A defensora pública federal Andressa Arce estreou como escritora pela editora Patuá com obra que destrincha relação íntima entre irmãs e narra o sofrimento causado pelo luto. Em ‘No dia em que não fui’, a autora parte de uma dor particular para evidenciar uma história coletiva ao ficcionalizar a relação com sua irmã e abordar os dramas de quem perde um ente querido pelo suicídio.
Andressa nasceu em 1984 e cresceu em Campo Grande/MS entre a beleza e a crueza das histórias da fronteira, o surrealismo pantaneiro e a realidade urbana, que se deixa pintar de vermelho pela poeira do planalto de Maracaju. É bacharel e mestre em direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Na carreira jurídica, atuou como advogada e analista em direito no Ministério Público da União em Ponta Porã/MS. Por causa da função, morou em Rondônia e, depois, em 2017, retornou à cidade e ao estado natal.
O que é o espelhamento de personalidade citado em seu livro?
No livro, uma relação tão profunda se estabelece entre as irmãs Liana e Alice que, com a partida da mais velha, a mais nova acaba por, de forma muito inconsciente, buscar seu próprio caminho de autodestruição (ela desenvolve um transtorno alimentar). Essa repetição – as personagens trilham caminhos diferentes, mas, ainda assim, pode-se falar numa repetição – deu-se, muito provavelmente, em razão de um luto não elaborado. Alice tenta, então, desaparecer. Quase como se houvesse firmado um pacto de morte com Liana.
Quais os efeitos do espelhamento de personalidade entre irmãos?
Em ‘No dia em que não fui’, o espelhamento entre as personagens leva a um caminho bifurcado. Existe construção e destruição. As irmãs descobrem-se por meio da convivência, aprendem coisas novas sobre si mesmas. É dado a Alice espiar uma vida adolescente cheia de aventuras que podem ser, até mesmo, perigosas e a Liana, a possibilidade de voltar a brincar. Elas partilham luz e sombra. O mundo passa, dessa maneira, a mostrar-se mais complexo porque ganha profundidade. Pode haver beleza no obscuro.
Quais as características da relação entre irmãos e meios-irmãos e no que difere entre a relação entre irmãos?
Acredito que as relações familiares são construídas por fatores que ultrapassam o vínculo de sangue. Assim, o afeto entre irmãos e meios-irmãos pode não ter diferença alguma. Parece-me que o que dita a intensidade do afeto é a convivência. No caso de Liana e Alice, foi bastante curto o convívio. Porém Alice, ao longo do texto, dá indícios de que, apesar de tudo, Liana foi, sim, para ela, uma irmã “inteira”.
Fale um pouco sobre relações familiares e idealização da irmã mais velha.
O que é uma irmã mais velha é uma pergunta que ainda me assombra. “No dia em que não fui” talvez tenha sido uma tentativa de respondê-la. Tal como Alice, também recorro à ficção e às pessoas do meu convívio para tentar compreender a extensão da relação irmã mais nova-irmã mais velha. Num dia desses, escrevi um texto, a partir da leitura de um conto do livro ‘A menina que salvou os peixes’, de Marília Silva, que irmãs mais velhas parecem ter algo de salvação. Creio que Alice falha em deixar de idealizar sua irmã mais velha. Talvez eu esteja fadada a esse mesmo fim.
Fale um pouco também sobre a trajetória feminina e suas agruras.
A respeito, penso ser interessante compartilhar a dificuldade que tive para me autorizar escritora. A escrita era um sonho antigo que adiei por muitos anos. Quando a necessidade de escrever me rompeu o peito de forma inescapável, vi-me extremamente crítica com os meus escritos. Não me sentia boa o suficiente. Isso não é incomum entre as mulheres em diversos setores da vida. A cultura sexista nos aprisiona, nos faz duvidar de nossas capacidades, nos faz questionar se devemos, de fato, levantar nossas vozes para ocupar espaços públicos. Felizmente, encontrei amparo em outra mulher – minha mentora, Gabrielle Estevans – e criei coragem para dar à luz um livro.
Quais as formas de lidar com a perda e o luto precoces especialmente quando há suicídio envolvido?
O luto do suicídio é diferente. Pelo menos foi assim na minha experiência. É uma dor que corta mais fundo uma vez que a partida não se deu “porque Deus quis”. A pessoa fez sua própria hora e jamais saberemos o porquê. Em um curso da Casa do Saber, vi a Ana Claudia Quintana Arantes dizer que recorrer às memórias que se tem da pessoa que se foi seria uma boa maneira de lidar com o luto. Tanto eu quanto Alice, que perdemos tão cedo nossas irmãs, só fizemos isso muitos anos depois. Rosa Montero, em ‘O perigo de estar lúcida’, conta que há teóricos que afirmam que, quando ocorre um trauma numa idade precoce, a criança divide-se em duas: aquela que sente a dor e aquela que “sabe tudo” e é, portanto, capaz de cuidar da que sofre. A autora relaciona isso ao surgimento de escritores: o escritor ou a escritora nasceria juntamente com o infante que tudo sabe. É possível que isso tenha acontecido comigo.
Como a ficcionalização ajuda no lidar com o sofrimento na vida real?
Não sei se a ficcionalização ajuda a lidar com as dores da vida real. Como já está bastante claro, escrevi ‘No dia em que não fui’ a partir de uma experiência pessoal. O processo de escrita fez, portanto, que eu vivenciasse novamente, na pele, algumas dores bastante profundas, ainda que estivesse me enveredando no reino da ficção. A ficcionalização não evita o sofrimento. O livro foi importante no trabalho de elaboração do meu luto. Nesse ponto, a feitura da obra me ajudou bastante.
Explique seu fascínio sobre o tema mulheres e doenças mentais.
Desde muito cedo, tive contato com pessoas que estavam lidando com doenças psiquiátricas. Mais tarde, tive de lidar com as minhas próprias dificuldades. O estigma a esse respeito ainda é bastante forte. Filmes como ‘Garota, interrompida’ e ‘As Virgens Suicidas’ me ajudaram a entender que eu não estava só e que havia muita vida nessas mulheres apesar de tudo. E foi isso que eu quis demonstrar com o meu livro: Liana e Alice são personagens cheias de vida, que não se limitam a seus diagnósticos.