Caro leitor, nesse texto trago uma notícia a seu respeito que talvez não seja novidade para você, mas como vale a pena sempre se lembrar disso, arrisco ser repetitiva: ao longo da vida você vai falhar muitas vezes, vai se deparar com limites e com a falta, mas isso não é o fim do mundo.
Ao contrário, se você puder tolerar as limitações que a realidade lhe impõe e conseguir pensar em seus erros como fonte de aprendizado e não como instrumentos de tortura, vai se tornar uma pessoa cada vez melhor. A vida vai ficar mais leve, seus vínculos afetivos mais verdadeiros, você vai gostar mais de si mesmo e vai ser mais feliz.
Racionalmente, todos sabemos que não existe um único ser humano perfeito e infalível. Sabemos também que andar em busca da perfeição pode ser saudável, desde que tenhamos em mente que essa é uma meta que jamais será alcançada, mesmo com toda a exigência que alguém possa se impor.
Mas a razão não é suficiente para enfrentar a força de nossas emoções. Saber que somos seres humanos mortais e limitados não garante a continência e a tolerância necessárias para lidar com o desejo de perfeição, que pode ser tão intenso e inundar a personalidade de uma tal forma, que a busca pela perfeição pode se tornar uma obsessão, como se ser perfeito fosse uma conquista ou uma dádiva.
Muitas pessoas se autodefinem como perfeccionistas e vendem esta imagem de si mesmas, se vangloriam, acreditando que esse é um sinal de excelência, garantia de sucesso, inclusão e amor.
Mas, na verdade, a crença onipotente em perfeição traz muito sofrimento. Sempre que alguém intenta algo irrealístico, a vida cobra sua fatura, indelevelmente. Quem almeja acertar tem o dever sagrado de errar, disse Junqueira Filho (2021).
Sua majestade, o bebê
Para Freud, a ideia de perfeição está relacionada à criação pelo Eu de uma entidade psíquica que ele chamou de Eu ideal. Dizendo assim parece complicado, mas este é um conceito psicanalítico com o qual entramos em contato, sem nos darmos conta, no nosso dia a dia. Lembra da trágica história da Coruja e Águia?
A Coruja propõe um acordo à Águia. Disse ela: o mundo é grande e seria uma tolice ainda maior que o mundo ficarem comendo os filhotes uma da outra. A Águia concorda, mas como ela vai distinguir seus filhotes dentre tantos outros? Sempre que encontrares uns borrachos lindos, bem feitinhos de corpo, alegres, cheios de uma graça especial, são os meus, diz a Coruja (Lobato, s/d).
Acredita-se que a expressão mãe coruja surgiu desta fábula atribuída a Esopo que foi escrita no século V a.C, e depois transcrita por diversos autores como Jean de La Fontaine e Monteiro Lobato. Freud nunca usou essa expressão, mas em 1914 ele criou outra, que ficou muito conhecida: Sua Majestade o Bebê. Disse ele:
Os pais são levados a atribuir à criança todas as perfeições – que um observador neutro nelas não encontraria – e a ocultar e esquecer todos os defeitos (…). As coisas devem ser melhores para a criança do que foram para seus pais, ela não deve estar sujeita às necessidades que reconhecemos como dominantes na vida. Doença, morte, renúncia à fruição, restrição da própria vontade não devem vigorar para a criança, tanto as leis da natureza quanto da sociedade são revogadas para ela, que novamente será o centro e o âmago da Criação. Her Majesty the Baby, como um dia pensamos de nós mesmos. (p.36)
Esta fase de onipotência infantil é fundamental para o desenvolvimento físico e psíquico da criança. O amor dos pais sentido como incondicional é fonte de amor próprio, de autoconfiança.
O bebê precisa ter a experiência de um dia ter sido tudo para seus pais, ter a ilusão de que eles viviam exclusivamente para amá-lo e para atender a todos seus desejos e necessidades, para que aos poucos vá desenvolvendo um continente interno capaz de tolerar e conter a dor de perceber que ele não é um reizinho e que o mundo, além de imperfeito, não gira em torno de seu próprio umbigo.
