É de Adélia Prado a definição de poesia enquanto função de recuperar os essenciais esquecidos. Pegando carona na definição de Adélia a partir dos dias atuais, solidarizando com a dor das vidas perdidas, famílias enlutadas e de tantos outros prejuízos, eu diria que essa também pode ser a função de um vírus.

Um dos caminhos que nossa consciência adota para se orientar no mundo medial da realidade é a consciência dos opostos. Sabemos que faz frio porque temos como referência o calor, tendemos a valorizar algo, muitas vezes quando o perdemos.

Com o decorrer daquilo que chamamos de evolução, nosso ego foi criando defesas, autoenganos e compulsões para se defender de enxergar uma realidade que sistematicamente foi excluída. Nossas prioridades tornaram-se materiais e o mundo invisível da alma (como se fosse possível) foi colocado de lado, como um quarto onde depositamos coisas que não queremos, com a ingenuidade de que elas nunca reclamariam existência.

Pagar o preço

Resolvemos (literalmente) pagar o preço para chamar de evolução aquilo que carrega a alcunha de tecnológico, ou que vem com o eco de tantas outras vaidades e simulacros até que um vírus, parafraseando o Pequeno Príncipe, veio nos dizer que “o essencial é invisível aos olhos”.

Uma crise como a que estamos vivendo sinaliza que nunca foi tão urgente alinhar os valores individuais com o cultivo de uma consciência planetária e as ressonâncias da Anima Mundi (Alma do Mundo).

Em sua benção Urbi et Orbi, o Papa Francisco alerta que “absorvidos pela pressa e pelo lucro não ouvimos os lamentos do planeta que agoniza, não nos sensibilizamos com as injustiças e o sofrimento das populações marginalizadas.” Sim, ele tem razão: um mundo barulhento e hiperexposto tornou-se fermento para a ansiedade cultural e o vazio existencial, passando longe de ser um terreno convidativo para a introspecção, recolhimento ou revisão crítica sobre o tamanho das nossas responsabilidades na crise que se avoluma.  Nas palavras do Papa: “Avançamos destemidos, pensando que continuaríamos saudáveis num mundo doente” (Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-03/papa-francisco-homilia-oracao-bencao-urbe-et-orbi-27-marco.html),

Integridade e resiliência 

Neste reordenamento de posturas, o cultivo de uma sensibilidade que nos retire da apatia induzida a fim de questionar as agonias de testemunharmos passivamente a destruição do mundo é o primeiro passo para filtrar os estímulos de fora, a fim de ouvirmos a sabedoria de dentro, acolher nossas feridas e, a partir, delas encontrarmos um sentido maior de integridade e resiliência. 

Como lembra Eliana Atihé em seu discurso para o TED (evento de TED TALK do Youtube), os verbos-mantras que sustentam a realidade do patriarcado são verbos intransitivos, como lutar ou competir, que refletem o individualismo predatório do nosso atual sistema de crenças e que limitam o outro a personas rígidas como competidor ou inimigo, com a qual não podemos colaborar ou conviver.

Esta é uma crise sem precedentes na história recente da humanidade.  Um momento importante para despertar a consciência a partir de valores restaurativos e alinhados com uma cultura de paz e ecologia interior, ressignificando os caminhos que desvirtuaram nossa capacidade de sentir, imaginar e criar e que, por isso, não dão mais respostas para viver neste mundo de forma harmônica e inclusiva.  A crise estimula a reflexão e surge para expressar um desequilíbrio, mas paradoxalmente, a partir do movimento dessas tensões, podemos conseguir revisitar as virtualidades latentes de que, com a crise, também vem o caos regenerativo e, assim, os fundamentos de um novo (e melhor) mundo possível com base em valores que sustentem e alimentem a vida.

Como aprendemos com os artistas, o ato criador surge das dores da vida ou de muitas outras necessidades e angústias. Em tempos da atual pandemia, esta pode ser uma das maiores lições da Covid-19: lembrar a consciência coletiva de refletir sobre os essenciais esquecidos.

E MAIS…

O vínculo identitário com a metáfora

Em  “Ideias para adiar o fim do mundo” Ailton Krenak convoca a metáfora da “humanidade zumbi” como aquela responsável por criar as catástrofes no mundo, já que o conjunto de valores oriundos desse modelo mental não engloba o protagonismo de práticas sócio-afetivas como o cuidado, o vínculo identitário com nossa memória ancestral e a dimensão lúdica e imaginativa da vida: “então pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos”. (p.27). Enquanto herdeiros de uma cultura patriarcal que fez da violência estrutural o eixo de comportamentos socialmente induzidos, as ramificações destas violências seguem sua  rota de colisão com os essenciais esquecidos, isto é, a criação de uma nova harmonia geradora de um sentido pleno de vida para todos os que habitam a nossa casa comum, o planeta Terra.