O uso de antidepressivos conhecidos como inibidores da receptação da serotonina por gestantes pode causar desordens neuronais ao bebê, como autismo e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). Um grupo de cientistas da Universidade Federal do ABC (UFABC), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) propõe que o assunto seja melhor investigado a partir de novas tecnologias. Essa classe de antidepressivos é geralmente prescrita a gestantes e crianças. O uso da maioria desses medicamentos foi aprovado pelo FDA (Food and Drug Administration), agência reguladora ligada ao departamento de saúde do governo norte-americano, nos anos 90.

O autismo é marcado por desenvolvimento atípico, a pessoa tem atraso no desenvolvimento da linguagem, dificuldade em manter relações, padrões de comportamentos repetitivos e estereotipados, além de um repertório restrito de interesses e atividades. Já o TDAH é uma condição de causas genéticas que aparece na infância e se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade.

A sertralina e fluoxetina, por exemplo, estão entre as principais escolhas desta classe de antidepressivos, porque são consideradas mais eficazes e melhor toleradas do que outras drogas indicadas para tratar transtornos mentais como a depressão. A ação dessas substâncias é inibir a recaptação de serotonina pelos terminais pré-sinápticos dos neurônios através do bloqueio do transportador de serotonina.

Minicérebros

A equipe de cientistas liderada pelo geneticista Alysson Muotri ,da UCSD, e pelo neurocientista Alexandre Kihara, da UFABC, sugere que os impactos que esses antidepressivos podem causar aos bebês sejam investigados a partir do método de células-tronco pluripotentes induzidas, obtidas a partir de reprogramação celular. O método consiste na transformação de um tipo de células chamado fibroblastos em células semelhantes às embrionárias,. No estágio seguinte, essas células são convertidas em neurônios. A ideia é multiplicar esses neurônios, passando a criar minicérebros (organoides cerebrais) em laboratório. A descoberta rendeu o Nobel para o japonês Shinya Yamanaka, em 2012

Os minicérebros são modelos criados em laboratório para testar quadros neurológicos e psiquiátricos, além de doenças neurodegenerativas. A técnica poderá ser usada como ferramenta de diagnóstico, antecipando o aparecimento de sintomas e começando tratamento mais cedo. Até então esse tipo de investigação era inviável devido à dificuldade de se conseguir biópsias do sistema nervoso central.

“O advento de métodos e ensaios de células-tronco pluripotentes induzidas por humanos agora oferece ferramentas apropriadas para testar as consequências de tais compostos para o neurodesenvolvimento in vitro”, afirmam os autores. Ou seja, a partir da reprogramação de células doentes é possível investigar as alterações presentes nestas células desde a sua gênese.

Alterações neurológicas

“Os organoides cerebrais apresentam um padrão estrutural e de crescimento que mimetiza de maneira bastante fidedigna o primeiro trimestre do desenvolvimento cerebral humano. Por esse motivo, têm sido utilizados em diversos estudos para identificar alterações neurológicas do desenvolvimento que acompanham as doenças”, explica a neurocientista Luciana Simões Rafagnin Marinho, da UFABC, uma das autoras do estudo.

Experimentos realizados em recém-nascidos cujas mães tomavam antidepressivos durante a gravidez investigaram diferenças no volume e estrutura do cérebro. “Crianças expostas a esses medicamentos exibiram mudanças generalizadas na substância branca, enquanto crianças expostas a uma história de depressão materna não tratadas com antidepressivos não mostraram diferenças no desenvolvimento cerebral em comparação com controles. Entretanto, esses mecanismos ainda não estão claros e necessitam de elucidação”, pontua Marinho.

Foram observados em bebês cujas mães foram tratadas com paroxetina, antidepressivo geralmente usado durante a amamentação, sintomas como cólicas, choro excessivo, baixa temperatura corporal, distúrbios do sono, inquietação e problemas alimentares. Além disso, a ansiedade durante o segundo trimestre de gestação foi associada à redução do volume de substância cinzenta, levando a problemas cognitivos e distúrbios psiquiátricos no recém-nascido.

Autismo

De acordo com o mesmo estudo, os sintomas de transtorno mental na mãe podem contribuir para o aumento do risco de autismo e, ao contrário de estudos anteriores, sugeriram que o uso de antidepressivos pelas mães pode reduzir a incidência da síndrome nos filhos.

O pesquisador Jorrit F. Kieviet, da University Amsterdam, na Holanda, e sua equipe relatou que, embora sintomas graves, como convulsões, sejam raros, 20 a 77% dos bebês expostos a esses medicamentos no útero têm dificuldades para dormir, tremores, agitação, irritabilidade e choro frequente. Uma taxa aumentada de diagnósticos de depressão no início da adolescência também foi associada à exposição pré-natal a esses medicamentos.