Todos nós já observamos um bebê com fome, dor ou algum outro desconforto. Ele protesta sua dor de todas as formas, clama por ser gratificado total e imediatamente. Mas se a ele forem oferecidas, paulatinamente, algumas doses de frustração, sua capacidade para aguardar pelo atendimento de suas necessidades ou para suportar que nem todos seus desejos serão realizados vai aumentando.
A realidade vai entrando aos poucos na vida psíquica, e o Eu, essa estrutura psíquica que não nasce pronta, vai se constituindo. Mesmo que esse processo ocorra da melhor forma possível, o confronto com a realidade é inelutável e doloroso.
O Eu real e o Eu ideal
Não é fácil para o ser humano renunciar ao posto de Sua Majestade! Segundo Freud (1914), foi com o intuito de recuperar o prazer onipotente de perfeição da infância que o Eu se dividiu e criou o Eu ideal, essa entidade psíquica que passou a ser o alvo do amor incondicional que o Eu um dia usufruiu – ou desejou ter usufruído, eu acrescentaria.
O Eu ideal é o guardião dos valores mais sublimes da alma humana, o reduto psíquico para onde convergiu tudo o que se espera de elevado do homem, disse Freud (1923).
Quando o Eu se sente próximo de seu Ideal, obtém um grau de satisfação narcísica e pode recuperar, ainda que parcialmente, a ilusão de perfeição da infância: o paraíso perdido e o paraíso reconquistado.
Mas o Ideal se tornou também uma medida de valor para o Eu real. Apropriando-se de seu Ideal, a criança pode sonhar com o que gostaria de ser quando crescer, e o adulto, dentro de sua escala de valores, vai se confrontar consigo mesmo.
Certamente seus ideais não serão todos realizados, mas poderão ser transformados, adaptados… Os problemas se iniciam quando a pessoa acredita que pode e deve ser igual a seu Ideal. Não ser ideal gera culpa e vergonha, é prova de fracasso e de inferioridade.
Freud (1923) sustenta que isso acontece quando a instância crítica do psiquismo, o super-Eu, impelido por forças inconscientes autodestrutivas, se torna excessivamente severo e impiedoso.
Pela ação de um super-Eu primitivo e violento, o Ideal vira munição a ser lançada contra o Eu, que vai ser julgado e condenado por não poder alcançar o inalcançável.
De medida a desmesura, o Eu ideal cai do plano mais elevado para o abismo do psiquismo, onde não existe humanidade, possibilidade de reparação e de aprendizado com a experiência. Estamos no campo minado da tirania do Ideal, onde impera culpa e castigo, o amor próprio desaparece e o Eu se fragiliza.
Medos infantis de abandono e de desamparo são acionados, surgem ameaças persecutórias de rejeição e fortes angústias de desintegração.
Para se proteger da dor e não desmoronar, o Eu inconscientemente aciona defesas poderosas. A vaidade oculta o pouco amor-próprio, a arrogância aparece no lugar do orgulho realista, que é fruto da autoestima.
A onipotência disfarça sentimentos de impotência e fragilidade. As mentiras e a falsificação da realidade ocultam a culpa e postergam o confronto inelutável com dor de ser quem se é. As doenças mentais, como depressão, transtorno de ansiedade e distúrbios alimentares, por exemplo, surgem quando as defesas psíquicas falham. Afinal, todo remédio tem seus efeitos colaterais…
Nós conhecemos o fim do acordo da Coruja e a Águia:
A Águia saiu pra caçar e viu um ninho com três criaturas que piavam de bico bem aberto. Ela não pestanejou e comeu-os! A Coruja ficou desolada quando viu seu ninho vazio e vai questionar a Águia, que muito admirada, retruca: eram teus aqueles monstrenguinhos? Pois olha, não se pareciam nada com o retrato que deles me fizeste!
