A perversidade e a crueldade humana sempre existiram. Se voltarmos à Idade Medieval, as execuções em praças públicas eram espetáculos imperdíveis, que atraiam a atenção de pessoas de diversas cidades. A sentença era lida rapidamente e os grupos de minoria, num gesto quase piedoso do carrasco, eram estrangulados antes de serem queimados vivos. Tudo em nome de purificar os corpos do demônio como aconteceu com a jovem Joana d’Arc, em 1431. Passaram-se mais de 600 anos e o ser humano continua atirando pedras. O Tribunal da Inquisição ganhou novo cenário: o Tribunal da Internet. Basta não rezar na mesma cartilha, não comungar das mesmas ideias e ideais da maioria e você será cancelado.

Mesmo não tendo um marco exato de origem, a cultura do cancelamento aparentemente teve início a partir da mobilização de vítimas de assédio e abuso sexual (Movimento #MeToo), que ganhou maior visibilidade em 2017 por força das denúncias realizadas em Hollywood. O fenômeno tem chamado a atenção, principalmente nas redes sociais, por tratar de uma onda que incentiva pessoas a deixarem de apoiar determinadas personalidades ou empresas, públicas ou não, em razão de erro ou conduta reprovável. Afinal de contas, o que a cultura do cancelamento quer dizer sobre nós, seguidores? Por que cancelamos o outro?

Crescente discurso do ódio

É visível o crescente discurso do ódio contra aqueles que não pensam exatamente como nós. Cancelar é um meio simples (em um espaço público, porém sem confronto presencial) de excluir aqueles que não seguem as nossas verdades absolutas. Em geral, temos algumas pistas: falta de propósito, uma crise existencial humana avassaladora em tempos cibernéticos, baixíssima tolerância para as diferenças e uma sociedade doente emocionalmente. Segundo Lacan, o desejo humano vem da falta. A incompletude mobiliza o desejo humano na relação com o outro. Mas há uma imposição de seu desejo egóico, de sua verdade como algo único e que não pode ser contestada. O resultado é o julgamento de indivíduos ou grupos sociais de forma até precipitada. Será que há uma tomada de “consciência” das massas sobre esse processo?

Pessoas ou empresas já foram canceladas por internautas como forma de justiça social. Cancelamento virtual (cancelled culture, em inglês) é diferente de trolagem, uma gíria que significa zoar e tirar sarro de alguém. É um movimento de denúncias, manifestações, protestos e linchamentos virtuais, que disseminam a opinião de grupos que se formam por afinidade ou inimizade.

Avaliação do comportamento

Há membros de uma mesma comunidade que incentivam o ódio e a exclusão de minorias, seja por motivos políticos, religiosos, de cultura, raça etc. E há quem põe limites à exibição antiética dos sem noção. Em termos de comportamento de grupo, toda vez que a gente aponta alguém e a coloca em situação de evidência, despersonaliza essa pessoa”, afirma Fabiane Friedrich Schütz, doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Não tenho dúvidas de que estamos perdendo esse jogo. Na maioria das vezes, a cultura do cancelamento descarta o debate saudável, impondo, de forma imediata, a sanção ao agente, sem viabilizar a defesa prévia ou eventual aprendizado, uma vez que não possui viés de educar e reintegrar, mas apenas excluir. Tem muita gente e marca que não merecem mesmo os nossos aplausos. No entanto, a sociedade da espetacularização saiu das praças públicas, das bruxas queimadas vivas nas fogueiras, das arenas dos gladiadores em Roma, para o paredão e uma torcida gigantesca movida por fazer a justiça.

E MAIS…

Os reality shows e a fragilidade de opiniões

Atualmente, os reality shows têm sido um grande campo de pesquisa sobre o tema. Eles têm escancarado o comportamento de famosos ou anônimos que, colocados em pé de igualdade para competir, mostram que a “casa de um BBB” é um retrato da vida real. O depoimento de um jovem profissional de marketing digital, Mateus Pratas, 24, resume bem algumas lições da cultura do cancelamento na TV.

“O que o programa está fazendo é mostrar na tela a consequência do cancelamento. As pessoas estavam acostumadas a julgar, a linchar, mas não percebiam o sofrimento e a dor alheia de estar sendo excluído. Há sentimentos como raiva, ideação de suicídio, depressão etc. Ao participar do jogo, o participante de um reality show não sabe como está a repercussão de suas falas no mundo lá fora. E o pior: quando deixa a casa, pode mudar instantaneamente de opinião para tentar salvar sua reputação”.

Nos bastidores, percebo que há um longo caminho para a construção de uma cultura de autocuidado e respeito. Menos juízes, menos sujeitos narcísicos, mais mediadores com escuta empática. Os nossos corações e mentes agradecem.