Na prática da psicoterapia, ética e valores são aspectos importantes que podem produzir conflitos entre aquilo que o paciente quer para sua vida e o que a sociedade espera dele, o que também tem grande influência no trabalho dos terapeutas. Nesta entrevista, o assunto é aprofundado pelo psicólogo Alexandre Dittrich, um dos organizadores do livro Valores nas terapias comportamentais: relação terapêutica, ética e política junto com os também psicólogos Jan Luiz Leonardi e Jocelaine Martins da Silveira.
A obra publicada pela Sinopsys Editora busca orientar estudantes e praticantes (psicólogos e psiquiatras) de diferentes modalidades de psicoterapias de natureza comportamental em relação aos aspectos éticos inerentes ao trabalho psicoterapêutico. Aborda desde os fundamentos teórico-conceituais até questões éticas complexas presentes no cotidiano dos terapeutas, em especial, aquelas envolvendo a atuação psicoterapêutica com populações que têm demandas específicas (sujeitas a preconceito racial, de gênero e de orientação sexual).
Dittrich possui graduação em psicologia pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) e doutorado em filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Atualmente é professor e pesquisador na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tem experiência nas áreas de psicologia e filosofia, dedicando-se especialmente aos seguintes temas de pesquisa: relações entre behaviorismo radical e análise do comportamento, história da psicologia, epistemologia da psicologia, relações comportamentais sociais e culturais, ética, política e psicologia.
Qual o objetivo do livro e quais as contribuições para os psicólogos?
O livro aborda os vários aspectos relacionados aos valores no campo das psicoterapias comportamentais. E a psicoterapia é um campo que lida com valores humanos de muitas formas, porque envolve os valores do cliente, os valores do terapeuta, que são também muito importantes, e os valores da sociedade na qual os clientes e os terapeutas vivem. E essa sociedade tem uma série de demandas, de expectativas, de critérios sobre o que é certo ou errado, bom ou mau, desejável ou indesejável no comportamento das pessoas, o que produz muitos efeitos importantes sobre o comportamento do cliente e sobre o comportamento do próprio terapeuta. E pode produzir conflitos entre aquilo que o cliente quer para a vida dele e o que a sociedade espera dele: a família, os amigos, no trabalho, na escola e nos vários outros grupos com os quais convive.
Tudo isso tem uma influência muito importante no trabalho dos terapeutas comportamentais. E o livro é dirigido em especial para terapeutas comportamentais e também para estudantes de psicologia, seja no nível da graduação, seja da pós-graduação, mas que estejam se preparando para serem terapeutas, porque o objetivo é auxiliá-los a entenderem e a lidarem da melhor maneira possível com esses problemas relacionados aos valores na prática clínica.
O livro trata de temas que frequentemente levantam dúvidas em estudantes e profissionais, como a ética e a política. Exemplifique algumas dessas dúvidas que permeiam o dia a dia profissional.
Trata-se de um livro bastante abrangente. Temos uma parte que trata das bases conceituais e das bases empíricas do conceito de valores, como esse conceito é definido na análise do comportamento, que é a teoria científica que fundamenta a maioria das terapias comportamentais, como ele é definido no interior das próprias modalidades de terapia comportamental, como ACT (terapia de aceitação e compromisso), FAP (psicoterapia analítica funcional), DBT (terapia comportamental dialética ) e IBCT (terapia comportamental integrativa de casal), como os valores têm sido estudados empiricamente enquanto um processo comportamental. Essa é uma primeira parte mais de fundamentação conceitual e empírica.
Há outra parte que trata da importância dos códigos de ética para a prática da psicoterapia, tanto o Código de Ética Profissional do Conselho Federal de Psicologia (CFP), quanto os códigos de ética no âmbito da análise do comportamento, por que esses códigos são importantes para fundamentar a prática dos terapeutas. O livro também tem vários capítulos que discutem como identificar quais são os valores do cliente que procura a psicoterapia e como lidar com a relação entre esses valores e os valores do terapeuta e, ainda, os valores sociais que influenciam tanto o terapeuta quanto o cliente.
Temos dois capítulos que discutem o nível de diretividade que um terapeuta deve exercer em relação aos seus clientes, o que historicamente é um problema muito discutido no campo das psicoterapias e que gera muitas dúvidas entre profissionais e estudantes. Temos capítulos sobre os princípios éticos que devem guiar a atuação dos terapeutas quando eles atuam com certos públicos e com certos contextos que têm as suas demandas e as suas particularidades específicas, como é o caso da terapia comportamental infantil e da clínica forense.
Há um capítulo do nosso querido Jan Luiz Leonardi, que é um dos organizadores do livro, em parceria com a Deisy Emerich-Geraldo, sobre a importância ética de fundamentar o trabalho clínico com boas evidências científicas, com evidências confiáveis. Por fim, temos capítulos específicos sobre alguns problemas sociais que têm sido muito discutidos e que têm vários reflexos importantes no âmbito clínico. Aqui me refiro especificamente a problemas relativos a gênero, em especial, aos problemas que afetam as mulheres, aos preconceitos que existem em relação às diferentes orientações sexuais e também ao racismo, que infelizmente ainda é uma chaga muito forte no nosso país. Todos esses problemas têm reflexos importantes na clínica.
