Bion nos fala de uma fé científica do analista na sua própria prática clínica como propiciadora do desenvolvimento emocional do analisando. Penso que podemos dividir os fundamentos da Psicanálise fundada por Freud a partir da postulação do Inconsciente, fundamento fundante, em duas vertentes: por um lado uma série de conjecturas teóricas – genéticas, biológicas ou históricas, entre as quais podemos citar o complexo de Édipo, a sexualidade infantil, a teoria das pulsões etc.; e, por outro lado, uma atitude do analista em seu trabalho no consultório junto a seu analisando que lhe permita um acesso a seu próprio Inconsciente e através dele ao Inconsciente do analisando. Freud denominou essa atitude atenção flutuante, ou atenção livremente suspensa, ou ainda audição sem seletividade, cegar-se artificialmente, lançar um facho de escuridão que nos revele a verdade oculta. Entendo que a atitude proposta por Bion: RÊVERIE, sem memória, sem desejo, sem compreensão, é uma recriação da atitude de atenção flutuante proposta por Freud.
Tudo tem a ver com tudo
Da mesma maneira podemos distinguir os fundamentos teóricos e a atitude prática da meditação, essa filosofia pragmática que nos vem do oriente. A vertente teórica tem como base os conceitos de interdependência e de impermanência. A interdependência pode ser definida de maneira simples: tudo tem a ver com tudo. Embora a ciência clássica procure dividir e reduzir os fenômenos para poder compreendê-los e, quando possível, matematizá-los, ninguém desconhece que existe uma interconexão entre todos os eventos cósmicos, e o Inconsciente funciona exatamente dentro deste princípio: o Inconsciente generaliza qualquer objeto em todas as suas infinitas conotações. Por sua vez, a impermanência exprime a fluência dos fenômenos. Nada permanece como era: tudo está em permanente mudança. Aceitar esses princípios nos torna mais conscientes de nós mesmos como partes mutantes do Todo (o Tao) e, portanto, mais humildes e realistas. Como consequência desses fundamentos teóricos decorre uma atitude de vida norteada por um sentimento de desapego do próprio ego e de compaixão pelo próximo, baseada numa compreensão da alteridade que poderíamos chamar de Amor. Penso que esta atitude de vida se aproxima da proposta por Bion para o psicanalista em seu consultório.
Infinitas conotações
Podemos rastrear as raízes teóricas da clínica bioniana em Freud e Klein. Em Freud, temos uma vertente teórica privilegiada no texto “Os dois princípios de funcionamento mental”, ou seja, princípio de prazer e princípio de realidade. A partir desses dois princípios, Bion desenvolve sua teoria do pensamento, que tentaremos resumir: para abrir mão do funcionamento baseado totalmente no princípio de prazer e poder aceitar o princípio de realidade é necessária uma tolerância à frustração, pois nenhuma realidade daria conta das expectativas alucinatórias do princípio do prazer, ou seja, ser capaz de pensar aceitando a limitação da palavra como substituta da ausência do objeto idealizado; interpor um pensamento que torne tolerável um tempo de espera entre a demanda pulsional e sua realização possível: o princípio de prazer modificado.
Entre as raízes kleinianas também podemos distinguir as duas vertentes: a teoria e a atitude. Na atitude, a ênfase no aqui-agora da sessão, na transferência total, na experiência emocional entre analista e analisando – ênfase na relação de objeto. As raízes teóricas são várias, vamos realçar duas delas: o Édipo primitivo e o mecanismo da identificação projetiva. Partindo da suposição que o leitor esteja familiarizado com esses conceitos, vamos focalizar as expansões que Bion criou a partir deles e que, na minha opinião, constituem paradoxalmente uma continuidade e uma ruptura radical.
Enquanto Klein antecipa o complexo de Édipo para os primeiros meses de vida, Bion antecipa mais radicalmente para a vida intrauterina em direção a pré-concepções inatas em que a triangularidade já está inscrita filogeneticamente, na expectativa de sua realização vivida. Isto se aproxima das ideias finais de Freud – em “Moisés e o monoteísmo”, por exemplo – de uma herança arcaica filogenética constituindo o Id, o Inconsciente não-reprimido.
Emoções induzidas
A identificação projetiva, que prefiro chamar “emoções induzidas”, adquire com Bion também uma conotação de comunicação emocional necessária e que passa a ser patológica diante da incapacidade de conter em si mesmo as cargas emocionais de ansiedade sem projetá-las automaticamente para dentro de um continente externo: outra pessoa. Bion propõe que a capacidade da mãe de conter a ansiedade do seu bebê – que ele vai denominar rêverie – é que desenvolve na criança sua própria continência para emoções perturbadoras. É no seu livro “Aprender da experiência” – penso eu uma abreviação de “Aprender da experiência emocional” – que Bion desenvolve sua teoria do pensamento a partir dos conceitos acima. Poderíamos resumi-la como: o pensamento se desenvolve a partir da tolerância à frustração, e quando tudo nos é dado e nada falta, o pensamento não se desenvolve.
Estado de mente essencial
Bion realiza de certo modo uma volta a Freud, ambos seres renascentistas, ao valorizar as interfaces da Psicanálise com todas as outras áreas do conhecimento, num momento em que, pressionada pela necessidade de afirmação de sua especificidade por parte das corporações institucionais (ou como dizia Bion em seu texto “A grade”, “a belicosa quadrilha psicanalítica”), a Psicanálise tendia a se fechar sobre si mesma. Como exemplo segue-se uma relação parcial de citações de Bion em seus vários escritos:
Filósofos como Kant, Descartes, Nietzsche, Pitágoras, Platão, Montesquieu, Berkeley, Hume.
