De início, um contato simples, o livro articula loucura e criatividade, e a série por sua vez é um belo retrato da loucura. Como podemos gostar desse tipo de coisa? Essa é a pergunta que nos fazemos.

Acho que não gostamos pura e simplesmente, só é possível gostar porque também desgostamos e é a partir dessa dialética que me proponho a colocar alguns dos pensamentos que se articulam em mim e me ajudam a aproximar a série do livro.

Loucura e criatividade

Tomo como ponto de partida para articular a série e o livro o estilo literário da autoficção. Na minha leitura do livro, entendi que Montero contava sobre suas experiências como escritora e trazia sua pesquisa em neurologia e psicologia a respeito da loucura e da criatividade, assim como a literatura por ela levantada que ilustra essa relação, com destaque para a relação do autor e sua obra.

Algo que discorre brilhantemente em seu livro. Encontrei em uma rápida pesquisa na internet a menção de um trabalho apresentado na V Mostra de Pesquisa da pós-graduação da PUC-RS, cujo título é “A autoficção na literatura contemporânea”. Trago um trecho inicial do trabalho:

“(…) Ao longo do estudo feito sobre as narrativas de introspecção, surgiu a necessidade de um estudo teórico sobre a questão do gênero autoficcional, tendo em vista a presença significante da escrita do Eu na literatura contemporânea, do impulso autobiográfico e do uso da autoficção como estratégia literária. A conceitualização primeira de autoficção foi criada pelo francês Serge Doubrovsky (1977), criador do neologismo e do primeiro romance considerado autoficcional – Fils, em resposta à lacuna existente nos estudos realizados sobre a autobiografia por Philippe Lejeune. Para Doubrovsky, todo contar de si é ficcionalizante, assim, a autoficção é um gênero híbrido, que mistura realidade e ficção, uma narrativa que oscila entre o autor e o outro ficcional.” (MARTINS, A. F. A autoficção na literatura contemporânea, 2010).

Realidade e ficção

Ao ler a descrição acima, considero a ideia de que contar sobre si já é ficcionalizante e com isso, há uma mistura entre realidade e ficção. Isso me remete a uma passagem de Ogden que diz sobre a tensão dialética necessária para compreender as posições de Melanie Klein, esquizoparanóide e depressiva. Nas palavras dele: “(…) O sujeito kleiniano não existe numa determinada posição ou nível hierárquico de posições, mas numa tensão dialética criada entre posições. (…) como cada uma é um pólo de um processo dialético em que cada uma cria, nega e preserva a outra” (OGDEN, T. Os sujeitos da psicanálise, 1996; pg 30). Essa compreensão sobre a tensão dialética como algo essencial vale para todas as organizações psíquicas, também valem no meu entender, para o estilo narrativo da autoficção.

Sendo assim, tanto Rosa Montero como Richard Gadd (criador, roteirista, produtor e protagonista de Bebê Rena) assumem esse estilo autoficcional em suas obras. Ambos, não coincidentemente, assumem suas loucuras.

Com isso, quero dizer, podem falar de um lugar em que estão identificados com a loucura ou com os sentimentos mais sombrios do ser humano, e, ao mesmo tempo, podem falar sobre isso, na medida em que o escrevem (em livro e roteiro).

Seguindo o rumo das minhas ideias, acrescento outro ponto da dialética presente em ambas as obras, a dialética entre a realidade e a fantasia. A personagem Martha da série Bebê Rena é uma personagem que rompe com a realidade, sendo assim, do ponto de vista da psicanálise, não podemos considerar que viva uma dialética com a fantasia.

O rompimento com a realidade não permite o fantasiar, pelo contrário, vemos que a personagem é “a pedra bruta das emoções”, não há uma terceira dimensão, uma área intermediária, há apenas as coisas como são. Nos remete à posição esquizo-paranóide de Klein, trago a leitura de Ogden sobre Klein:

“(…) A posição esquizo-paranóide é uma organização psicológica que produz um estado de ser a-histórico, relativamente desprovido da experiência de um sujeito interpretativo que faça a mediação entre a sensação de eu-dade e a própria experiência sensorial vivida, relacionado com objetos parciais e que se apoia totalmente, como modos de defesa e formas de organização da experiência, na clivagem, idealização, recusa, identificação projetiva e pensamento onipotente. Esse modo esquizo-paranóide contribui para a sensação de imediatez e de intensidade da experiência.” (OGDEN, T. Os sujeitos da psicanálise, 1996. pg 31).

