A Cannabis medicinal ainda causa polêmica, apesar dos vários estudos que comprovam sua eficácia em diversos problemas de saúde – dos mais simples, como acne, aos mais complexos, como Alzheimer, depressão, epilepsia e câncer. Mais recentemente, um estudo realizado com roedores pela Augusta University (Georgia, EUA) mostrou que o CDB reduziu as severas inflamações causadas pela Covid-19, reduzindo o desconforto respiratório e contribuindo para o restabelecimento da saúde dos animais – mostrando que o próximo passo será testar a substância em humanos com a doença.
Segundo a especialista em Medicina Integral e Cannabis Medicinal, Ailane Araújo, fitocanabinóides mimetizam os endocanabinóides (substâncias que nosso próprio corpo produz), que se ligam aos receptores do tipo CB1 e CB2, localizados no sistema nervoso, em tecidos conectivos, gônadas, glândulas e órgãos; e receptores CB2, encontrados principalmente no sistema imunológico e presentes também no baço, fígado, coração, rins, ossos, vasos sanguíneos, células linfáticas e órgãos reprodutores, regulando e alterando o funcionamento de muitos outros sistemas importantes, reequilibrando o organismo.
Com vasta experiência no manejo e no ensino de Cannabis medicinal, a especialista é uma das primeiras prescritoras da substância no Brasil, além de pesquisadora sênior do sistema endocanabinóide e do papel terapêutico dos fitocanabinoides em diversas patologias. Entre os casos de prescrição de Cannabis pela especialista, ela revelou ter conseguido diminuir os sintomas de Parkinson em pacientes.
Nesta entrevista, ela faz um breve resumo sobre a história da Cannabis medicinal, explica o funcionamento do sistema endocanabinoide, presente em todo ser humano e formado quando o feto ainda tem 10 semanas, e informa as evidências científicas atuais.
É possível fazer um resumo da história da Cannabis Medicinal?
A Cannabis vem sendo utilizada há 5 mil anos e os primeiros relatos são do imperador chinês Shen Nung, que utilizava a substância para tratar dores articulares, malária e memória fraca. Outro registro se refere ao livro “De matéria médica”, de Pedânio Dioscórides, considerado a principal fonte de informação farmacológica do século I ao século XVIII. Na primeira metade do século XIX, o médico irlandês William Brooke O’Shaughnessy fez os primeiros experimentos com humanos e animais.Em 1963, o químico búlgaro Raphael Mechoulam isolou e especificou a estrutura molecular dos “canabinoides”, os compostos químicos da maconha. Em particular, decifrou o tetraidrocanabinol (THC), a molécula que, em altas doses, intoxica o paciente, e o canabidiol, o principal composto, que não causa intoxicação e possui várias qualidades medicinais. Além disso, ele descobriu o sistema endocanabinoide. No Brasil, a Cannabis é legalizada apenas em 2014, por conta do caso da Anny Fischer, na época com 7 anos, diagnosticada com uma síndrome rara, a CDKL5, que chega a causar até 80 convulsões por semana. Com a legalização, neurologistas e depois os psiquiatras poderiam prescrever a substância para Epilepsia Refratária. Em 2015, ampliam o uso compassivo da substância e qualquer médico pode prescrever o tratamento com Cannabis para casos em que o paciente seja refratário, ou seja, quando estão esgotadas todas as possibilidades de tratamento e sem melhora de quadro clínico. Em 2020, a Anvisa autorizou a comercialização do primeiro produto a base de Cannabis em farmácias mediante receita médica.
Quais são os componentes da Cannabis e, desses, quais são considerados medicinais?
A Cannabis tem tipos diferentes de planta: a sativa, a indica e a ruderalis e, assim como a família dos cítricos, são bioquimicamente diferentes, inclusive na forma e coloração. Os fitocanabinoides são compostos da planta que mimetizam substâncias que a gente produz no nosso próprio corpo, que são os endocanabinoides, mais conhecidos hoje como anandamida e 2AG. Eles se ligam a receptores que estão espalhados em todos os órgãos do nosso corpo, do tipo CB1 e CB2 e receptores acoplados à proteína G que atuam no sistema nervoso central e sistema nervoso periférico. O óleo de cânhamo, que é a parte mais utilizada na medicina e tem concentração baixa de THC, com 0,3% no máximo, e uma concentração maior de CDB, que tem efeito anti-inflamatório, antipsicótico, analgésico potente, faz regulação do centro do apetite e cada um dos 120 fitocanabinoides disponíveis na planta tem uma propriedade específica no sistema endocanabinoide. Além dos fitocanabinoides, a Cannabis possui flavonoides (com propriedades anti-inflamatórias, reguladores hormonais, anti-hemorrágicas, antialérgicas e anticancerígenas) e terpenos (com propriedades anticancerígenas, anti-inflamatórias, bactericidas e fungicidas). Enquanto o THC é estimulante de apetite, relaxante muscular, analgésico, sedativo, anti-inflamatório, o CDB possui propriedades analgésicas, anti-inflamatórias, antioxidantes, ansiolítico, antidepressivo, anticonvulsivante, estimula a matriz óssea e crescimento do osso, antiemética, atua como imunomodulador e cada um tem propriedade específica, indicado para tratamentos específicos.
O que é o sistema endocanabinoide e por quê ele é diferente para cada pessoa?
