Não foi a primeira pandemia na história da humanidade e nem será a última. Mesmo assim, fomos pegos de surpresa. Um exército gigantesco se mobilizou contra o novo coronavírus, que rapidamente se espalhou pelo mundo, com milhões de pessoas infectadas e mais de um milhão de mortos.

O vírus atacou áreas sensíveis: a liberdade de ir e vir, a súbita perda da vida com a qual estávamos habituados. Em abril de 2020, bilhões de pessoas estavam confinadas em suas casas, medida obrigatória para reduzir a espantosa velocidade do contágio.

A crise global desencadeada pela pandemia nos obrigou a fazer mudanças profundas no modo de viver, conviver com a família, relações sociais, estudar e trabalhar.

Acolhimento emergencial

O Time Humanidades 2020 envolveu oitenta terapeutas, que se organizaram em torno do desejo de colaborar para amenizar o sofrimento agudo decorrente das restrições impostas pela pandemia. Em seis meses de trabalho, atendemos gratuitamente cerca de quatro mil pessoas com uma conversa por videochamada, na qual oferecemos uma escuta acolhedora e ampliamos recursos para melhorar a situação na qual elas se encontram.

Em julho, iniciamos as Redes de Conversa On line, nas quais grupos de até cem pessoas expõem suas inquietações e compartilham recursos que as ajudam a sair das dificuldades. Somos apenas um dos muitos grupos de profissionais de saúde que oferecem gratuitamente atendimento individual e rodas de conversa on line. Aprendemos uns com os outros, pois estamos todos passando pela mesma situação.

Terapia Comunitária Integrativa

A inspiração deste trabalho é a Terapia Comunitária Integrativa, criada por Adalberto Barreto. Com a pandemia, passou a ser feita on line. Para iniciar a conversa, fazemos alguns acordos: não dar conselhos, não fazer julgamentos, falar sempre a partir de seus próprios sentimentos. Os participantes compartilham recursos para lidar com as inquietações. Com isso, outras pessoas se inspiram para fazer o mesmo e descobrir outras possibilidades.

Música, poesia e celebrações de vida em meio à dor das perdas e do sofrimento psíquico mobilizam emoções e estimulam a afetividade entre os participantes, como sintetiza a letra de uma música  composta para esse trabalho: “Com amor e dor vamos pra Rede/ Falar e ouvir com atenção/ Pra receber e oferecer/Presentes de inspiração/Que aliviam a inquietação/E abrem caminhos de alegria e bem-querer”.

Atendendo on line, os terapeutas descobriram que, embora o contato presencial propicie um campo mais amplo de observação e de interação (especialmente com relação à expressão do corpo), o atendimento on line (por telefone ou por videochamada) também é eficaz, apesar das telas como intermediárias do contato.

Quem trabalha com psicoterapia convencional descobriu que uma única conversa em momentos de crise pode estimular mudanças significativas. A partir da experiência das Redes de Conversa com regularidade, é possível perceber visíveis melhoras nas pessoas e criação de recursos para se ajustarem ao que a vida apresenta.

Ações de solidariedade e cooperação

No Brasil, como em outros países, a pandemia expôs de modo ainda mais dramático a extrema desigualdade de acesso aos itens básicos de sobrevivência e a dificuldade em seguir as recomendações para reduzir os índices de contaminação. Como lavar as mãos com frequência e higienizar alimentos em comunidades com falta de água limpa e de saneamento? Como isolar a pessoa contaminada em habitações precárias com muitos moradores? Como evitar o contato entre crianças e idosos com diversas gerações convivendo na mesma casa?

Muitos grupos da sociedade civil foram organizados para arrecadar doações e distribuir cestas básicas, máscaras, álcool em gel, galões de água, sabonetes. Para a população de rua, distribuição de marmitas, água e agasalhos. Preocupados com os profissionais de saúde atuando na linha de frente, cidadãos e empresas contribuíram com doações de equipamentos especiais de proteção, alimentos, medicamentos e montagem de hospitais de campanha.

O que é normalidade?

Nos milhares de atendimentos feitos por diversos grupos de terapeutas voluntários, observou-se uma intensificação de transtornos mentais preexistentes (em especial, síndrome do pânico, depressão e abuso de substâncias, assim como o agravamento de episódios de violência intrafamiliar).

O terror de contaminar e ser contaminado motivou algumas pessoas a higienizar toda a casa várias vezes por dia; com a flexibilização, muitos continuam sem sair de casa para coisa alguma. No extremo oposto, a negação do problema: aglomerações em praias, bares, festas, recusa em usar a máscara de proteção. “Não tenho medo desse vírus”, “a pandemia já acabou”, “homem que é homem não usa máscara”, “nem pensar em tomar vacina”.