Rompimento com a realidade

O rompimento com a realidade afasta a possibilidade do fantasiar, há uma clivagem e o sujeito interpretativo não existe. Martha busca relacionar-se com Bebê Rena através de Donny – em outras palavras, Donny dá corpo à representação Bebê Rena. Mais adiante na série teremos acesso à origem do nome Bebê Rena, este se trata de um bichinho de pelúcia em formato de rena que Martha descreve e coincide com as feições de Donny.

Sendo assim, Bebê Rena representa sua mais remota lembrança infantil, a única relatada na série como uma boa memória, o bichinho de pelúcia era um suporte emocional para ela.

Acompanhada do Bebê Rena ela nos conta ter atravessado por momentos de briga dos pais quando pequena, o que fica implícito ter marcado sua história profundamente e quem sabe, tenha contribuído fortemente para sua condição psíquica.

Continuando mais um pouco, Martha vive através de Donny SENDO para ela Bebê Rena as mais extremas e diversas emoções que habitam nosso ser – o mundo das emoções brutas, sem continente, sem condição pensante para elaborá-las, são pura descarga.

Martha é puro mundo interno, desmedido e desenfreado, e há algo desse interno escancarado que nos sensibiliza, mas ele não vem sozinho, vem acompanhado de toda a agressividade e destrutividade. Gosto do momento em que Martha pergunta para Donny se ele também não sente vontade de abrir as pessoas e entrar dentro delas, como se pudesse habitar alguém que ama por dentro, de tanto amor.

Pedra bruta das emoções

Afinal não seria uma forma descabida de buscar reviver a experiência do útero materno?

Ainda que Martha seja a própria “pedra bruta das emoções” internas, há resquícios de um contato com a realidade quando ao ser denunciada e julgada se diz culpada dos crimes de perseguição, tanto a Donny quanto aos pais dele.

Para considerar-se culpada de tais crimes ela perde Bebê Rena, perde essa ilusão com a qual se relaciona profundamente, o último fiapo de vida. Me angustia um pouco não ter notícias de Martha, aliás, é sabido que Donny é um personagem real, afinal o autor Richard Gadd nos escreve do futuro dando notícias desta experiência, Martha também é real, mas não há continuidade, temos de lidar com ela “apenas” como uma personagem.

Outra pergunta que me fiz ao final da série foi, “afinal, o que diferencia Martha de Donny?”, a série mostra tão bem como os dois se parecem em muitos aspectos, eles são quase que o match perfeito, terrivelmente perfeito. Como podemos julgar que Donny se sai melhor do que Martha? Bem, Martha é condenável ao sistema de leis que conhecemos, é uma stalker perigosa e potencialmente (se não literalmente, pela sua ficha criminal) assassina.

Sim, ela é a “pedra bruta das emoções”, não pode fazer muito além de atuar todas essas emoções, por isso, é perigosa e sem limites, não possui recursos psíquicos para articular a tensão dialética entre a realidade e a fantasia criando a tensão necessária na qual existimos sem sermos condenáveis (sem passarmos ao ato).

Já Donny, consegue fazer algo com esta experiência complexa do submundo das emoções, ele expõe isto através da escrita deste roteiro. Isso nos diz que Donny é capaz de “re-visitar” as cenas, “re-elaborar” e transformá-las em algo transmissível, mantendo inclusive a natureza das experiências, impactantes e perturbadoras também para nós espectadores.

