Nos últimos meses em que o Brasil enfrentou o isolamento social, observei, em meu consultório, o aumento significativo da procura de familiares, principalmente filhos de pessoas que estão supostamente “enlouquecendo” na quarentena. Chamou-me a atenção esta queixa recorrente com características similaridades e disparadores associados à fase pandêmica. Em tempos atuais, com tantas variáveis diferenciadas, é importante tomarmos muito cuidado com diagnósticos fechados precoces e potencialmente equivocados, tais como Esquizofrenia, Transtorno Bipolar, Depressão Psicótica e Transtorno Delirante. O que possivelmente a maioria das pessoas que apresentam, circunstancialmente, estado confusional, desorganização comportamental, alucinações, delírios e persecutoriedade (crenças irrealistas, geralmente associadas a pessoas e/ou grupos ameaçadores que planejam algo contra o indivíduo em sofrimento) são quadros deflagrados pelas condições de isolamento social e reversíveis (não duradouros), a partir das terapêuticas adequadas.

Porém, é uma generalização equivocada considerar que todas as alterações da saúde mental do momento sejam decorrentes da pandemia. Ainda que, constatando a predisposição individual para quadros depressivos, ansiosos e psicóticos, o isolamento social e seu amplo leque de difíceis ocorrências estão, de fato, desencadeando, em muitas pessoas, quadros não manifestos antes da quarentena. Assim como o Transtorno de Estresse Pós Traumático (TEPT) que, entre vários fatores, envolve a frequência e a intensidade dos eventos estressores para ser configurado, outros adoeceres psicológicos também estão correlacionados com a intensidade e a frequência de situações desafiadoras no âmbito psicológico para as quais grande parte da população mundial não estava preparada ao manejo saudável.

Luto Patológico 

Principalmente em centros urbanos, poucos estavam familiarizados com uma harmoniosa convivência íntima consigo mesmos, considerando suas vidas muito além da “correria” e dos afazeres do dia-a-dia. As pessoas que tinham rotinas no “mundo externo” e consideravam as suas vidas definidas por suas atividades e trabalhos pragmáticos, sentiram-se, inesperadamente, roubadas de seus viveres a partir da quarentena. Esta terrível perda subjetiva da própria vida, combinada às inseguranças, incertezas e despreparo para construção de um nova maneira de viver consigo sem as referências previamente conhecidas, pode ser comparável ao que chamamos em Psicologia de Luto Patológico. Este sofrimento converge a perda de alguém, de algo, de valores e significados que definem o indivíduo, e é considerado por vários autores como a maior dor desestruturante que o ser humano pode experimentar. Assim, essas pessoas se desidentificam delas próprias e mostram grande dificuldade para reencontrar suas identidades, considerando que elas não se reconhecem mais como eram, porque não fazem mais o que faziam. Os sintomas de estranhamento em relação às pessoas e ambientes familiares simbolizam a perda do “fio da meada” que conduzia o indivíduo à sua identidade pessoal.

Emoções básicas em pauta

O isolamento social tem exacerbado, em especial, duas das cinco emoções básicas: o medo e a tristeza. A ansiedade pode ser traduzida didaticamente em uma palavra: medo. Os cenários de mortes, inseguranças e incertezas quanto ao futuro exacerbam o medo, que sensibilizam o afloramento das memórias dos sintomas. Situações aparentemente sem saída, tal como muitos consideram atualmente, reverberam memórias traumáticas de situações que envolveram impotência, vulnerabilidade, fragilidade e exacerbado medo. Assim, muitas pessoas que já haviam superado transtornos ansiosos como TEPT, pânico e fobias estão reencontrando os antigos sintomas. A tristeza tem aflorado significativamente na terceira idade, levando a quadros depressivos na maioria das vezes leves e moderados, que requerem igualmente cuidados terapêuticos para evitar a evolução para quadros depressivos graves.

