Um convite aos psicólogos e psiquiatras para se aprofundarem na reflexão da história da evolução do conceito da loucura e na técnica do psicodrama. É o que também propõe a peça “O Coração nas Sombras”, que o dramaturgo Luís Alberto de Abreu escreveu em processo colaborativo com a Cia Teatro da Cidade, de São José dos Campos, que está em sua última semana em cartaz na Funarte, em São Paulo.

Quando a atriz e diretora da Cia de Teatro da Cidade, Andréia Barros, descobriu a história da sua tia-avó Letícia Poletti (1908-1939), que morreu aos 31 anos após ficar três anos internada no Sanatório de Barbacena, conhecido como Holocausto Brasileiro, ela sentiu uma profunda tristeza e revolta, com a vontade de descobrir a fundo essa história.

Reflexos de história real

Com a proximidade dos 30 anos de aniversário da companhia, foi sugerido ao dramaturgo, que há 20 anos havia abordado a loucura em sua peça “Nau de Loucos”, e que mantém uma profunda colaboração com o grupo do Vale do Paraíba, a criar uma peça que contasse a história de Letícia usando a técnica teatral da Narrativa, no qual o ator relata os acontecimentos e também os encena, além de influências do Teatro Nô.

Andréia entrevistou uma prima e todos se aprofundaram na história do sanatório, no qual morreram 60 mil pessoas e que só foi desativado em 1980 após 77 anos de terror. Na década de 1960, o sanatório, que foi criado para abrigar 200 pessoas, chegou a ter 5 mil internos, que dormiam pelados e amontoados em capim para não morrer de frio.

Encarceramento, tortura, choques, medicação pesada. Tudo era usado para coagir os internos, sendo que apenas 30% possuíam problemas psiquiátricos, enquanto a maioria era composta por pessoas muito tímidas, ou muito extrovertidas, artistas, adolescentes problemáticos frente aos desafios da idade, negros, prostitutas, desempregados, pobres, moradores de rua e todos aqueles que eram considerados desfuncionais para as engrenagens sociais.

O sanatório de Barbacena é reflexo de uma longa história da abordagem da sociedade Ocidental sobre a loucura. Na Grécia Antiga, Homero associou a loucura a uma forma de possessão dos deuses, do qual surgiu o conceito de “mania”, expressão ainda usada na psiquiatria, porém em uma abordagem científica. O distanciamento e o estranhamento social com aqueles considerados loucos cresceram na Idade Média, quando essas pessoas eram confinadas em barcos à deriva, a “Stultifera Naves” (a Nau dos Loucos).

Profundas distorções e sofrimentos

Foi a partir do século XVII que surgiu uma teoria que relacionava as perturbações mentais a doenças, desenvolvida pelo psiquiatra francês Philippe Pinel. Mas é também da França que surge uma filosofia que fundamentou a exclusão daqueles considerados loucos pela sociedade, pelas mãos do físico, matemático e filósofo René Descartes (1596-1650), o autor da polêmica frase “Penso, logo existo”. Ao criar as bases do racionalismo, Descartes excluiu qualquer possibilidade de identificação do ser com aquilo não seja como  considerado a “razão”. Essa concepção, que caiu como uma luva para a sociedade durante o processo de industrialização, no qual a ideia racionalista e mecanicista da sociedade deve imperar, produz até hoje profundas distorções e sofrimentos.

“É interessante e um paradoxo imaginar que Descartes se inspirou em um sonho para criar a sua metodologia, que excluiu completamente o sonho da equação”, disse no último domingo, dia 28 de agosto, Luís Alberto de Abreu, em debate após a apresentação da peça. Para o dramaturgo, há uma série de fatores que explicam essa situação da loucura frente à sociedade Ocidental, mas não há dúvida que o racionalismo de Descartes tenha uma profunda contribuição.

A abordagem de que o homem deve se guiar pela razão, excluindo toda forma de expressão da simbologia mais profunda do sonho, da religião e de tudo aquilo que se contrastava à ordem instituída, baseada na ideologia do Positivismo e do Cientificismo, inspirou a arte ao longo do tempo, como no magnífico livro de Machado de Assis “O Alienista”, no qual o médico Simão Bacamarte constrói o sanatório Casa Verde, no qual interna os loucos da cidade de Itaguaí.

À luz do racionalismo positivista

À medida que se deparava com os sonhos, desejos, desavenças, paixões políticas das pessoas da cidade, Bacamarte os analisava à luz do racionalismo positivista e internava um a um. E ele, que pensava que a loucura era uma “ilha perdida no oceano da razão”, começou a suspeitar que era na verdade um Continente, e foi internando a todos, até que se internou a si próprio.

“O Coração nas Sombras” não deixa de ser reflexo dessa crítica. Letícia Poletti foi obrigada a casar com 14 anos, teve três filhas e apanhava do marido de forma impiedosa. Possivelmente cansada dos maus tratos, separou-se do marido e buscou uma vida independente, conseguiu emprego e pintou os cabelos. O seu novo estilo de vida na década de 1930 levou a sociedade da época a associá-la como “mulher de vida fácil”, deixando para trás as filhas, as quais eram impedidas de ver a mãe. Com os embates para ver as filhas causava constrangimento à família, o irmão de Letícia a internou à força em Barbacena.

A narração da história, os jogos de cena, a dramaturgia não deixam de ser um duplo psicodrama: de um lado, um psicodrama social em grupo, no qual os espectadores são levados a refletir sobre o debate, que tem crescido atualmente, da volta dos manicômios, estimulada pelo atual governo de Jair Bolsonaro; de outro lado, a atriz Andréia Barros resgata a história da tia-avó não apenas para tornar viva a sua memória de mulher que enfrentou os padrões do Patriarcado, mas também para curar as feridas deixadas por essa profunda violência familiar.

Um imenso divã coletivo

“Quando você narra uma história, você traz a emoção que a pessoa representa para você”, diz Claudio Mendel, dirigente da Cia Teatro da Cidade, especialista em Teatro Narrativo, que defende que não podemos deixar de contar as histórias. A técnica narrativa foi apresentada em workshops de dois dias conduzido por Mendel e pela atriz Sheila Faermann. Fazem ainda parte do elenco a atriz Caren Ruaro e o ator Rômulo Scarinni.

Há cenas de profunda compaixão e carinho, no qual Andréia se encontra com Letícia, a fim de evitar que histórias como essa se repitam. A platéia se transforma em um imenso divã coletivo, no qual os traumas sociais e pessoais estão sob os holofotes. Ao final, com grande emoção, o público é instigado a refletir sobre a busca de novas formas para se abordar não apenas os transtornos psíquicos, mas também a pensar sobre novas formas sociais que sejam inclusivas.  

E MAIS…

Serviço

O coração nas sombras

Quando: 12 de agosto a 04 de setembro – Sextas e Sábados às 20h00, Domingos às 19h00

Onde: Sala Carlos Miranda, FUNARTE São Paulo – Alameda Nothmann, 1058, Campos Elíseos, São Paulo

Crédito foto – Malu Freire

Site de Ingressos para a peça e workshop: https://linktr.ee/ciateatrodacidade

Debates com o Elenco e convidados nos dias

04/9 – com o Diretor Musical Beto Quadros e a Cenógrafa Pitiu Bonfim