Teorias conspiratórias, fake news, mensagens e ações contraditórias dos governantes, testagem deficiente, planejamento precário com relação às etapas de abertura são fatores do contexto maior que acentuam a insegurança e a incerteza que influenciam o que sentimos e como nos comportamos. Episódios de corrupção, com desvios de verbas destinados à compra de equipamentos e de insumos essenciais contribuem para esse “pandemônio na pandemia”.

Velocidade das mudanças

O século XXI já estava sendo considerado como a era da grande transição, como definiu Sérgio Abranches, entre outros estudiosos da contemporaneidade, refletindo sobre a velocidade de mudanças no campo da tecnologia, do clima planetário e das correntes políticas. Isso acentua a sensação de insegurança, incerteza, imprevisibilidade e angústia com relação ao futuro. A pandemia acelerou e intensificou esse processo, como expressa a frase que circula pelas redes sociais: “Quem pensa que sabe o que vai acontecer está desinformado ou delirando”.

Os profissionais de saúde precisam ser cuidadosos para não avaliar como transtornos mentais a serem medicados a angústia e o sofrimento face à situação anormal pela qual estamos todos passando. É normal sentir medo do contágio, preocupação com o desemprego ou com a redução das fontes de renda, ter momentos de impaciência com o convívio constante com poucas opções de lazer, sentir saudade de familiares e amigos devido à restrição de contatos presenciais, sofrer a dor da solidão prolongada e a angústia diante da incerteza do futuro, sentir a profunda tristeza com a morte de entes queridos.

Estranho seria não se inquietar com tudo isso que está acontecendo, sem saber quando e como a pandemia terminará e como será a vida de todos nós após a pandemia. Esse sofrimento revela nossa humanidade.

Fé, resiliência, criatividade

Na fragilidade e no sofrimento, encontramos força interior, inspirada pela fé (em Deus, na vida, na história da humanidade, que já superou inúmeras crises). A criatividade gera soluções inusitadas: transformar um hobby em fonte de renda, criar coletivos com novos projetos de trabalho, assistir a professores motivando seus alunos nas aulas on line, usar a tecnologia para garantir a presença do afeto, apesar do distanciamento físico, firmar acordos de convivência harmônica no período em que o trabalho e a escola foram para dentro de casa.  

A letra de “Criando força” resume essa busca necessária: “O que é a resiliência/ Que é preciso fortalecer?/ É como o bambu contra o vento/ Que dobra sem se quebrar/ Passada a tempestade/ Consegue de novo se erguer/ Com força, fé e otimismo/ Para os desafios vencer/ Sendo o melhor de si mesmo/ Rumo à própria evolução”.

Os ajustes que precisamos fazer diante de mudanças tão extensas impostas pela necessidade de cuidar bem de nós mesmos e dos outros abrem oportunidades de ampliar autoconhecimento, paciência e flexibilidade.

Na troca de ideias com outros, descobrimos recursos para lidar com esses imensos desafios: técnicas de meditação e de respiração que aliviam a ansiedade, ações de autocuidado, gestão de conflitos (“atacar os problemas sem atacar as pessoas”), cuidado com a qualidade dos pensamentos (que influenciam nossos sentimentos e ações). Com tudo isso, esperamos atravessar o pandemônio da pandemia com muita aprendizagem e coragem para encarar o que virá.

E MAIS…

Com a pandemia, surgiram ações de solidariedade

No início do “todos em casa” (obrigatório, com exceção dos trabalhadores de serviços essenciais), a solidariedade e a cooperação surgiram em pequenas ações: jovens se oferecendo para ir ao mercado ou à farmácia para vizinhos idosos; músicos e cantores nas janelas para atenuar a perplexidade e a solidão; companhias de teatro e dança, orquestras e músicos oferecendo acesso gratuito a espetáculos já gravados ou produzidos em suas próprias casas; centenas de “lives” com profissionais de saúde e educação apresentando recursos possíveis para lidar com essa situação inusitada.

Cientistas e pesquisadores de vários países se uniram para desvendar os mistérios desse vírus e dos múltiplos modos de ataque que a Covid-19 faz no corpo humano, resultando em alto índice de mortalidade e de sequelas. A cooperação (embora não isenta de competição) pode acelerar a criação de uma vacina eficaz. Jamais aconteceu tamanha rapidez nas pesquisas: em questão de meses, algumas vacinas já estão na última etapa de testagem, em meio a inúmeras dúvidas: Por quanto tempo garante a imunidade? Quais os possíveis efeitos colaterais? Como será a logística de vacinação em cada país?