Transtorno pós trauma 

O enfrentamento dessa pandemia mundial gera um potencial de adoecimento psicológico decorrente dos traumas psicológicos. Assim como ocorreu durante e após o surto de SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) em 2003, muitas pessoas sofreram traumas psicológicos e apresentaram sintomas de TEPT, tal como esperado em grupos de risco, que apresentam um número três vezes maior de indivíduos que preenchem os critérios de TEPT em relação aos 10% aproximadamente esperados na população geral. Certamente, a pandemia de Covid-19 expressa e expressará um efeito ainda mais significativo em relação ao aumento do número de pessoas traumatizadas, considerando que a humanidade, hoje, caracteriza o maior grupo de risco que jamais houve no planeta. É fundamental que conheçamos melhor o TEPT, que conforme estimativas estatísticas, está acometendo no mínimo 30% da população mundial.

Maior esclarecimento

O TEPT reúne aspectos diferentes da maioria dos outros transtornos: como ocorre sempre após um ou mais eventos estressores, se for diagnosticado a tempo, existe uma grande probabilidade de não se tornar crônico a partir de tratamento especializado, que combina primeiramente a Psicoterapia e, por vezes, medicamentos psiquiátricos. Por outro lado, a desinformação e o subdiagnóstico podem levar à proliferação de outras patologias, já que os indivíduos com TEPT têm maior risco de manifestar outros transtornos e/ou comorbidades. Pacientes com TEPT têm probabilidade três vezes maior de apresentar sintomas de somatização (doenças psicossomáticas), transtorno de humor (especialmente depressão), transtorno de ansiedade, abuso/dependência de substâncias e transtorno obsessivo-compulsivo. Chamo a atenção para as comorbidades porque elas podem diminuir as chances de que se realize o diagnóstico do TEPT. Muitas vezes, quadros mais conhecidos, como o transtorno depressivo, são diagnosticados primeiramente sem que o tratamento seja específico à superação do trauma psicológico. As consequências do não reconhecimento do TEPT são graves e afetam tanto o indivíduo quanto sua família, seu trabalho e amigos, configurando níveis mais críticos de sofrimento e limitações. Os Transtornos Ansiosos (especialmente o TEPT, Transtorno do Pânico e as Fobias Específicas), além da depressão, estão entre os principais sofrimentos que impactam a Saúde Mental com maior proporção durante a quarentena.

E MAIS…

Medidas cautelosas de prevenção

A confusão mental transitória, diagnosticada frequentemente por equívoco como quadros psiquiátricos fechados, tem acometido muitas pessoas durante a pandemia. Algumas ações dos familiares podem ajudar a amenizar o sofrimento decorrente da confusão mental, tal como segue: 

