A vontade de morar em outro país é cada vez mais presente nos brasileiros. E há quem diga que tem brasileiro em todas as partes do mundo!!! Este artigo pretende tratar sobre processos de subjetivação de imigrantes brasileiras(os) que se mudaram de forma voluntária para outros países. Desta forma, não abordarei casos que envolvem exílio ou refugiados de guerra, pois possuem outros tipos de atravessamentos sociais.
A produção do conhecimento ocidental, mais especificamente a partir da ciência moderna, foi atravessada pela construção de um saber baseado em uma lógica dicotômica que se tornou o modo hegemônico de pensar e entender o mundo, em que separa, por exemplo, sujeito e objeto, indivíduo e coletivo, subjetividade e objetividade, corpo e mente, como se fossem completamente distintos. O paradigma da ciência moderna se baseia na crença dessa lógica e na existência de uma neutralidade, como se o sujeito que pesquisa estivesse completamente separado de seu objeto de estudo.
A Psicologia em sua história também muito contribuiu e ainda pode acabar contribuindo para a manutenção deste tipo de modo de pensar, que produz modos de sentir e agir específicos, muitas vezes psicologizantes e individualizantes, se partir de um olhar acrítico, descontextualizado historicamente e separado da nossa dimensão material – nossos corpos.
A perspectiva da qual eu parto é baseada principalmente na Filosofia da Diferença e é a partir do pensamento de Foucault, Deleuze e Guattari que entendo sobre processos de subjetivação. Estes autores recusam a ideia de que a subjetividade é fechada em si mesma, individualizada, interiorizada e separada do social; e afirmam que existe um processo de produção de subjetividade, que é atravessada pelo contexto histórico em que nos situamos e o modo como nos agenciamos nas relações que estabelecemos com esse mundo. Nesta perspectiva, os binarismos que mencionei anteriormente não fazem sentido, pois entende-se que a produção de subjetividade emerge da relação que é estabelecida, por exemplo, as dimensões social e individual não são separadas, elas se constituem ao mesmo tempo e em relação.
Experiências distintas
Os processos de subjetivação só podem ocorrer através dos nossos corpos, pois é através do corpo que nos relacionamos, que sentimos, pensamos e agimos no mundo. A vivência de uma pessoa negra ou indígena, por exemplo, é completamente diferente da experiência de uma pessoa branca ou amarela. Os marcadores sociais étnico-raciais, gênero, sexualidade, classe social, pessoa com deficiência, e ser nativa(o) ou estrangeira(o), colocam cada pessoa em um lugar diferente na sociedade em que se situa. Além da história de cada pessoa ser atravessada por esses marcadores sociais, também existem aspectos mais singulares de como a pessoa viveu suas experiências.
A partir deste entendimento de processo de subjetivação, compreendo a situação das(os) imigrantes como algo singular e complexo. É singular, pois apesar dos marcadores sociais atravessarem esse processo, cada pessoa se relaciona de modo diferente frente à situação de imigração. No entanto, esse processo de imigração implica também questões específicas, que não podemos generalizar, mas que parecem se assemelhar em alguns pontos nas experiências de imigrantes. Koltai fala do processo de imigração como um fenômeno coletivo, mas que produz efeitos singulares, “que se revela como uma viagem tão singular e solitária como a análise”.
Escrevo a partir do lugar de uma pessoa que é neta de imigrantes japoneses no Brasil e já foi imigrante durante quase cinco anos no Japão. Apesar de ser brasileira amarela, meu fenótipo asiático sempre me colocou em um lugar de estrangeira japonesa pelo olhar de muitas pessoas no Brasil. Atualmente atendo, como psicóloga, brasileiras(os) que moram no exterior. É importante ressaltar que no atendimento aos imigrantes não se trata de ajudá-los na adaptação ao novo território, mas de acompanhar esse processo de imigração com todas as questões que emergem disso e o modo como o analisante se relaciona com elas.
Em seu estudo, Escobari fala da existência de um imaginário social, que surgiu após a crise econômica dos anos 1980, de que o Brasil é um país que não proporciona condições, enquanto outros países ofereciam melhores oportunidades, uma “vida melhor”. A fantasia de que se mudar para outro país resolverá todos os problemas é bastante comum e pode invisibilizar outras questões que atravessam a experiência da imigração e produzir um sentimento de frustração quando a pessoa se depara, de fato, com o lugar de imigrante.
Em constante construção
Na construção de nós mesmos na relação que estabelecemos com outras pessoas e mundo, vamos constituindo territórios existenciais em que nos reconhecemos e nos localizamos. Para Guattari e Rolnik, “o território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos”. Podemos pensar o processo de migração como também um movimento de desterritorialização – em que esses territórios “originais” se desfazem -, e de reterritorialização – recomposição de um território novo. Nesse movimento ocorrem mudanças nos modos de sentir-pensar-agir na medida em que o sujeito passa a se relacionar com outro contexto social.
De acordo com Koltai, “A imigração envolve múltiplos níveis de perdas, tanto reais quanto imaginários. Pelo menos temporariamente, perdemos o senso de controle sobre o que nos cerca, perdemos o conforto da familiaridade de nossa vida cotidiana, perdemos nossa linguagem e perdemos o apoio das redes familiares. Nossas perdas estão entrelaçadas com as oportunidades e mudanças que a imigração traz, o que as torna menos nítidas e as transforma em perdas ambíguas.”. Achotegui teorizou sobre sete tipos de lutos que o imigrante vive: 1) o da família e dos entes queridos, 2) o da língua, 3) o da cultura, 4) o da terra, 5) o do status social, 6) o do contato com o grupo de pertencimento, 7) o dos riscos para a integridade física.