O sistema endocanabinoide está presente a partir do 10º dia da gestação e está intimamente envolvido com o desenvolvimento do feto e todo o sistema nervoso central, além de regular as funções do corpo, como humor, sono, apetite, produção hormonal, digestão de alimentos e metabolismo. Temos receptores na amígdala, responsável pela ansiedade, estresse, medo e dor. Os fitocanabinoides vão se ligar a essa parte do cérebro e fazer a modulação da ansiedade, estresse, diminuindo o medo e a dor, além de se ligar a outros receptores do corpo. O sistema endocanabinoide é diferente em cada pessoa porque a produção de receptores e ligantes é diferente para cada indivíduo e depende do tipo de alimentação, estilo de vida e questões genéticas.
Prescrever a Cannabis medicinal é diferente de sugerir à pessoa que fume maconha…
Totalmente diferente. O fumo prejudica o pulmão e não é interessante, ainda mais no Brasil, com várias substâncias prensadas sem qualquer cuidado. A Cannabis medicinal possui certificado de análise, toda composição é conhecida e produzida da maneira correta, com dosagens específicas para cada paciente, podendo ser em forma de cápsulas, óleo ou pasta.
Quais as evidências científicas e de segurança da prescrição da Cannabis?
Há evidências atuais e revisões sistemáticas no uso de Cannabis para o tratamento de dor crônica, no tratamento de náuseas e vômitos induzidos pela quimioterapia, no manejo da espasticidade por esclerose múltipla, no tratamento de convulsões tratáveis das síndromes de Dravet, evidências moderadas na melhora de resultados do sono em indivíduos com transtorno de sono que são associados à síndrome de apnéia obstrutiva, fibromialgia, dor crônicas e esclerose múltipla. Também para a diminuição da pressão ocular em caso de glaucoma. Há evidência limitada, com poucos estudos de análise, na melhora de sintomas de demência, Parkinson, transtorno de estresse pós-traumático, esquizofrenia, aumento de apetite e diminuição da perda de peso, síndrome de Tourette e ansiedade social. Além disso, a Cannabis é totalmente segura e diferente dos opioides, que podem causar depressão respiratória e levar a morte. Ninguém nunca morreu de overdose por causa de THC. Temos evidências substanciais sobre o tratamento com Cannabis medicinal desde que saiba dosar e titular, porque paciente com esquizofrenia ou com tendência a psicose, se usarem THC em altas doses, podem vir a desenvolver os transtornos. Já o CBD puro é bem seguro clinicamente.
Quais as patologias possíveis de serem tratadas com a Cannabis e, em especial, explique como ela funciona para os casos de Covid-19?
Por causa do sistema endocanabinoide que regula e modula todos os outros sistemas, a Cannabis medicinal pode ser utilizada no tratamento de doenças neurodegenerativas, dor crônica, doenças autoimunes, em pacientes com câncer, pacientes em cuidados paliativos. Se a pessoa tem uma deficiência do sistema imunológico, ela tem uma propensão a pegar vírus e bactérias, a desenvolver processos infecciosos. No caso da Covid-19, a Cannabis modula o sistema imunológico, diminuindo todo o processo inflamatório.
Como a Cannabis atua no tratamento de ansiedade, depressão, psoríase, transtorno de estresse pós-traumático e obesidade – que são questões que estão em evidência, sobretudo por conta do isolamento social?
A ansiedade é uma reação natural do organismo diante de estímulos estressantes, que podem provocar medo, dúvidas ou expectativas, sendo assim benéfica para o indivíduo. Ela se torna um problema quando esse mecanismo é ativado o tempo todo por perigos “imaginários”, provocando respostas biológicas automáticas e passando a interferir nas atividades do dia-a-dia, podendo, inclusive, gerar um ataque de pânico. Não se sabe bem a causa correta, acredita-se que esteja relacionada ao desequilíbrio de alguns neurotransmissores que ocorrem naturalmente no cérebro, como dopamina, serotonina e norepinefrina. Podendo ser influenciada também por fatores genéticos, mas principalmente os fatores externos, como estresse e estilo de vida da pessoa. A ansiedade pode desencadear várias outras patologias, como transtorno do pânico, fobia social, Transtorno do estresse pós traumático e Transtorno obsessivo compulsivo (TOC), levando a um comprometimento da qualidade de vida da pessoa. Essa presença quase que permanente de preocupação ou tensão, mesmo quando há poucos ou nenhum motivo para isso, parecem passar de um problema para outro: trabalho, família, relações amorosas, saúde. Ou seja, a ansiedade pode interferir diretamente nas mais diversas áreas da vida da pessoa. Além disso, pode ser acompanhada de depressão, pensamentos ou comportamentos suicidas. O CBD possui efeitos modulatórios na ativação da área límbica e paralímbica, que são as áreas relacionadas às emoções. Ele atua como um potente ansiolítico, sendo justificada a sua atuação na redução da ansiedade. Aumenta a biodisponibilidade da anadaminda, o neurotransmissor da “felicidade”. Os endocanabinoides regulam o disparo e o padrão de atividades dos neurônios por meio do controle retroativo ou pós sinápticos dos imputs inibitórios/excitatórios. Modulando, assim, a resposta dos neurotransmissores do tipo serotonina, dopamina e norepinefrina, levando a homeostase e, assim, promovendo o equilíbrio do organismo. Leva-se em consideração que não possui dependência, nem efeitos colaterais.