Tenho certeza de que você já viu ou ouviu falar de Matilda, com seus poderes, família negligente e escola assustadora. O filme gira em torno de Matilda Wormwood (Mara Wilson), uma menina com habilidades, como inteligência acima da média e poderes telecinéticos. No entanto, enfrenta desafios em casa, com pais indiferentes, e na escola, sob o regime da diretora, Agatha Trunchbull (Pam Ferris). No meio de toda essa confusão, a menina conta com a ajuda de sua gentil professora, Miss Honey (Embeth Davidtz), para lidar com as situações e descobrir sua força interior enquanto aprende a usar seus dons.

As dinâmicas de relacionamentos do filme ilustram uma prática muito utilizada na psicologia, a da reparentalização limitada. Essa abordagem terapêutica visa suprir, de forma específica e controlada, necessidades emocionais básicas que não foram devidamente atendidas durante a infância.

Essa técnica é comumente associada à terapia do esquema, mas pode ser utilizada ou adaptada por outras abordagens com foco na relação terapeuta-cliente e o reparo de padrões emocionais disfuncionais. Uma delas é a psicoterapia humanista, que prioriza a promoção de um ambiente empático e acolhedor, ajudando a reparar traumas emocionais do passado. Outro exemplo são as terapias com base psicanalítica, que exploram a transferência emocional e buscam reparar experiências parentais prejudiciais.

Essa prática também pode ser vista na gestalt, que utiliza técnicas experienciais para explorar as necessidades emocionais não atendidas, podendo recriar situações para ressignificar experiências parentais, assim como na terapia sistêmica, que se propõe a reparar os padrões disfuncionais herdados em dinâmicas familiares, reconstruindo a relação com figuras parentais.

Cuidado e suporte

Mas afinal, o que é essa técnica? Como ela pode ser utilizada? A reparentalização limitada é uma técnica usada em terapia para ajudar pessoas que, durante a infância, não tiveram suas necessidades emocionais básicas atendidas, como receber amor, segurança, validação e orientação. Nessa abordagem, o terapeuta age como um pai ou mãe simbólico, oferecendo, dentro do ambiente terapêutico, o cuidado e suporte que o paciente não recebeu no passado.

O objetivo não é que o terapeuta substitua os pais do paciente ou crie uma relação de dependência, mas sim que, de forma limitada e controlada, ajude a preencher essas lacunas emocionais. Isso permite que o paciente desenvolva maior confiança, segurança interna e a capacidade de cuidar de si mesmo.

Essa forma de reparentalização é exclusiva da relação terapeuta-paciente e ocorre dentro de limites profissionais bem definidos. É planejada e conduzida com base em modelos teóricos, como a terapia do esquema, para corrigir falhas nas experiências emocionais da infância. Porém, podemos ver exemplos não estruturados ou intencionais que podem acontecer em relações próximas nas quais há um forte vínculo de confiança e cuidado, como é o caso de Matilda e Miss Honey.

Exemplo simbólico

No filme, a relação entre essas personagens pode ser vista como um exemplo simbólico de reparentalização limitada. Simbólico, pois não está sendo trabalhado dentro do consultório e não é um conceito explicitamente abordado no filme, mas a dinâmica reflete muitos dos princípios dessa abordagem, especialmente quanto ao apoio emocional, validação e cura de feridas emocionais da infância.

Matilda cresce em um ambiente familiar em que seus pais são desatentos, egoístas e incapazes de reconhecê-la. Ela é negligenciada emocionalmente e não recebe o cuidado e a atenção que uma criança precisa para se desenvolver de forma saudável, causando grande impacto na protagonista, que, mesmo com sua inteligência e seus talentos, sente-se sozinha e incompreendida.

É nesse contexto que a figura de Miss Honey surge como uma espécie de cuidadora simbólica, sendo gentil, atenciosa e, ao contrário dos pais de Matilda, reconhecendo suas habilidades e necessidades emocionais. Essa nova dinâmica oferece um ambiente seguro e acolhedor para a protagonista, que se sente vista e validada pela primeira vez. A professora lhe dá atenção, apoio e carinho, elementos fundamentais para o desenvolvimento saudável e que nunca recebeu em casa. Esse acolhimento pode ser interpretado como uma forma de reparentalização limitada, já que preenche, temporariamente e de maneira controlada, as lacunas emocionais.

Além disso, essa relação não só oferece proteção emocional, mas também ensina Matilda a lidar com suas habilidades e emoções de maneira saudável. Aqui o objetivo não é criar uma dependência emocional, mas sim ajudar Matilda a desenvolver confiança, autoestima e habilidades emocionais que lhe faltavam. Ao longo do filme, podemos acompanhar o desenvolvimento da personagem e como ela começa a usar seus talentos para enfrentar as injustiças em sua vida, especialmente contra a diretora de sua escola.

Dessa forma, a relação entre Matilda e Miss Honey exemplifica a reparentalização limitada, na qual a figura da professora oferece o cuidado e o apoio emocional necessários para que Matilda possa se tornar mais autossuficiente, curar suas feridas emocionais e desenvolver a confiança necessária para enfrentar os desafios da vida de maneira independente.

Lacunas

Como essa técnica pode ser colocada em prática? O primeiro passo para aplicá-la é identificar as lacunas emocionais que o paciente carrega devido à infância negligenciada ou traumática. O terapeuta trabalha com o paciente para explorar e entender as necessidades emocionais não atendidas durante os primeiros anos de vida, como falta de afeto, abandono, validação, orientação ou segurança.

A relação terapêutica torna-se o campo no qual a reparentalização pode acontecer. Aqui o terapeuta se coloca como figura segura, oferecendo apoio, escuta ativa e cuidado. A confiança é fundamental: o paciente precisa sentir que está em um ambiente seguro, sem julgamento, onde suas emoções e experiências podem ser expressas livremente, mas é crucial que tenham limites claros e profissionais.

Essa técnica não se limita a ser um ato de acolhimento, mas envolve também a educação emocional, ensinando a lidar com emoções de uma maneira saudável, como expressá-las e resolvê-las sem recorrer a mecanismos disfuncionais de defesa, sendo importante o desenvolvimento de uma autoimagem mais positiva nesse processo.

O processo deve ser temporário e progressivo. Temos que ter em mente que o objetivo é, com o tempo, o paciente se tornar autossuficiente e capaz de oferecer a si mesmo o cuidado que recebeu. Em outras palavras, o psicólogo não deve se tornar figura de dependência, mas sim um modelo de apoio saudável para que o paciente desenvolva a capacidade de cuidar de si mesmo fora da terapia.

Saiba mais sobre o assunto nos seguintes livros da Sinopsys Editora: Terapia do esquema: base teórica e estratégias avançadas (Ana Rizzon) e Manual de técnicas em terapia do esquema (Natanna Taynara Schütz).