Koltai afirma que de certo modo, toda(o) estrangeira(o) é um sobrevivente, pois vivenciou a perda do espaço, de uma terra e de uma língua materna, sendo impossível que a migração não afete a relação do sujeito com o tempo e espaço. A pessoa ao migrar se depara com uma nova cultura, contexto social, com o contato/uso de uma outra língua para se comunicar, e, consequentemente, emerge um outro modo de sentir-pensar-agir, de se relacionar. Se o sujeito não sabe falar a língua do país para qual se mudará ou mora, a situação costuma ser mais complexa, pode ocorrer sentimentos de não pertencimento, infantilização, dependência, não autonomia e dificuldade em conseguir se expressar como gostaria. É possível inclusive ser mais difícil encontrar empregos que possuam maior status social e não conseguir sair de subempregos. Dependendo do país em que a pessoa se encontra, ela pode ter melhores oportunidades de emprego se dominar o idioma local mesmo não sendo nativa(o). É comum que a(o) imigrante brasileira(o) se sinta sozinha(o) e acabe se socializando somente ou majoritariamente dentro de uma comunidade brasileira no exterior por ter dificuldade de se comunicar e/ou estabelecer vínculo afetivo com nativas(os) e maior afinidade com outra(os) brasileiras(os). Isso pode dificultar o aprendizado da língua nativa por quem não a domina ainda. O fato de não saber a língua e/ou não possuir amigas(os) nativas(os) pode produzir também um sentimento de não pertencimento ou inadequação.
A saudade…!
Geralmente, o tema da saudade de entes queridos é algo que sempre está presente na análise de pessoas imigrantes. No atual contexto de pandemia da Covid-19, a questão de estar longe da família e amigas(os) do Brasil, o medo de que algo possa lhes ocorrer, a falta de perspectiva de quando poderá encontrá-los pode gerar um grande sofrimento e sentimento de impotência. De algum modo, essa situação pode se aproximar da vivência de imigrantes ilegais que não conseguem voltar para o Brasil por conta da sua condição no país estrangeiro.
De acordo com Margolis, o “ser brasileiro” se torna uma categoria no processo migratório e que isso se desenvolverá de forma diferente em cada país. A(o) estrangeira(o) é vista(o) como “o outro” pela(o) nativa(o), “aquele que é diferente de nós” e isso pode produzir sentimentos de interesse/curiosidade ou xenofobia dependendo da pessoa nativa. É comum aparecer na análise relatos de exotização, xenofobia e preconceito sofridos pelos imigrantes, além do receio de perder o emprego, de não possuir os mesmos direitos que as(os) nativas(os), desamparo, solidão, fracasso, não pertencimento, choque cultural, dificuldades na relação amorosa com pessoas nativas por diferenças culturais e até mesmo sentimentos de ambivalência em relação ao desejo de ficar no país ou retornar para o Brasil.
John Donne diz que nenhum ser humano é uma ilha, isolada(o) em si mesma(o). Portanto, somos seres sociais que necessitamos estabelecer vínculos afetivos aonde quer que estejamos. Na medida em que a(o) imigrante experiencia o processo de desterritorialização e consegue se reterritorializar, criando novos modos de sentir-pensar-agir no novo contexto social, construindo laços afetivos e sociais nesse território, o “ser estrangeiro” talvez possa não ser mais tido como algo pejorativo, mas algo que apenas as(os) diferencia e que pode inclusive ampliar as perspectivas e visão de mundo das(os) próprias(os) nativas(os).
Uma das pessoas que atendo chegou ao processo de análise deslegitimando o que sentia por acreditar ser muito privilegiada por ter escolhido imigrar voluntariamente para fora do Brasil e que isso não lhe dava o direito de sofrer diante de sua situação. Poder acolher e aceitar nossos próprios sentimentos é um passo necessário para elaborar nossas experiências. Espero que, de alguma forma, as(os) imigrantes que lerem este artigo possam acolher mais seus sentimentos, pois ser estrangeira(o) é realmente complexo e difícil, há muitas nuances no processo de imigração e o estar no lugar de imigrante geralmente não é tão acolhedor como muitas(os) imaginam; e que as pessoas que não são imigrantes possam, a partir desta leitura, não deslegitimar ou diminuir a vivência de quem é estrangeira(o) em outro país.
O sonho da imigração
Segundo Margolis, em sua pesquisa sobre a imigração de brasileiras(os) nos Estados Unidos, um grande catalisador da emigração é o fator econômico, em que as pessoas acreditam que conseguirão juntar um dinheiro mais rapidamente fora do Brasil. Esse imaginário social também atravessa os descendentes de japoneses que vão trabalhar como mão-de-obra barata em linhas de produção em fábricas no Japão. Geralmente, são pessoas que não possuem boas condições financeiras e vão com passagens financiadas por empresas terceirizadas, o que de alguma forma as obrigam a ficar naquele emprego até terminarem de pagar toda sua dívida. Foi assim que aconteceu com a minha família nas duas vezes que emigramos para o Japão, além de ter sido desta forma que meus parentes e pais de amigas(os) se mudaram para o país também.
Referências:
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ESCOBARI, Daniela. Quem da pátria sai a si mesmo escapa?: um estudo psicanalítico sobre um caso de migração. 2008.
GUATTARI, E e ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo.2016. Petrópolis: Vozes.
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KOLTAI, Caterina. Os errantes, um desafio para a psicanálise. Uma clínica da errância? Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 52, n. 3, 61-72, 2018.
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