  • Consulte dois profissionais experientes da Saúde Mental (psicólogo e psiquiatra) que considerem as variáveis circunstanciais da pandemia para que diagnóstico e tratamentos psicoterapêutico e medicamentoso sejam assertivos. Estudos clínicos sobre a retomada do equilíbrio mental mostram que a combinação entre psicoterapia e medicamentos surtiu significativos melhores resultados em comparação a outros grupos controles.  
  • Seja a sua melhor versão no relacionamento com a pessoa que sofre. Nós todos temos neurônios-espelho e podemos tanto influenciar as pessoas como sermos influenciados por elas. Cultive, especialmente, a paciência, a compaixão e a generosidade. Fale e repita suas respostas às perguntas de quem sofre quantas vezes forem necessárias de maneira respeitosa, calma e amorosa, mesmo que ele(a) esteja ou continue agitado(a). As virtudes estiveram significativamente relacionadas ao crescimento pós-traumático e os exemplos saudáveis dos mais próximos foram de grande importância nestes processos de superação.
  • Cuide tanto quanto possível das bases fisiológicas do bem-estar (sono preservado, alimentação nutritiva, atividade física com o peso do próprio corpo) para que estas bases ajudem a retomada da Saúde Mental, ao invés de corroborar com adoecimento. Geralmente,a confusão mental acompanha agitação e ansiedade, enquanto o ritmo interno mais tranquilo favorece processamentos cognitivos claros e coerentes. Práticas suaves contemplativas e sensoriais, como ouvir músicas tranquilas, ampliar o banho confortável, respirar com calma, relaxamento, entre outras que favoreçam o tranquilizar dos ritmos internos (frequências respiratória, cardíaca e cerebral) são igualmente importantes para retomada da Saúde Mental no dia-a-dia.
  • Procure conectar o ente querido em confusão mental com afazeres simples/manuais conhecidos de maneira que ele(a) possa reconhecer novamente suas habilidades pessoais e observar “concretamente” no mundo físico as suas produções;
  • Solicite aos familiares e amigos que gravem vídeos curtos sobre o que eles admiram na pessoa que sofre, de maneira que ele(a) possa lembrar de suas qualidades, talentos e capacidades ressaltados pelas pessoas que realmente o(a) conhecem;
  • Resgate memórias emocionais agradáveis, as passagens mais gratificantes da infância, da adolescência e da idade adulta. Nossas memórias nos definem e as lembranças dos bons momentos reconectam o indivíduo à sua autobiografia e identidade. Apenas boas memórias devem ser estimuladas.      
  • Respeitando os cuidados pertinentes ao distanciamento social, leve a pessoa que sofre a locais que ele(a) gostava de frequentar e ao encontro de pessoas com as quais gostava de conviver antes da quarentena como estratégias psicológicas para restabelecimento do elo com os afetos positivos e dados de realidade;
  • Evite notícias e eventos estressores tanto quanto possível e favoreça o contato do ente que sofre com hobbies, assim como as expressões prazerosas mais destacadas (músicas, programas, filmes, pratos preferidos), do passado próximo ou distante;
  • Compartilhe fatos simples sobre o que está acontecendo e forneça informações claras realistas com o objetivo de desconstruir as falsas crenças que “atormentam” o ente querido em confusão mental. Geralmente os enredos das confusões mentais se relacionam com os temores e traumas do passado… Verbalize frases curtas, convictas, imbuídas de afeto e conforto repetidas vezes sempre que a inquietude aflorar (ex.: você está seguro, tudo está bem e assim continuará…);
  • Favoreça outras possibilidades de expressões além da verbal, inclusive artísticas, que possam representar as percepções confusas do familiar que sofre, de maneira que você possa conversar a respeito e representar com a mesma estratégia (por exemplo, um desenho) as referências saudáveis, realistas e atuais que sensibilizem a desconstrução das falsas crenças; 
  • Procure sensibilizar o humor por meio de comédias, passagens engraçadas do passado, boas piadas, vídeos disponíveis com pessoas sorrindo (contágio de comportamento saudável), de maneira que as endorfinas sejam segregadas, conferindo sensações agradáveis que convidam a retomada gradativa do bem-estar.
  • Evite o uso de substâncias psicoativas lícitas (inclusive café e chás com cafeína), automedicação (medicamentos para dormir em dosagens erradas podem causar toxicidade e delírios) e qualquer tipo de droga.  
  • Atualmente, centenas de estudos mostram que a espiritualidade e a religiosidade, na maioria das vezes, impacta positivamente a Saúde Mental. Caso a religiosidade e a espiritualidade sejam provedoras de conforto, amparo e bem-estar para quem sofre, a prática da oração e outras dentro deste escopo também serão bem-vindas.
  • Muitas pessoas bem intencionadas não colaboram e, por desconhecimento, cometem erros contraproducentes como críticas, tom de voz ríspido, conflitos etc., que devem ser evitados. As informações reais que contrapõem as falsas crenças devem ser trazidas sempre com tranquilidade e paciência. Um rede de apoio social bem orientada a respeito de como ajudar é muito importante. Oriente os familiares e cuidadores que ajam de maneira uníssona ou, pelo menos, semelhante, conforme as orientações acima.