“Querida, cheguei”. Este era o chavão de um seriado americano que se popularizou muito nas tvs brasileiras nos anos 1990. “A familia Dinossauro”, embora concedida como um programa infantil, também se consagrou entre adultos e adolescentes. Uma crítica bem humorada da sociedade americana e os costumes da classe média, protagonizou dinossauros que viviam feito humanos. O chavão ao qual nos referimos é a caricatura de um operário retornando para casa, aguardando o afago de sua amada esposa e filhos.
Do lado de cá da tela, com a chegada de um vírus, a calorosa volta ao lar alterou-se com uma guinada no cotidiano. Essa brusca mudança veio em forma de pandemia. O isolamento social entrou como medida a ser tomada, sendo solicitado que as pessoas permaneçam em suas casas, o que tira da cena este prazeroso momento do retorno ao lar que agora, modificado, ganhou novos parâmetros. O regresso, seja de uma rápida ida ao mercado em busca de mantimentos, ou à farmácia, em seu novo contexto, tem o abraço evitado, a higienização vai das sacolas com os produtos à cuidadosa troca de roupa, medidas que até pouco tempo seriam vistas como uma “neurose” que beiraria o TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo).
Princípio da hostilidade
Quando se sai da clausura, a sensação que se faz é que a volta ao lar perdeu o júbilo sinalizado por Freud em seu clássico texto “Além do princípio do prazer” (1920). Nele, o autor testemunha a artimanha da criança que tenta dar contorno a ausência da mãe com o jogo que ficou conhecido como “fort – da”. Freud, na ocasião, observava a criança que, com habilidade, lançava o carretel seguro por um cordão para dentro do berço, de modo que ele desaparecia e depois o puxava novamente saudando o aparecimento dele com a alegria do prazer. Nessa brincadeira de desaparecimento e aparecimento, Freud considera que o prazer maior está no segundo ato. O mal-estar que vivemos no momento é justamente essa inversão, o prazer do retorno é tomado pelo medo de trazer o vírus para casa. Na brincadeira mencionada, a criança, confrontada com o desamparo, substitui o objeto mãe pelo objeto carretel. Ela brinca sabendo a todo instante que está representando. Em sua sagacidade ela sabe: “Não é a mamãe! Não é a mamãe!” (outro chavão conhecido do mencionado seriado).
Considerando o exercício de inversão, no qual o que era bom ficou ruim, é como se a letra da música mudasse de: “eu não posso causar mal nenhum a não ser a mim mesmo” e passasse a dizer: “eu posso causar todo mal a quem está junto a mim”. Uma ambivalência; afinal, por quê causar danos aos meus? Na literatura psicanalítica, a ambivalência não é despercebida. Contrário a isso sempre foi considerada no âmbito psíquico, se manifestando em situações diversas, como no caso da relação amor e ódio. Na obra freudiana, esse tema surge em diversos momentos, em muitos desses sentimentos dos filhos com seus pais, em outros, no convívio entre as pessoas em diferentes setores da vida. A ambivalência – um sentimento de hostilidade para com a pessoa amada – pode destinar simultaneamente amor e ódio ao mesmo objeto.
Abalos do confinamento
Passemos, então, à análise do desconforto com o retorno às implicações do confinamento.
A intensificação do convívio em estado de reclusão, o “fort – da” encontra-se escasso, dando lugar ao convívio maciço que, por sua vez, requer cuidados. De acordo com o que estamos analisando sobre o convívio familiar, esse micro grupo sofre seus abalos em meio ao confinamento. O mal estar dessa intimidade em grupo, pensada no âmbito familiar, foi trazida por Freud (1921) quando este recupera uma alegoria de Schopenhauer sobre os porcos-espinhos que, por sua vez, não suportam uma aproximação muito íntima um do outro: “Num dia frio de inverno, um grupo de porcos-espinhos se aconchegou bastante para se esquentarem mutuamente e não morrerem de frio. Contudo, logo sentiram os espinhos uns dos outros, o que os fez novamente se afastarem. E quando a necessidade de aquecimento os aproximava de novo, repetia-se o segundo mal, de modo que eram impelidos de um sofrimento para o outro, até acharem uma distância média que lhes permitisse suportar o fato da melhor maneira”. (p. 56)
Inquietante estranhamento
Se não bastasse todos os enlaces nas relações com o outro, ainda nos deparamos com o estranhamento de nós mesmos. O estranho é familiar, como disse Freud em ‘das unheimliche’. Neste texto (1919), que encontra as traduções de ‘O inquietante’, pela Companhia das letras, e “O Estranho”, pela Imago, Freud conta uma passagem na qual, em viagem após despertar de um cochilo, se assustou com um estranho que o observava. Só depois se deu conta de que era sua própria imagem refletida. No decorrer deste texto denso, Freud chama a atenção que estranhamos o que nos é familiar: “O inquietante é, também nesse caso, o que foi outrora familiar, velho conhecido” (p. 365). Estranhar nossos atos talvez seja um dos grandes desafios da reclusão que se faz necessária.
