Em 1964, Lacan escolhe como tema de seu seminário anual os quatro conceitos fundamentais: o inconsciente, a pulsão, a repetição e a transferência. Essa decisão é tomada em um momento singular da história da psicanálise: a saída de Jacques Lacan da IPA (International Psychoanalitical Association) fundada por Freud. Podemos entender que, nesse contexto, elencar esses termos como fundamentais e dedicar a eles seu ano de estudo como um ato do psicanalista francês.

Princípios analíticos

Desde 1956[1], Lacan critica veementemente os modos de funcionamento da IPA e propõe o retorno aos textos freudianos. A escolha dos quatro conceitos fundamentais como seu tema de trabalho anual, reafirma seu compromisso com os princípios analíticos, proclamando aos quatro ventos: o analista está aí para analisar e, nesse trabalho, temos quatro pilares: o inconsciente, a repetição, a pulsão e a transferência.

A transferência está em jogo em toda a relação entre sujeitos. Mas na psicanálise ela é motor do tratamento. Freud, não sem dificuldades, percebeu seu poder no tratamento de seus primeiros pacientes e afirmou que “todos os conflitos têm que ser decididos no âmbito da transferência”[2]. Jaques Lacan, em sua aula de 15 de abril de 1964, Lacan afirma que a psicanálise é, ela mesma, “intervenção no conflito”[3] e que a causa do inconsciente “deve ser fundamentalmente considerada como perdida. E é a única chance que temos de ganhá-la”[4].

Transferência positiva

Freud, em “A dinâmica da transferência”, segue sua elaboração e desdobra o conceito em transferência positiva – quando auxilia no tratamento – e a negativa – quando surge como obstáculo ao processo de cura. Lacan retoma Freud e, desde sua escuta atenta, vai mais além e afirma que só há transferência, não podendo ser dividida em positiva e negativa.

Um traço qualquer do analista é o que leva o analisante a escolhê-lo para o trabalho analítico. Esse traço se desdobra, o sujeito aposta que deitar-se no divã, falar a outro mitigará seu sofrimento e trará a possibilidade de cura. Ele acredita que aquele outro, sentado em sua poltrona, sabe escutá-lo e conhece os meios para o fim de seu sofrimento. Esse outro sabe. Sobre esse suposto saber fundamenta-se a transferência. Lacan afirma, no seminário de 64, que a “presença do analista é ela própria uma manifestação do inconsciente”[5]. Essas manifestações ocorrem em um pulsar constante, “de um movimento do sujeito que só se abre para tornar a se fechar”[6].

E MAIS…

A habilidade de velejar pelos mares com habilidade

Movimento de abertura e fechamento, a transferência navega por essas ondas. O saber do analista está justamente em tomar o timão e saber em qual posição devem estar as velas em determinado momento. A habilidade de velejar pelos mares com habilidade inclui manejar os momentos de tormenta, nos quais o sujeito preso em seu blablabá, anuncia tempestades e fecha o tempo de seu inconsciente. É do analista o timão, é seu ofício saber levar o analisante a atravessar o tempo ruim, até que entre as nuvens surjam novas frestas por onde a luz possa entrar. Há um detalhe que faz toda a diferença entre o velejar e o processo analítico: nesse último não há mapa, há o saber fazer, não está pré-determinado aonde chegar, só será possível saber se o destino foi atingido quando estivermos lá. É toda uma aventura.

Mais uma vez, o artista sabia disso antes do psicanalista:

“Uma luz azul me guia

Com a firmeza e os lampejos do farol

E os recifes lá de cima

Nos avisam do perigo de chegar”

Tim Maia[7]

Referências:

[1] Se consideramos como ponto de partida dessa crítica seu texto “Situação da psicanálise em 1956 e formação do analista”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 461-495.
[2] FREUD, S. (1912) “A dinâmica da transferência”. In: FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: (“O caso Schreber”): artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[3] LACAN, J. Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 127.
[4] Ibid, p. 128.
[5] Ibid, p. 125.
[6] Idid.
[7] MAIA, T. Descobridor dos sete mares, 1983.