Embora nesse momento haja uma série de flexibilização, a pandemia segue seu ritmo próprio. Esperamos que tudo isso acabe logo, mas ainda não sabemos quando. Precisar lidar com a angustia da incerteza também foi outra novidade que a quarentena revelou, principalmente aos que precisam viver com a ilusão de certezas e verdades absolutas. Antes de tudo isso surgir, se experimentava a liberdade de viver. Com a pandemia, houve a perda da liberdade de ir e vir e, consequentemente, a necessidade de uma parada brusca para se pensar em como recalcular os próximos passos.

Toda perda precisa ser elaborada, mesmo as mais simples. Ao processo de elaboração de uma perda, se dá o nome de luto. O luto é uma experiência de digestão emocional, uma forma de entrar em contato com as tristezas advindas de algo que morreu ou de uma perda significativa, ou algo que por algum motivo se tinha uma expectativa, mas, que não se realizou.

O luto não é algo patológico, é uma experiência saudável e necessária para o amadurecimento emocional. É um processo fundamental para se administrar o vazio deixado pela perda significativa. E nem sempre essa perda é associada à morte de um ente ou amigo querido. Nesse momento vivemos, por exemplo, o impacto causado pelo isolamento com a chegada do novo coronavírus, que revirou não só o mundo externo de um modo geral, como também o mundo interno de cada um, nos obrigando a lidar com uma série de tipos de lutos diferentes.

Luta física e emocional silenciosa

Se já dizia Caetano que “de perto ninguém é normal”, imagine em situação de isolamento onde uma das questões mais importantes é não só a convivência com os outros que estão por perto, ou a distância social que a pandemia impôs, mas, a convivência consigo próprio. O medo constante da própria morte ou a de alguém próximo revela que há uma luta silenciosa pela sobreviência física e emocional.

Lidar com a pandemia e o processo de isolamento também se faz necessário um processo de luto. O luto é composto por 5 fases: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. É importante ressaltar que esse processo não ocorre exatamente nessa ordem, não necessariamente existe essa sequência, mas é comum encontrar duas ou três dessas fases agudas em pessoas enlutadas. Entretanto, quando bem exploradas, as chances de um luto bem elaborado são maiores. Isso quer dizer que é importante sentir as dores advindas do fato de existir em contato com a realidade sem fugir delas.

Sobre isso, é possível observar que a quarentena é composta por fases que se movimentam em busca de uma adaptação mais equilibrada assim como as fases do luto. Pegando emprestado as fases do luto, vemos que inicialmente o impacto do isolamento causou uma série de desconfortos, e era possível observar a negação. Quem podia prever que viveríamos algo assim? A ideia era de que não era algo tão sério e que logo tudo voltaria a funcionar como antes. Era apenas uma pequena pausa. 

Com o passar do tempo, se instalou o incômodo gerado pela irritabilidade e raiva projetadas no ambiente pela privação de liberdade e contato social e sentimento de inconformismo. O ser humano é um ser social e precisa se relacionar afetivamente; mesmo com o aumento da comunicação por telefone ou vídeo, o fato é que o isolamento vem desestabilizando muita gente.

A trajetória de cada fase

A fase de barganha ou negociação é aquele momento da quarentena em que se faz necessário uma mediação, são os acordos consigo próprio. Nesse momento se vislumbra uma possibilidade de mudança no futuro e surge esperança de uma cura divina em troca de ações voluntárias. Uma ideia de que, ao se tornar uma pessoa melhor, receberá divinamente pelos seus esforços empreendidos. Diante dessas tentativas surge o outro estágio, o da depressão, aquele em que a tristeza fica mais proeminente, o sentimento de solidão fica mais intenso e perceptível. Nessa fase, há grande necessidade de conversas sobre os sentimentos que surgem. A fase da depressão no luto é importante para se ter mais clareza do encontro com a realidade, os sentimentos que aparecem, a consciência e a elaboração são essenciais para se entrar na última fase, que é a aceitação. A fase da depressão no luto não é patológica e, sim, um mergulho necessário nas próprias dores em uma tentativa de elaboração; e tende a ser superado.

A última fase é da aceitação; nela há um encontro mais significativo com a realidade, as emoções ficam menos barulhentas, os sentimentos estão mais sossegados e é possível um espaço interno para se viver a partir do que se tem e do que se construiu até aqui. Há um espaço para florescer, a esperança renasce de forma tímida e cautelosa, porém vigorosa.  

Importante ressaltar que essas fases se misturam e o fato de ter passado por uma, não significa que a outra foi exatamente superada. Todas essas fases do luto progridem e regridem de acordo com os gatilhos, as fragilidades e os recursos psíquicos que cada um possui. Portanto, fazer essa travessia do luto na quarentena tem sido um grande desafio, pois coloca em exigência o pensar sobre expectativas particulares de um ano intenso e que não pôde ser vivido como minimamente se pretendia. De algum modo particular, todos sofreram desconfortos significativos com o impacto advindo do isolamento, e ainda sentem, sobretudo aqueles mais frágeis que já apresentavam histórico anterior de desequilíbrio emocional. Já outras pessoas, que antes não percebiam, tiveram a chance, ainda que forçada, de se depararem com suas próprias fragilidades e isso tem sido uma descoberta surpreendente. O acompanhamento psicológico foi, e ainda é, um importante recurso utilizado para ajudar a encontrar ferramentas internas que possam favorecer o avanço e promover o bem-estar emocional nessa estrada que ainda perdura uma caminhada árdua e incerta, mas que com esse apoio, se torna menos nebulosa.

E MAIS…

O processo de luto faz parte da existência humana.

Ao nascer, o ser humano perde o espaço intrauterino onde vivia e ganha outro fora do corpo da mãe. E isso vai ocorrer em várias esferas da vida; posteriormente há a perda do seio materno, e por aí vai. O que quero enfatizar é que o luto é um processo natural e deve ser vivido.

Viver bem significa estar confortável com os próprios sentimentos e isso passa pelo processo de luto. Toda escolha requer uma renúncia, isso significa que há uma perda. Para cada perda, das mais simples até as mais complexas é necessário um movimento de elaboração. Podemos dizer então que fazemos diariamente vários lutos.

Viver a perda faz parte da elaboração; é um mergulho nos sentimentos diversos que surgem. Algumas pessoas têm dificuldade em entrar no processo de luto. Esse entristecer necessário fica muito assustador e é comum ser substituído por uma ação qualquer como se não houvesse tempo a perder, o que é um engano. Vários fatores podem contribuir para na dificuldade de elaborar o luto. Na elaboração o que foi perdido não será restituído, mas a pessoa terá alcançado um reposicionamento diferente que permita novos investimentos afetivos.