O documentário “Democracia em Vertigem”, dirigido pela cineasta mineira Petra Costa, é um fluxo emocional contínuo.
A obra retrata a trajetória do ex-presidente Lula desde os primeiros movimentos políticos como metalúrgico até a prisão em consequência da Operação Lava Jato.
Narrado em primeira pessoa, o filme soa como uma história da vida da cineasta. Ela abre mão do olhar de antropóloga para representar o outro. “Não é possível falar do outro sem falar de mim”, afirma.
Material subjetivo
A sua relação com a democracia seria mais curta do que ela imaginava – ela queria falar era sobre traumas pessoais. Descobriu assim o tesouro desse material subjetivo e empreendeu seu filme, que funciona como uma forma de catarse.
A catarse era um processo usado pelo psicanalista Sigmund Freud para tratar doenças de origem traumática. Assim, obtinha-se a “purificação” do sujeito, que se libertava do trauma através da expressão das emoções reprimidas que causavam os sintomas.
O conceito de catarse foi descrito pelo psiquiatra Wilson Castello de Almeida, em “Além da Catarse, Além da Integração, a Catarse de Integração”.
“Na psicologia, seria a liberação de emoções, sentimentos e tensões reprimidas, através de recursos idênticos à ab-reação. Na psicanálise, que não é psicologia, seria a operação capaz de trazer à consciência memórias recalcadas no inconsciente, libertando a pessoa em análise de sintomas psiconeuróticos associados a esse bloqueio”, explica Almeida.
O conceito de Freud
O psiquiatra e psicanalista francês Daniel Lagache define a “ab-reação” como termo usado para apontar a existência de um conflito. Trata-se, portanto, de um nome usado pela psicanálise que se refere a uma retomada daquilo que foi colocado fora, porém, transformado. Em outras palavras, o conflito, então recalcado, é modificado pela experiência vivida pelo paciente.
“Essa reação (ab-reação) expressa em emoções, palavras e atuações, ‘vai das lágrimas à vingança’, podendo ocorrer no cotidiano das pessoas ou nas sessões de psicoterapia, em que ao paciente é permitido rememorar e objetivar pela palavra o acontecimento traumático, e assim libertar-se do ‘quantum’ de afeto que o tornava patogênico”, escreve Almeida.
A concepção da expressão “catarse de ab-reação” encontra-se no texto de Freud “O Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos – 1893“, no qual ele estudou a origem da doença histérica.
“Democracia em Vertigem” mostra o ponto de vista pessoal em cenas bem próximas da história familiar de Costa: “Eu temo que a democracia tenha sido apenas um sonho efêmero”, lamenta a cineasta.
Um acervo emocional
Os encontros e desencontros resultantes dos laços de família são projetados em várias obras de Costa, como “Elena” (documentário sobre a irmã), “O Olmo e a Gaivota” (filme que aborda o labirinto da mente de uma mulher que engravida) e “Olhos de Ressaca” (que fala sobre o amor e o envelhecer, contados sob a perspectiva dos avós).
A cineasta confessou que a imagem de Elena, sua irmã, que se suicidara em Nova York, lhe veio em sonho, demostrando um trauma que não fora resolvido na vida da artista.
Durante o processo de filmagem do documentário, ela sonhava repetidamente com ela. “Eu cozinhava a dor dela, e esta dor evaporava. No último sonho, eu dançava ao redor dela, eu menina e ela já adulta. No sonho ela estava descansando”, relata. O relato revela o processo de eliminação do conflito a partir da catarse.
Democracia em Vertigem em pauta
O olhar pessoal de Costa no filme “Democracia em Vertigem” é também o olhar de muita gente.
“É difícil entender para onde o país vai”. A história política construída pelas Diretas Já se confunde com a própria história de Costa.
O documentário traz imagens da construção de Brasília feitas por uma geração de mulheres da sua família. Inclusive, ela conta que herdou da avó uma câmera e o gosto pelas imagens, o que explica o olhar afetivo que liga o filme à própria família.
Ela se inspirou no cineasta, fotógrafo e crítico francês Chris Marker, de “O Fundo do Ar é Vermelho”, que diz: “Os lobos continuam sendo assassinados [em referência à esquerda], mas eles ainda existem”. O documentário é o retrato do espírito de 1968 e como ele ainda resiste.
E MAIS…
O cenário político em cinco mil horas
Foram três anos acompanhando o cenário político em cinco mil horas de filmagem. Era preciso um gerenciamento de conteúdo para fazer a decupagem do material. A pesquisa se estendeu a arquivos desde a fundação de Brasília.
Costa pontua que ainda falta autocrítica da esquerda e da direita, assim como das instituições em geral.
Ela mostra que crises podem virar epifanias. A Alemanha, por exemplo, fez a autocrítica do holocausto. Nisso, ela acrescenta: “Nós, os ricos, somos responsáveis por essa tempestade”, conclui a artista.