missão usar tecnologia para permitir aos educadores e pais um acompanhamento individualizado de cada aluno, permitindo conhecer essa trajetória de aprendizado mais de perto. Neste projeto, focamos em fluência de leitura: nessa linha de pesquisa, estudamos a relação das palavras em uma narrativa criada pela criança. Representamos assim cada palavra como um nó e as associações espontâneas entre palavras por arestas que vão direcionando a trajetória de palavras na medida em que uma criança conta uma história. Dessa maneira, pudemos caracterizar padrões de repetições entre palavras e associações de palavras que surgem quando contamos uma memória ou uma história. Essa maneira de quantificar esse padrão de fala em saúde mental gera indicadores tão sensíveis ao estado cognitivo que foi possível predizer perdas cognitivas importantes associadas a desordens mentais como esquizofrenia, transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) e demências com muita precisão. Mas antes de olhar para o declínio cognitivo, essas medidas também foram sensíveis em revelar como essa cognição se desenvolve em uma criança que começa a aprender a ler na escola. As mesmas medidas de conectividade da fala que caíam com o sofrimento mental percebemos que se desenvolviam em crianças principalmente no momento em que aprendiam a ler. Quanto melhor o desenvolvimento de aspectos da cognição social (como habilidades de teoria da mente), inteligência global (medida nos testes de QI) e memória verbal, mais complexas eram as histórias, com vários elementos que se conectavam espontaneamente. Mais importante, essas medidas de conectividade da historinha narrada pela criança foram capazes de predizer a performance de leitura com meses de antecedência. Dessa maneira, vemos um potencial rastreio com possível valor preditivo de performance acadêmica futura olhando para a forma como uma criança conta uma história.
Atualmente, a metodologia está em fase de testes em escolas no interior de São Paulo a fim de consolidar a melhor solução para ser aplicada nas instituições de ensino. O que já foi possível constatar nessa fase de testes?
Sim, estamos testando a solução em um acompanhamento durante todo este ano letivo de forma longitudinal, para vermos como cada criança vai desenvolvendo suas habilidades de leitura e contação de histórias em paralelo. Verificamos essa fluência de leitura não só com testes padronizados, mas também com tecnologia de rastreamento ocular durante a leitura de um texto, mostrando a fluência dos olhos que passeiam pelo texto durante uma leitura silenciosa ou em voz alta. Já pudemos verificar que é possível realizar as medidas no ambiente escolar sem interromper a rotina da escola, integrando de forma lúdica essa avaliação, gerando dados de forma contínua.
E quais serão os próximos passos desse trabalho após essa fase de testes?
Sendo verificado o potencial do método, pretendemos torná-lo disponível para escolas que desejem acompanhar o desenvolvimento de seus alunos, com cursos preparatórios aos professores para que possam aproveitar ao máximo o potencial desse seguimento junto com seus alunos e famílias.