“Trópico de Câncer”, de Henry Miller, escrito na temporada do escritor em Paris, é o retrato da experiência vivida em pensões baratas, da bebedeira em cafés ordinários, da convivência de artistas sem dinheiro, do sexo com prostitutas e mulheres abandonadas. O autor abraça uma vida abjeta, sedenta por animalidade, apropriando-se da obscenidade, do desalento, da vida anárquica e da boêmia – um relato da entrega à vertigem do século XX.
Dono de uma sensualidade inesgotável, Miller se vê envolvido em ação. Movido por provocações, a raiva o inflama a costurar suas caricaturas. Assim, ele mergulha na imoralidade, no desregramento e na loucura, partilhando com bêbados, ladrões e vagabundos o caos, no qual frutifica sua obra. “Apenas os bêbados e os loucos trocaram aquilo que não é essencial pelo caos e apenas no caos há riqueza”, sentenciou a sua amante Anaïs Nin.
“A ferocidade de seus escritos não é monstruosa nem intelectual, mas humana”, ela escreveu. Miller fortifica-se no amor pela feiura, xingamentos, escatologia, impudor. Fortemente atraído pelas ideias perturbadoras de Nietzsche, ele não fazia questão de lutar contra a cadeia de perdições deste mundo. Ao contrário, estava voltado para os tipos mais grotescos de prazeres. Ele mergulha no profano, sua escrita é o signo da carnalidade.
Ressignificação
A arte permite a Miller ressignificação das suas experiências desintegradoras, uma maneira de se chegar à vida de forma mais profícua. “É necessário haver caos em si mesmo para dar à luz uma estrela que dança”, escreveu Nietzsche. Nesse caso, escrever ou experimentar paixões ardentes parte da desordem dos sentimentos, da eloquência não reprimida, do excesso de energia, de tudo o que constitui a experiência humana e que vai construir a obra de arte.
Dessa forma, o escritor nunca resistiu à anarquia, ao contrário, sempre recebeu de bom grado as experiências desconcertantes. Para ele, a decadência era uma experiência tão preciosa quanto o florescimento do espírito. “Numa era marcada pela desintegração, o aniquilamento me parece uma virtude, senão um imperativo moral”, escreveu.
Defensor da liberação sexual, não dissociava o sexo da busca metafísica. Na contramão da maioria dos movimentos, buscou afirmar o desejo sexual como uma maneira de conexão sua própria espiritualidade. Miller acreditava que sexo, religião e arte são elementos de um mesmo circuito vertiginoso da qual vertia a sua criatividade.
Busca da singularidade
A palavra que marca a obra e a vida de Miller é a singularidade. Sua busca está atrelada ao próprio conceito da palavra identidade, que consiste na demanda pelo o que é peculiar ao sujeito, do que lhe confere o caráter único, que o diferencia dos demais, assegurando-lhe que é ele mesmo.
O escritor entende que o crescimento é não resultado do ajustamento, mas da audácia de fazer-se em desacerto, do atirar-se à correnteza da inconformidade. Essa valentia refere-se ao reinventar-se e recriar o mundo a partir da arte. Assim, ele nega que a identidade se traduza por adaptação, acomodamento, comunhão – uma espécie de identificação que permita a um sujeito confundir-se com outra pessoa, de quem empresta as características.
Em “Pesadelo Refrigerado”, Miller assume uma rebelião contra a sociedade burguesa, representada por sua cidade natal, Nova York, e o seu regime capitalista. A circunstância de consumição vivida pelo escritor trata-se de um processo em que ele finalmente se liberta do embotamento mecanicista do seu país, que nega o lado criativo do ser humano, atribuindo-lhe o papel de máquina. A partir da catarse, consegue a capitulação através vivência do seu drama.
Ávido por desenredar novas histórias, o escritor aspirava sofregamente o cotidiano das noites nos bares e cabarés, anotando cada experiência num averiguação meticulosa da realidade, então, as palavras brotavam profusamente da velha máquina datilográfica. Ao analisar a sua obra, o crítico de arte Claude Boyeure escreve: ”Os outros são seus psicoterapeutas. Ele se instalou na vida como num divã de psicanalista e fala, fala, fala sem pudor, sem restrição, encontrando assim sua paz”.
