A violência sob os mais diferentes ângulos, inclusive do abusador, é tema desta entrevista com a psicóloga Cristiane Flôres Bortoncello, organizadora do livro Violência: compêndio teórico-prático sobre vítimas e agressores. A publicação da Sinopsys Editora abrange diversos tipos de agressão, desde as mais evidentes, como a física, até as mais veladas, como a obstétrica. A partir da psicologia e da área jurídica, evidenciam-se formas de prevenção e tratamento das vítimas.
A obra tem como objetivo auxiliar todos os profissionais interessados em compreenderem mais sobre a temática, dando suporte teórico para a prática clínica e a jurídica. A primeira parte é voltada para a infância e a adolescência, enquanto a segunda contempla adultos, idosos, pessoas com deficiência e minorias sociais e de gênero. Aborda, ainda, a avaliação e o tratamento dos agressores.
Sobre a organizadora
Cristiane é mestre em ciências médicas/psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); doutora em ciências da saúde pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA); terapeuta certificada pela Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC); especialista em terapia cognitivo-comportamental (TCC) pelo Instituto da Família de Porto Alegre (INFAPA).
Também tem formação em terapia de casal e especialização em TCC da Infância e da adolescência pelo Instituto de Terapia Cognitivo-comportamental (InTCC); formação em terapia do esquema pela Wainer Psicologia; treinamento intensivo em terapia comportamental dialética (DBT) pelo Behavioral Tech Institute; certificação em terapia racional-emotiva comportamental (TREC)/primary practicum pelo Albert Ellis Institute; e certificação Internacional em terapia focada nas emoções (níveis 1 e 2) pelo Instituto Brasileiro de Terapia Focada nas Emoções e Psicoterapias Integrativas (TFE Brasil).
Qual a relevância da temática da violência para os profissionais da psicologia?
Este livro não é só importante, ele é indispensável, porque o mundo está evoluindo e tem coisas que não dá mais para aceitar, não cabem mais, como a comunicação violenta, a invalidação, a agressão. São 704 páginas e 39 capítulos em que os autores abordam tudo o que se pensa sobre violência. Temos autores que são de abordagens diferentes da área da psicologia e o pessoal do direito, para também poder ter esse olhar do todo, porque existem processos jurídicos importantes. Existem muitas coisas, então precisamos olhar por todos os âmbitos. São 76 autores envolvidos nesse projeto. E o livro olha todas as idades e todos os parâmetros de se pensar sobre a violência. Ele serve para um promotor, um advogado, um juiz e para os profissionais que atendem no consultório clínico, mas também para as empresas que querem poder entender um pouco mais sobre o tema violência.
Por que trazer esses diferentes olhares, sobre a psicologia e sobre o direito, para dentro de um único livro?
Uma infinidade de pessoas e sistemas está envolvida no tema violência, e penso que falta muita informação. A população em geral não tem muita informação, os profissionais muitas vezes não estão preparados para atender tais casos. E esse compêndio de informações em um único material contribui para que uma parte possa saber sobre a outra parte, o que funciona, o que precisa, quais são os tratamentos. Acredito que tudo compilado num lugar possibilita que todas as pessoas saibam mais sobre aquilo que se precisa saber.
Quais são as formas de violência contra a infância e a adolescência abordadas na obra?
O tema violência abarca todas idades e todos contextos, dentre os quais, abordamos o papel parental, os lugares que essa criança ou adolescente visitou. Quando uma criança é negligenciada, isso é uma forma de violência; quando um pai ou uma mãe superprotege um filho, isso é uma forma de abuso psicológico, pois, ao superproteger e cuidar, acaba impedindo que ele se desenvolva.
Temos também abuso físico; situações de invalidação, que entram na questão do abuso psicológico; agressividade; abuso sexual, que ocorre bastante e muitas vezes não é denunciado; bullying e cyberbullying, que são formas de abuso para as quais não se olhava antigamente. Dados do governo federal mostram que 38% das denúncias feitas são por negligência; 23%, por violência psicológica; 21%, violência física e por aí vai. E esses dados não são precisos, porque nem todo mundo denuncia. Por isso precisamos nos debruçar bastante sobre o tema violência.
Fale sobre sinais e características da criança e do adolescente vítimas de abuso.
Os sinais envolvem questões cognitivas, emocionais e comportamentais. Nas questões cognitivas, vemos a criança ou o adolescente com muita confusão mental, baixa concentração na escola, incapacidade de compreender a experiência como violência. Muitas vezes, a vítima passa uma vida inteira sofrendo violência e normatiza isso, então fica confusa. Às vezes, sofreu violência de um cuidador, seja irmão, pai ou mãe, por exemplo, e fica confusa, porque aquela pessoa deveria ser a pessoa que protege, mas, na verdade, é a que maltrata. As questões cognitivas também envolvem a sensação de culpa: “Se isso aconteceu comigo, é porque eu merecia”. Então há um atrapalhamento, há muitos pensamentos intrusivos, crenças relacionadas à inferioridade, inadequação, pensamentos catastróficos, desesperança, baixo rendimento escolar etc.