Pobre Coruja, que acreditou que para seus filhos as leis da natureza seriam suspensas, como disse Freud. Inocente, imaginou que a razão e a lógica seriam suficientes para proteger seus filhotes, mas acabou deixando-os à mercê de seu próprio desamparo. A águia, mesmo com seu olhar aguçado e imbuída de boa vontade, não pôde ver refletida nos pequenos a beleza do olhar amoroso da mãe Coruja. Faltou-lhe a compaixão…
Ao fim e ao cabo, a realidade é o que é, sem tirar nem pôr. Viver contra a realidade é arrogância, e a sua presença, de acordo com Bion (1957), é sinal que uma catástrofe ocorreu no passado, nos primórdios de nossa vida mental. Uma tragédia anunciada, como o trágico fim dos filhotes da Coruja. A doença mental pode ser assim entendida não como consequência, mas como um fator dentro de uma configuração psíquica complexa, cujas raízes remontam à constituição do psiquismo de cada ser humano, e dele enquanto espécie.
Se você leitor, tiver fôlego para me acompanhar mais um pouco, vou contar a história de Teobaldo. Através dela, você vai poder vislumbrar esta configuração psíquica a que me refiro. Conto a história e me despeço, torcendo que para você, a busca pela perfeição seja apenas um instrumento de transformação e de expansão mental, e que o Ideal seja sempre um ato de fé no potencial criativo e construtivo do infantil que mora em cada um de nós.
Teobaldo conheceu Serafina por acaso. Ela mendigava nas ruas de Florença com seu bebê recém nascido no colo. Quando ela lhe estendeu a mão, pedinte, Teobaldo quase caiu de joelhos, em sinal de adoração. Para ele, a jovem, com sua beleza pálida e divina, parecia saída de uma manjedoura em Belém. Ele viu diante dele a sua obra-prima, a sua Madona. Rafael havia encontrado um rival à sua altura!
O artista, que somente poderia se expressar pela perfeição, guardou em sua mente a imagem de Serafina em todos os detalhes, suas feições e a força inspiradora daquele instante, enquanto se preparava para o momento em que estaria pronto para pedir-lhe para posar para ele. E neste dia, imortalizaria sua imagem numa obra prima a superar os grandes mestres.
Teobaldo anunciou para toda cidade que ele estava gestando sua obra-prima. Com um ar de humilde afetação, exaltava as virtudes da arte, alardeava seus propósitos elevados e assim conseguiu juntar em torno de si um séquito de admiradores encantados com sua genialidade.
O tempo foi passando e as pessoas, ansiosas para ver a famosa Madona, começaram a cobrar Teobaldo. Ele justificava sua demora dizendo que o ideal sempre pode ser moldado, aperfeiçoado… uma grande obra de arte exige tempo, contemplação, privacidade e mistério, dizia.
O acaso também produziu um encontro entre ele e um jovem turista, que passava uma temporada em Florença. Teobaldo lhe falou de sua arte e quanto uma certa intimidade cresceu entre eles, levou-o a conhecer Serafina. Mas para sua surpresa, a modelo havia envelhecido… quanto tempo havia se passado? O jovem o confrontou com esta realidade, acreditando que o choque poderia acordá-lo.
Sim, ele acordou, mas o efeito foi devastador. Teobaldo se deu conta de que havia passado a vida toda esperando até ser digno de começar sua Madona. Acreditou que sua obra crescia, mas na verdade ela estava condenada à morte. Dela ele tinha apenas uma tela em branco…
Foi assim que Teobaldo, que se cria um gênio, se viu imprestável, incapaz. Tomado de arrependimento e remorso, afundou na letargia e na culpa, definhou e morreu em poucos dias, sofrendo de intensa agonia, dolorosa de viver e de se presenciar. Imerso na dor de profundas autorrecriminações, pensou que ele deveria ter feito como Michelangelo ao pintar o Lorenzo: ele fez o melhor que pôde e agora é imortal!