Agressividade do “Eu sou”
A agressividade em Miller pode ser descrita como “força-vital”. O psicanalista Donald Winnicott usou essa expressão para designar uma força inicial unificada que, nos estágios mais primitivos do desenvolvimento, se dividiria em: o componente agressivo, nascido da oposição; e o componente erótico, nascido da complementariedade.
“As experiências eróticas podem se completar enquanto o objeto é subjetivamente concebido ou criado pela própria pessoa… pode[ndo] ser completada por qualquer coisa que alivie o impulso erótico […] os impulsos agressivos não proporcionam nenhuma experiência satisfatória a não ser que encontrem oposição”.
À luz de Winnicott, podemos entender que a agressividade da qual Miller se apropria não é necessariamente destrutiva, como postula Freud quando trata da pulsão por morte. Pois o ódio, para Winnicott, assume um caráter virulento somente quando reprimida, constituindo-se portanto, como uma conquista da civilização.
“As mais agressivas e, por isso, mais perigosas palavras do mundo são encontradas na afirmação “Eu sou”. É preciso admitir, no entanto, que só aqueles que alcançaram o estágio de fazer essa afirmação é que estão realmente qualificados para serem membros adultos da sociedade”, diz o psicanalista.
Autonomia
Assim, Miller, em seu individualismo exacerbado parece desfrutar da experiência de plena autonomia, algo inerentemente violento. Ele defende a própria individuação a partir da catarse, na medida em que ele considera o verdadeiro problema da humanidade a descoberta do próprio destino.
O escritor assume a independência do “Eu sou”, obedecendo somente aos seus instintos sem reprimi-los. Para ele, “cada homem tem seu destino e o único imperativo é segui-lo aceitá-lo, a despeito de onde leve”.
Para Winnicott, a criatividade é ingrediente importante na formação da personalidade. Segundo ele, é na brincadeira que o indivíduo pode ser criativo e se utilizar toda a sua personalidade. E é este poder criativo do qual se apropria Miller que permite criar o mundo, ‘reinventá-lo’. Na contramão, existiria uma atitude de submissão à realidade externa, em que o mundo é reconhecido apenas como algo a que se ajustar, exigindo adaptação.
“A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à ideia de que nada importa e de que não vale a pena viver. É isso que parece acontecer com a maior parte das pessoas que, ajustadas à sociedade e ao que é esperado delas, não conseguem sair da continuidade, aproximando-se do que mais próximo seria sua marca pessoal”, diz o psicanalista.
A arte do escritor resulta da atitude de rendição
Para absorver a obra de Miller é preciso entender a ideia que está por trás da crueza de seus escritos: a busca por uma vida execrável provém da atitude da rendição. O escritor acreditava que era preciso dizer sim a cada coisa da experiência humana, inclusive seus reveses, sua tragicidade. Era preciso abraçar a existência em absoluto, sem ressalvas, em todas as suas esferas – com suas imperfeições, indecências e belezas. “Descobri que aquele sofrimento era bom para mim, que me abria o caminho, mediante a aceitação do sofrimento, para uma vida feliz”, escreveu.
Essa atitude de submissão nasce do entendimento de que é necessário que possamos promover a destruição do que já foi vivenciado para gestar algo novo, mas que mantenha seus traços e deles crie um novo caminho de pensamentos e descobertas. Enfim, ele tinha que mergulhar no campo amoral, tinha que chegar à beira do precipício e então dar um salto que faltava para apropriar-se da experiência artística, reinventando-se e transformando a própria existência em arte.
“Quando um homem é crucificado, quando morre para si próprio, o coração desabrocha como uma flor”. Esse processo purgação que o escritor experimenta em sua viagem a Paris é necessário para gestar um novo homem, o escritor em toda a sua poesia.