Essa condição me parece essencial e remete quase que automaticamente a duas máximas psicanalíticas tão disseminadas e conhecida por nós:

1) a cura pela fala – não falar por falar, afinal Martha fala bastante e também escreve muitos e-mails, mas seria o falar implicado, que permita uma revivescência, uma reflexão, uma dialética;

2) recordar, repetir e elaborar – como o arco completo da história da série, quando Donny se recorda dos abusos com o agente, passa a “notar” em si as repetições dos abusos através da autodepreciação de si próprio, é só no final que é possível elaborar, tendo passado pela jornada completa, quando não existe mais uma Martha, como um suporte transferencial para ele também. Assim como foi ele quem deu corpo ao Bebê Rena, talvez Martha tenha dado corpo a todas as suas memórias fragmentadas do abuso e suas decorrências. Martha FOI para ele aquilo que ele não podia ser, embora tenha vivido. Então, ao final da série, ele ocupa o lugar da Martha, não está mais com ela, ela foi presa, caso resolvido. Porém, tudo o que ela representou continua com ele e faz parte dele. Na cena final, ao se sentar na cadeira de um pub, desolada, lhe é oferecida a mesma bebida por conta da casa que ele oferece à Martha no início da série, é um insight, por assim dizer – ele não fala, mas eu cheguei a formular uma fala em seu lugar, imaginei que com espanto ele diria para si mesmo: “Então agora eu sou ela”. Ao que tudo indica, estar nesse lugar, real e simbólico, permitiu que Richard Gadd criasse sua versão Donny.

Sendo um o suporte transferencial perfeito para o outro, temos o exemplo do que seria o match perfeito entre duas almas, um perigosamente perfeito. Nesse sentido, se precisavam. Buscando na internet por outras resenhas da série, encontrei uma publicada no blog da Revista Boi Tempo.

Compulsão à repetição

Nessa resenha a autora aborda a compulsão à repetição como forma de compreender o porquê Donny não dá um basta em Martha. Queria acrescentar a esta ideia uma outra mais fresca para mim que é a busca pela verdade. Para ilustrar, destaco um trecho em que Ogden retoma autores numa linha associativa que me parece muito interessante:

“(…) Bion (1962a, 1962b, 1970) desenvolve a ideia de Isaacs de que a fantasia (pensar inconsciente) busca inerentemente o conhecimento para a ideia de que a necessidade humana de conhecer a verdade da própria experiência é o ímpeto primário para pensar. O ‘senso de realidade é tão importante para o indivíduo quanto comida, bebida, ar e excreção de resíduo’ (Bion, 1962a, 9.42).” (OGDEN, T. Leituras Criativas, 2014, pg 82).

Ainda um pouco mais adiante nesse mesmo texto:

“(…) fantasiar é visto como uma tentativa de se chegar a conhecer a verdade da própria experiência, atividade que envolve desenvolver meios idiossincráticos pessoais de ter curiosidade, diferentes formas de obter conhecimento, formas de fazer algo com o que se aprende, e meios individuais de usar o que se conhece no processo de vir a ser o que se é.” (OGDEN, T. Leituras Criativas, 2014, pg 83). 

Parte do impulso de Donny em não encerrar a relação com Martha e com seu agente, ambos abusadores, mas pelo contrário, procurá-los, seria também, a meu ver, para além da compulsão à repetição, uma forma de busca pela sua verdade, um ímpeto primário do qual não podemos fugir e os meios de investigação empregado idiossincráticos, como diz Ogden. Assim sendo, por pior que possa parecer a experiência de Donny/Richard Gadd, ele se encontra nisso.

Proponho um complemento agora através do livro “O perigo de estar lúcida”, nele a autora fala da sua jornada pessoal e profissional com a escrita, além das referências científicas que seleciona sobre o tema da criatividade e loucura, assim como obras literárias e tudo isso compõe seu estilo dito misto de escrita e autoficcional. Montero diz em especial da capacidade dos escritores de colocar em palavras algo da sua própria loucura. Ressalta que o ato de escrever em si não é suficiente, por assim dizer, para salvar as pessoas de sua própria condição – de ser quem são. Por isso, Montero também relata diversos autores brilhantes que cometeram suicídio ou sofriam de vícios terríveis que comprometiam sua vida de modo geral. Richard Gadd também escreveu sua obra, ainda assim, Gadd é quem é, e suas obras não o “libertam” dessa condição. Montero também não foge disso, em seu livro diz diversas vezes sobre sua experiência com crises de pânico e até de vivências de persecutoriedade, além de estabelecer duas verdades básicas que persegue ao longo do texto, sempre nos lembrando: 1) todos somos iguais; 2) todos somos diferentes.