Sobre as questões emocionais, vemos muito medo, culpa, vergonha, ansiedade, tristeza, raiva, sensação de rejeição, de confusão, humilhação, que levam a criança ou o adolescente a desenvolver desregulação emocional, a qual, no futuro, pode desencadear um transtorno da personalidade, um transtorno do estresse pós-traumático.
No que diz respeito às questões comportamentais, englobam crianças ou adolescentes que fogem de casa, isolamento social, muita agressividade. Em crianças pequenas, enurese ou encoprese. Também vemos comportamentos de hipersexualidade, mudança no sono e na alimentação.
São sinais de que tem alguma acontecendo dentro daquela casa e isso precisa ser visto. Algumas vítimas falam, mas não é comum a criança ou o adolescente sair falando sobre a situação de violência. A grande maioria se fecha, se cala, por causa da culpa, da vergonha, do medo, de uma série de sensações, emoções e pensamentos que tomam conta da vida delas. Mas elas sempre vão dar sinais de alguma coisa. Então é importante não só a família, as pessoas que estão na volta, mas os profissionais também estarem atentos para cada um desses sinais e sintomas. Assim evitamos a violência.
A segunda parte do livro aborda formas de violência na vida adulta, na terceira idade, contra minorias sociais e de gênero e pessoas com deficiência. Também aborda o lado do abusador. Fale a respeito.
Falar do abusador não é algo muito esperado. As pessoas esperam que olhemos somente pelo viés da vítima, mas também precisamos olhar pelo viés do abusador. Sabemos que muitas pessoas que cometem a violência também passaram por situações de violência. E não falamos sobre isso para passar a mão por cima, mas porque precisamos olhar para todos os lugares.
Na segunda parte, nos debruçamos sobre a violência contra adultos, idosos, pessoas com deficiência, minorias sociais e de gênero, porque são populações que têm um risco aumentado de sofrer violência por, muitas vezes, estarem em situações de vulnerabilidade, negligência, discriminação. Acho que precisamos, enquanto seres humanos, entender mais sobre nosso papel na sociedade. E precisamos de profissionais capacitados para olharem essas questões de uma forma mais profunda, mais inteira, para que a avaliação e o tratamento possam ser feitos de maneira realmente efetiva.
Quais são os tipos de violência mais recorrentes na demanda clínica?
Tem os que batem na porta para tratar do assunto, mas tem os que não batem na porta, pois nem estão enxergando que é violência. A invalidação familiar é uma violência que nem os pais e nem as crianças se dão conta. Tem também a violência doméstica, em que a pessoa vai buscar terapia por outras questões, como transtorno de ansiedade, e está sofrendo violência doméstica.
Mas a violência doméstica também é tema da busca, mulheres geralmente, mas também acontece de os homens buscarem terapia por estarem vivendo relações abusivas. Ainda tem os casos de violência sexual de crianças pequenas que chegam à psicoterapia. E, às vezes, estamos atendendo outras situações e acabamos descobrindo que a pessoa sofreu abuso e que não contou para nenhum terapeuta até então.
É possível identificar os sinais de um abusador?
Não é o tipo de demanda que atendo, mas, em geral, os abusadores estão no lugar da psicopatia, eles se utilizam muito da sedução para conseguir captar a atenção. Nem todo profissional está habilitado, preparado e sabe como conduzir ou percebe que essa pessoa é um agressor, porque ela geralmente vai para a via da sedução ou da religião e, por trás desse discurso, está abusando de uma criança, ou seja, está se valendo de Deus para conseguir fazer esse movimento de agressividade. O livro tem capítulos para avaliar e capítulos sobre como se dá o tratamento do abusador.
Como psicóloga, como é atender as demandas que envolvem esses diversos tipos de violência no dia a dia?
Já atendi vários casos de pessoas que sofriam violência e que nunca tinham contado para outros terapeutas. Sempre que sinto que tem alguma coisa, eu pergunto. E acho que isso ajuda. Em primeiro lugar, como profissionais, precisamos estabelecer um bom vínculo com as pessoas que atendemos. O vínculo é imprescindível. Tendo isso, podemos conversar sobre tudo e trabalhar sobre todas as questões. Estou com 50 anos e digo assim: nossos pais não são perfeitos, nem sempre temos uma adolescência ou uma vida adulta perfeita (até porque perfeição não existe) e todos temos questões para trabalhar em psicoterapia. E gosto de fazer uma caminhada para voltar lá para trás e poder mudar a nossa história. Então, toda vez que estou bem vinculada com o paciente, tento trazer todas essas questões de invalidação, de como ele enxergou seus pais, para trabalharmos tudo isso. É possível. Na prática, já atendi pessoas que sofreram traumas muito significativos e que, após fazermos trabalhos importantes em terapia, pararam de pensar tanto naquilo. Então existe, sim, a possibilidade de realmente ajudarmos a mudar a vida dessas pessoas, mas, para isso, precisamos nos debruçar, estudar, compreender como é que funcionam os tratamentos, porque podemos fazer a diferença na vida delas.