“A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano.

Por isso, não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram, eles dobram por ti”.

John Donne, poeta inglês do séc. XVII

Começo este artigo destacando uma frase do poema de John Donne: “A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano”.


Tomo agora algo mais sobre o poema, destacando a expressão que se tornou parte da memória de tantos de nós, uma vez que ela deu nome a um romance, o mais expressivo, do grande escritor norte americano Ernst Hemingway: Por quem os sinos dobram. Hemingway usa como referência sua experiência pessoal como participante voluntário da Guerra Civil Espanhola e faz uma análise ácida, com críticas à atuação extremamente violenta das tropas de ambos os lados. Acima de tudo, o livro trata da condição humana. O título é referência ao poema do pastor e escritor inglês John Donne que se encontra na obra “Poems on Several Occasions” (em português chama-se “Meditações”) e invoca o absurdo da guerra, mormente a guerra civil, travada entre irmãos. “Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”. Em várias passagens do texto os personagens estranham e se estranham, desempenhando os papéis bizarros que se viram forçados a assumir durante a guerra, e fraquejam ao ver nos inimigos seres humanos que poderiam estar de qualquer um dos lados da guerra.

Experiência real 

A obra, de 1940, tem como pano de fundo a Guerra Civil Espanhola, que dá visibilidade à condição humana nessa insana experiência que sobrevive e atua em tantas circunstâncias até os tempos de hoje. Não custa lembrar que Hemingway participou da Guerra Civil Espanhola como motorista de ambulância, na Cruz Vermelha, de modo que a escrita de seu livro expõe a intimidade dessa experiência que se chama guerra. O sentimento de empatia, portanto, norteia a escrita de Hemingway em sua escrita.

Já John Donne, o poeta, não deixa sem reposta a pergunta: Por quem os sinos dobram? Ele responde peremptório: eles dobram por ti. Cada morte, mesmo aquela de alguém que não conhecemos, leva uma parte de cada um de nós, esclarece o poeta.

O que dizer da morte auto infligida, por um ser humano, não só próximo, mas alguém que contribuiu definitivamente para nossa existência e que, por desejo próprio, se é que se pode falar em desejo nessas circunstâncias, desiste da vida?

Reconheço que as palavras até aqui utilizadas não traduzem a força do fenômeno que desejo discutir. Quando faltam as palavras, há algo que nossa compreensão ainda não atingiu. Ao escrevê-las, parece que são diminutas, superficiais pedagógicas, e não trazem à tona as emoções muitas vezes ambivalentes que tal tema possui.

Mas, vamos adiante com atenção redobrada para sentir se elas, as palavras, conseguem tomar corpo e responder o que se passa com aquele que viveu a experiência de perda de alguém por suicídio?

A insuficiência de quem fica

Aos herdeiros de um suicida resta o sentimento de o quanto sua presença nas relações primordiais foi insuficiente para deter o gesto suicida.

Nesse momento, me vem à mente aqueles que trazem em sua vida emocional um sentimento de vazio, que os acompanha como uma nuvem densa que cobre o sol e coloca um anteparo sensorial entre o Outro e ele.

Um muro frio, defensivo se forma entre essa pessoa e seus pares.
A propósito dessa defesa, que pode se constituir em uma espécie de anestesia, Freud, em seu texto ímpar sobre Luto e Melancolia se pergunta qual o papel que a anestesia desempenha no fenômeno melancólico.

Em todas as suas manifestações, a anestesia se manifesta na omissão ou impossibilidade da sensação de prazer e bem-estar na esfera psíquica.  

Função do novo outro, o analista

Na medida em que, como psicanalistas, participamos da reconstrução desse laço rompido, reconhecemos de imediato o sentimento que tinge de modo expressivo em tom melancólico o mundo mental e real que o paciente habita. Há um retrato nítido de que parte dele também foi diminuída, tal qual o poema descreve.

Retomo o poema para refletir como se daria a presença do outro que se dispõe a segurar a ponta da corda solta. “A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano”.   