Trago alguns trechos que julgo interessantes de uma entrevista da autora à revista Veja. Em um dos trechos, Montero diz sobre o efeito da escrita:

“(…) E o interessante é que ao contar essas histórias de personagens que estão nos extremos, você consegue fazer com que pessoas comuns e normais se identifiquem com eles. Então isso indica que, como dizia o poeta e dramaturgo romano Terêncio, nada de humano nos é estranho. Dentro de cada um de nós estão todas as possibilidades do ser.”

Essa fala da autora nos permite aproximar do impacto da série, é muito pertinente sua menção a Terêncio de que nada de humano nos é estranho. Uma outra forma de dizer o que para nós psicanalistas remete quase que automaticamente ao Unheimlich de Freud. Para encerrar os destaques da entrevista de Montero, destaco uma última resposta dela quando questionada sobre a valorização da autoficção na literatura, ela nos diz:

Vivemos um mundo onde as certezas afundaram. Não acreditamos mais em quase nada. Parece que todos os grandes mitos da antiguidade estão sendo destruídos. E então, nesse mundo tão escorregadio, não me surpreende que surja a autoficção, porque indica que nem o próprio ‘eu’ é crível, também se torna algo manipulável e ficcional. Por outro lado, o que acontece é que a autoficção parece algo demasiadamente egocêntrico e pequeno, desprovido do grande sopro da criatividade, da imaginação, dos sonhos de humanidade, que são os romances. E assim, se encorajamos e valorizamos a autoficção acima de tudo – e os críticos estão fazendo muito isso -, cortamos as asas da grande ficção.

Dinâmica cultural

Encerrando minhas articulações por aqui, penso que esse estilo literário da autoficção é mesmo muito fascinante, mas tendemos a diminuir seu poder mobilizador quando buscamos averiguar onde está a ficção e onde estão os fatos, aquilo que foi “inventado” e aquilo que é “comprovado”.

Não seria essa também uma preocupação que costumamos recebemos em nossos consultórios?

O que é crível e tenho provas e aquilo que não posso crer que me aconteça mesmo que eu não queira que me aconteça. Ou o famoso “quando vou ver, já fiz”, “quando me dou conta, já foi”.

Existe uma dinâmica cultural de nossos tempos em colocar uma coisa versus a outra, em comparação, sem haver muito espaço para considerarmos uma coisa junto da outra, contendo a outra.

Buscar diferenciar e categorizar isto daquilo quem sabe promova apenas a clivagem entre as partes e não a tensão dialética que nos propõe Ogden. Afinal, basta ser humano para se impactar com ambas as obras trazidas aqui.

Referências:
Bebê Rena [seriado]. Criação: Richard Gadd. Estados Unidos: Netflix (acesso em 04/05/2024)
CAPUTO, Gabriela. Como autora espanhola transformou crises de pânico em ótima literatura. Link de acesso: https://veja.abril.com.br/cultura/como-rosa-montero-transformou-crises-de-panico-em-otima-literatura (acessado em 07/05/2024)
MARTINS, Anna Faedreich. A autoficção na literatura contemporânea. Link de acesso: https://editora.pucrs.br/anais/Vmostra/V_MOSTRA_PDF/Letras/83352-ANNA_FAEDRICH_MARTINS.pdf (acessado em 08/05/2024)
MARTIN, Laura. ‘Bebê Rena’: a história real de perseguição e abuso sexual que inspirou série da Netflix. Link de acesso: www.bbc.com/portuguese/articles/ce9rzyz8d4vo (acessado em 07/05/2024)
MESTRE, Cauana. Fascínio e horror em “Bebê Rena”. Link de acesso:  https://blogdaboitempo.com.br/2024/05/02/fascinio-e-horror-em-bebe-rena/ (acessado em 07/05/2024)
MONTERO, Rosa. O Perigo de Estar Lúcida. Ed. Todavia, 2023
OGDEN, Thomas. Leituras Criativas: ensaios sobre obras analíticas seminais. Lendo Susan Isaacs (pg. 91 – 89). Ed. Escuta. 2014
OGDEN, Thomas. Os sujeitos da psicanálise. Para uma concepção intersubjetiva do sujeito: a contribuição Kleiniana (pg. 29 – 45). Ed. Escuta, 1996.

Fonte: Texto originalmente publicado em https://www.sbpsp.org.br/blog/autoficcao-e-tensao-dialetica/