Penso que tudo o que mencionei forma um quadro abrangente das várias questões relativas a valores com os quais os terapeutas comportamentais devem saber lidar e isso torna o livro, na minha opinião, uma ferramenta de trabalho extremamente útil para os terapeutas e que vai, no espírito da pergunta, ajudar a resolver muitas dúvidas que terapeutas já formados ou em formação eventualmente tenham em relação a essas questões.
Por que demorou tanto tempo na psicologia para se chegar a esse momento no qual se pode entregar ao paciente um tratamento com comprovação científica?
É difícil responder por que demoramos tanto para chegar nesse momento em que estamos agora na psicologia. Vou inverter um pouco a ordem da pergunta e olhar mais para o futuro do que para o passado. De fato, demorou e penso que temos ainda muito por fazer para fundamentar bem, com boas evidências científicas, as diferentes modalidades de psicoterapia voltadas para os diferentes problemas ou para os diferentes desfechos que queremos produzir com a psicoterapia.
Temos ainda um grande processo pela frente, mas o importante é que nós estamos nesse processo ou pelo menos grande parte da comunidade científica está ciente e concorda com a necessidade que temos de fundamentar o nosso trabalho não apenas no campo clínico, mas em qualquer campo que eventualmente os psicólogos possam atuar. E são muitos campos diferentes nos quais venhamos efetivamente fundamentar esse trabalho com boas evidências.
Acredito que é um processo o qual estamos ainda encaminhando da melhor maneira possível. Parece-me que temos muito mais dúvidas do que certezas nesse processo. Aliás, como eu sempre costumo dizer, a ciência nunca é o campo das certezas, mas sempre o campo da dúvida, da investigação, do questionamento e da pergunta. É isso que nos move, nos faz caminhar adiante.
Olhando para o futuro, vou preferir comemorar o fato de que me parece que grande parte da comunidade científica de psicólogos hoje concorda com o fato de que, muito embora se possa discutir as diferentes formas de produção dessas evidências científicas, nós sabemos que é importante que essas evidências existam.
É possível dizer que esse é um caminho sem volta e que as evidências científicas tendem a acabar com algum preconceito que ainda exista em relação à psicoterapia?
Penso e espero que seja um caminho sem volta esse de fundamentar qualquer coisa que se faça em psicologia com as melhores evidências possíveis. Ainda há um preconceito em relação à prática do psicólogo no sentido de dizer “é coisa para maluco e tal”. Popularmente isso ainda existe, eu diria, em uma medida bastante grande e é um tipo de preconceito que a nós, por meio de boa divulgação científica, tentamos gentilmente combater ao longo do tempo para fazer com que as pessoas tenham uma concepção um pouco mais ampliada, desprovida de certos preconceitos em relação à psicologia.
E acredito que as duas coisas vão andar juntas. A fundamentação em boas evidências, esperamos nós, vai fazer com que a psicologia se mostre cada vez mais efetiva e confiável nos campos em que venha atuar. Isso deve fazer, também esperamos, que as pessoas tenham uma confiança maior no trabalho de psicólogos e que, eventualmente, os pequenos ou grandes preconceitos que ainda existem em relação à atuação da psicologia venham a ser substituídos por compreensões mais adequadas.
E qual é o papel social do psicólogo e como a ética influencia a atuação desse profissional?
Esse é o tipo de pergunta que precisaríamos de algumas horas talvez para discutir, porque há muitas posições diferentes sobre ela na psicologia, mas, de uma maneira geral, muito resumida, eu diria que o papel dos psicólogos é promover alguns valores nas relações humanas. Já que estamos aqui falando sobre valores, vou me servir dessa palavra para expressar algumas coisas que acredito que nos cabe promover nessas relações.
A saúde, o bem-estar, a dignidade, o respeito e a justiça nas relações humanas são todas palavras que penso que apontam para a direção daquilo que deveríamos querer promover enquanto psicólogos. A ética, que é tema do nosso livro, evidentemente é importante justamente porque existem diferentes concepções sobre quais são os objetivos da nossa profissão e como esses objetivos devem ser promovidos e como nós podemos saber se de fato estamos alcançando esses objetivos.
Então, com o nosso livro, não esperamos ter a última palavra sobre esses assuntos, porque não é assim que as coisas funcionam na ciência. A ciência é um processo contínuo de pesquisa, de discussão, de aprofundamento do nosso conhecimento. Mas estamos oferecendo, eu diria, um excelente retrato, um retrato confiável, atualizado, bem fundamentado sobre o que a comunidade científica dedicada às terapias comportamentais tem discutido em relação aos valores.
Assista à entrevista na íntegra no canal da Sinopsys Editora no YouTube.