O poeta propõe com firmeza a presença do sentimento de empatia e de pertencimento quando reafirma a diminuição de cada um de nós na perda de outro ser humano. É assim que o analista se encontra na presença daquele que perdeu alguém…

Não vamos esquecer que estamos todos implicados nos gestos de nossos pares, quer estejam fisicamente próximos ou distantes.

Lembranças indeléveis

Um grande paradoxo é deixado para os que sobrevivem ao suicídio de pessoas próximas. Os suicidas desapareceram, mas eles deixam uma mensagem indelével de um forte desejo de jamais serem esquecidos. Uma ausência sempre presente se estabelece.

Há algo para se pensar sobre essa presença-ausente paradoxal e permanente nos herdeiros dos suicidas que, como suponho, somos todos nós, em maior ou menor intensidade.

Há uma presença na memória de quem esteve em proximidade com tais experiências, uma presença que jamais desaparece.

Também há aqueles que, como nós, gostariam de compreender algo sobre a maneira como cada subjetividade pôde absorver ou rejeitar tal experiência.

Pessoas que ficam costumam (ou poderiam) elaborar a experiência através de relatos orais ou por escrito do que viveram, temeram, imaginaram… Há, com frequência, um forte sentimento de que sua presença no mundo não ofereceu sentido de pertencimento ao outro.

Sem reparação

Houve um abandono radical, que tirou imediatamente qualquer possibilidade de reparação, um sentimento tão necessário para se lidar com os reveses das hostilidades que pertencem ao desenvolvimento psíquico de cada um de nós. “Minha presença não fez diferença, não foi suficiente, não deu sentido ao Outro” … Tantos nãos sobre si resultam dessa perda…

Mas, muitas vezes, pessoas que viveram tal experiência são tomadas por sentimentos de impotência, raiva e hostilidade pela vivência desse abandono radical. A ideia recorrente que também elas podem dar cabo a vida surge com frequência.

Por vezes, notamos em quem teve essa experiência de perda súbita e violenta de alguém próximo, a presença de uma ansiedade dispersiva, uma angústia espalhada sem direção.

No relato do suicídio do pai, expresso em palavras telegráficas, uma forma rápida de enviar a mensagem ao analista, a paciente não se detém no assunto e procura demonstrar uma naturalidade – não natural, ao trazer um assunto tão difícil de se colocar em palavras.

Estes são alguns dos inúmeros sentimentos e interrogações que se desencadeiam a partir de uma experiência devastadora como essa para todos os envolvidos: quem comete o ato suicida e para aqueles que herdam toda a carga dessa ação.

E MAIS…

Da vida e da morte para a arte

O tema traz uma reflexão para a experiência da poetisa Sylvia Plath, romancista e contista norte-americana.

A perda de seu pai ainda na infância marcou profundamente sua vida e sua obra. Otto, pai de Sylvia, não procurou tratamento para doença curável, quando se encontrava doente. Um suicídio lento, podemos pensar…

Nos cabe perguntar se estaria Sylvia emocionalmente situada no universo dos herdeiros do suicídio

“Só deus sabe que ferida a morte de seu pai lhe causara na infância, mas ao longo dos anos essa ferida foi se transformando na convicção de que ser um adulto significava ser um sobrevivente (pg. 33 – O Deus Selvagem).

“Sobre seu corpo as nuvens passam
Altas, altas e geladas
E um tanto finas, como se

Flutuassem num vidro invisível.
Diferentes dos cisnes,
Não têm reflexos;

Diferentes de você,
Sem cordas para te prender.
Tudo bem, tudo azul. Diferentes de você”

(trecho do poema Gulliver, de Sylvia Plath)

NOTA DE RODAPÉ
Tema apresentado por Cintia Buschinelli na mesa Herdeiros do Suicídio: sobre aqueles que ficam, durante o II Simpósio Bienal SBPSP – Fronteiras da Psicanálise: a clínica em movimento, realizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 2020.