Místicos: Jesus, San Juan de la Cruz, Tereza de Ávila, Meister Eckart, Isaac Luria, Gershon Sholem, Martin Buber, Teillard de Chardin, além de referências ao Bhagavad Gita e ao Tao.
Poetas: Lord Byron, Rudiard Kipling, John Keats, John Milton, Shakespeare, Shelley, Lewis Carrol.
Matemáticos, físicos e lógicos: Alfred Tarski, Gottlob Frege, Euclides, Werner Heisenberg, Max Plank, Henri Poincaré, Karl Popper, Bertrand Russel, Whitehead, Niels Bohr.
Linguistas: Fenollosa, Charles Peirce.
E mais: Darwin, Keynes, Henry Moore etc.
Como trabalharia Bion em sua clínica a partir desses pressupostos teóricos, mas, principalmente, a partir da atitude de Rêverie, sem memória, sem desejo, sem entendimento.
“Para conseguir um estado de mente essencial para a prática da análise, evito qualquer exercício de memória; não faço anotações. Quando fico propenso a lembrar dos eventos de qualquer sessão em particular, resisto à tentação. Caso me veja vagueando mentalmente no âmbito da memória, desisto. Nisso, minha prática difere da visão de que os psicanalistas deveriam ter anotações; ou deveriam encontrar algum método para registrar sessões por meio de um dispositivo mecânico; ou deveriam treinar para ter uma boa memória. Quando descubro estar sem qualquer indicação do que o paciente está fazendo, sentindo que o segredo está escondido em algo que esqueci, resisto ao impulso de lembrar o que aconteceu ou como interpretei algo acontecido em uma ocasião anterior. Quando algum pedaço de lembrança começa a se intrometer, resisto a seu apelo, não importa o quanto a recordação possa parecer premente ou desejável.
A compreensão dos desejos
Sigo um processo similar no que tange a desejos: evito entreter desejos e tento dispensá-los de minha mente. (Não é suficiente tentar fazer isto na sessão, pois é tarde demais; é necessário impedir que o hábito de desejar se desenvolva). Por exemplo, penso que é uma falha grave nos permitirmos desejar o término de uma sessão, semana, ano; interfere no trabalho analítico permitir que desejos a respeito da cura do paciente, de seu bem-estar ou futuro penetrem na mente. Tais desejos corroem a força do analista para analisar e levam a uma deterioração progressiva de sua intuição. A introspecção irá mostrar o quanto memórias e desejos são disseminados e frequentes. Eles estão constantemente presentes na mente, e a disciplina para seguir meu conselho é difícil. Existem exceções, todas de um tipo simples e óbvio.”
Linguagem de êxito
Segundo Bion, entre as condições mínimas para um psicanalista emitir uma linguagem de êxito transformadora para seu analisando estão sua capacidade de continência e a paciência. Continência das ansiedades em jogo – suas e do analisando – e paciência para aguardar a revelação intuitiva da verdade do momento emocional vivido, sem apelar para interpretações precipitadas com a função de se tranquilizar.
Costuma-se dividir a obra de Bion em várias fases, tais como: fase das teorias do pensamento neurótico e psicótico, fase das conceituações matemáticas – “Elementos de psicanálise” (seguindo o modelo de Euclides) e “Transformações” – e fase mística, a partir de “Atenção e Interpretação”. Penso eu que é neste último livro que Bion completa sua visão da Psicanálise e do mundo. Sua linguagem é de um modo geral difícil para um leitor que procure um manual de instruções racional e normativo para sua prática. Pelo contrário, Bion reafirma que cada analista tem de criar sua própria Psicanálise; em uma palestra ele afirmou: “Se um analista se desse conta da turbulência emocional que pode eclodir numa sessão, ele entraria em pânico antes de qualquer atendimento”. Eu sinto, a partir de minha experiência pessoal, que essa inquietude saudável diante do que está para acontecer na próxima sessão permanece sempre em mim.
Bion utiliza o termo arrogância como um quase sinônimo de estupidez para definir a atitude de um “conhecedor” que pensa que sabe tudo e se recusa a aprender algo com o outro; algo novo que demonstra a própria limitação do seu conhecimento finito diante do desconhecido infinito. Se dar conta disso pode produzir no arrogante uma percepção traumática de si que Bion chamou mudança catastrófica. Encontramos exemplos na nossa prática clínica com analisandos que repetem indefinidamente suas experiências emocionais frustrantes e parecem recusar possíveis novos caminhos que o processo psicanalítico possa abrir. Toda mudança verdadeira é sentida como catástrofe. Outro exemplo é a frase do pensador Zen Shunriu Suzuki: “A mente do principiante tem muitas possibilidades. A mente do “conhecedor” tem poucas possibilidades”. Entendo que o que Suzuki propõe não é uma recusa do conhecimento, mas pelo contrário, não nos saturarmos dele e permanecermos abertos ao que não sabemos.
A busca em outro nível de realidade
Imagino o que Kant pensaria se ouvisse Bion, que meditou anos a fio sobre o noumenon incognoscível, falar hoje de maneira que lembra a sabedoria budista, fazendo-nos suspeitar que o incognoscível é incognoscível porque é impensável.
O traço comum às várias práticas meditativas é a busca de imersão num outro nível de realidade de difícil acesso à nossa consciência de vigília e que acrescente sentido ao viver.