O único experimento com antidepressivos a partir de organoides cerebrais foi realizado por Lu Zhong, da Chongqing Medical University, na China, e sua equipe, em 2020. Os cientistas testaram a toxicidade da paroxetina. Foram observados reações prejudiciais na conexão sináptica, diminuição do crescimento de processos neuronais, além de diminuição de mais de 50% da população de oligodendrócitos, que são as células produtoras da bainha de mielina.

TDAH

Outros estudos mostraram que um maior risco de TDAH em filhos de mulheres que usaram antidepressivos durante a gravidez pode estar mais relacionado ao transtorno psiquiátrico materno subjacente do que ao próprio tratamento com antidepressivo.

Em outras palavras, ainda não está claro se os antidepressivos são a causa direta desses distúrbios ou consequência da exposição do feto aos sintomas da depressão materna. “Desta forma, se faz extremamente necessária a realização de experimentos que investiguem os mecanismos pelos quais os antidepressivos podem interferir no desenvolvimento cerebral”, defende Marinho.

O núcleo accumbens (NAc) é essencial para a expressão de comportamentos ligados à recompensa e prazer. Segundo a médica e neurocientista Marcela Bermudez Echeverry, da UFABC, essa região do cérebro parece ser altamente afetada por alterações na carga genética causadas por estressores e antidepressivos. O núcleo accumbens é bastante conhecido dentro da Neurociência como parte da chamada via dopaminérgica mesolímbica (na qual há a ação de um neurotransmissor conhecido como dopamina).

Via mesolímbica

A pesquisadora lembra que, nas últimas duas décadas, essa mesma vía mesolímbica e, em especial o núcleo accumbens, tem ganhado destaque no estudo da depressão e no transtorno bipolar por essa área do cérebro ser suscetível a efeitos epigenéticos [a forma como os estímulos ambientais e a experiência de vida podem ativar certos genes e silenciar outros].

Echeverry afirma existe um tipo de predisposição à depressão, que pode iniciar ainda dentro do úteroou no período perinatal. Esse distúrbio ainda pode se manifestar nos primeiros anos de vida, quando ainda várias regiões do sistema nervoso estão se desenvolvendo; ou mesmo na adolescência, quando o desenvolvimento da parte cortical, como o córtex pré-frontal e cingular, está ainda terminando de se desenvolver. “Neste sentido, também seria importante identificar essas ‘janelas’ onde a epigenética pode produzir maior número de modificações na expressão do DNA”, observa. 

Primeira infância

O problema dos experimentos que envolvem os efeitos de antidepressivos em bebês é que a maioria deles foi realizada durante a primeira infância, período durante o qual as dificuldades de aprendizagem, desatenção e problemas psiquiátricos não são facilmente identificáveis. “As consequências da exposição precoce aos antidepressivos podem não ocorrer imediatamente após o nascimento, manifestando-se mais tarde na adolescência ou mesmo na idade adulta”, afirma Marinho.

Em teoria, os roedores seriam modelos ideais para realizar esses tipos de estudos controlados. “No entanto, há uma distância filogenética entre os humanos e roedores, que apresentam diferenças significativas na estrutura cerebral, composição celular e função entre os cérebros”, diz a bióloga e neurocientista Gabrielly Maria Denadai Chiarantin, da UFABC, umas das autoras do estudo.

A pesquisadora observa que experimentos em roedores têm várias limitações em seu potencial para avaliar questões de desenvolvimento relevantes para o cérebro humano. “Portanto, modelos alternativos mais confiáveis são necessários na forma de modelos celulares humanos fáceis de manusear, éticos e baratos in vitro”, afirma Chiarantin.

Genes

Segundo ela, vários estudos demonstraram uma associação entre o uso de antidepressivos durante a gravidez e alterações na expressão de genes quando o sangue do cordão umbilical dos recém-nascidos foi avaliado.

Segundo Chiarantin, os distúrbios neuropsiquiátricos, em geral, têm suas raízes durante o neurodesenvolvimento. “Assim, entender as ligações de causalidade entre esses eventos e os mecanismos de desenvolvimento neurológico subjacentes aos distúrbios cerebrais e à administração de antidepressivos é um desafio”, conclui.

E MAIS…

Aumento do risco

A depressão materna ocorre em cerca de 10% das gestantes em todo o mundo, chegando a 15,6% nos países e desenvolvimento.  Quando não tratado, o transtorno está associado a um aumento no risco de mortalidade e, inclusive, pode causar parto prematuro.

Além disso, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) também foram descritos em mães durante as primeiras seis semanas após o nascimento. 

Consequentemente, antidepressivos são prescritos regularmente para mulheres durante a gravidez, incluindo inibidores da recaptação de serotonina, como, por exemplo, a sertralina.