Essa estranheza que nos pertence confronta a ideia de “porto seguro” mais estimada no senso comum. Não à toa, a casa é o artifício para a trama de diversos escritores – entre inúmeros que poderíamos citar: Agatha Christie, desde o início de sua obra, teve um olhar para esse cenário em seus mistérios. O título do seu primeiro livro é justamente o da casa onde se desenrola a história de seu romance policial “A Mansão Hollow” (1946). Não só a literatura do gênero policial se serviu das casas como cenário de suas tramas, romances, comédias etc., de forma a tirar o néctar que lambuza o espectador.
A chegada do Dino em casa, a famosa frase na abertura do seriado “Querida, cheguei”, apontava para uma ironia, pois dentro de sua caverna o papai dinossauro não encontrava a receptividade esperada. São situações típicas dos enlaces familiares, mais uma vez, nos fartemos na clareza freudiana (1921) ao observar: “Quando a hostilidade se dirige para as pessoas normalmente amadas, chamamos isso de ambivalência afetiva, e explicamos o fato, de maneira certamente racional em demasia, pelas muitas ocasiões para conflitos de interesses que surgem precisamente nas relações íntimas” (p.57). É o que podemos frisar com a frase popular “A intimidade é um caminho sem volta”.
Identificações
As pessoas que vivem em “pé de guerra”, fazendo uso de um termo popular, se mantém unidas. Talvez você possa estar se perguntando “por quê essas relações se mantêm?”. Em nosso desdobramento, retomemos Freud (1932) ao considerar que são preciso duas coisas para dar liga a uma comunidade: “a coação da violência e as ligações afetivas – identificação é o termo técnico – entre seus membros.” (p. 425). Se as ligações afetivas são necessárias, para a Psicanálise a identificação é a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa.
Seu papel está determinado na pré-história do complexo de Édipo. É esperado que, na vida adulta, valendo-se de uma condição salutar, a pessoa possa seguir seu passo. Freud ((1909 [1908]) quando escreve “Romance familiares” abre desse modo seu texto: “Ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso do seu desenvolvimento. Tal liberação é primordial e presume-se que todos que atingiram a normalidade logram-na pelo menos em parte. Na verdade, todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre as gerações sucessivas. Existe, porém, uma classe de neuróticos cuja condição é determinada visivelmente por terem falhado nessa tarefa”. (p. 219).
Se passarmos da simpática e cômica família das cavernas para a repugnante família de Giacinto Mazzatella – que será apresentado na sequência – teremos um exemplo mais abrangente dos desarranjos familiares que unem seus entes. Neste tópico, ressaltamos a preocupação com o aumento da violência doméstica crescente em meio a reclusão no advento pandêmico. O feminicídio, a violência familiar, os crimes domésticos são um problema social que constantemente chocam os espectadores dos noticiários ao retratá-los.
A vida imita a arte
Giacinto Mazzatella – acima citado – é o protagonista do filme “Feios, sujos e malvados” (1976), dirigido por Ettore Scola. Para abordar o tema da violência familiar que encaminha o final do nosso ensaio, discorremos sobre essa obra como ilustração. Essa família que combina tragédia shakespeariana com comédia italiana, troca o “pastelão-cômico” por facas e armas de fogo apontadas entre os membros da casa constantemente. Em um barraco de 3 cômodos numa favela em Roma, Giacinto vive com a esposa, 10 filhos, noras e netos. O velho faz a vez do avarento que dorme abraçado com sua espingarda por conta de seu receio em ser roubado pelos demais residentes da casa. O mesmo esconde uma gorda indenização que recebeu após perder um olho em acidente de trabalho.
Neste filme perturbador, com agressões físicas e verbais, mulheres sendo agredidas e molestadas, ganância e promiscuidades recorrentes. As crianças passam o dia em uma gaiola em um terreno na favela, os moradores procuram por comida e sexo dentro da casa como se fossem primitivos, as regras sociais são quebradas, cunhados e sogro chegam a fazer investidas físicas nas respectivas cunhadas e noras. Essa quebra da normas sociais, não à toa nos remete ao que Freud (1915) alardeava ao afirmar que nós: “(…) se formos julgados por nossos desejos inconscientes, somos um bando de assassinos, tal como os homens primitivos” (p. 243), e aqui cabe a analogia dos humanos que vivem feito dinossauros.
O ápice se dá quando Mazzatella leva uma prostituta para morar com eles. Devido a falta de espaço enfia a amante na cama junto a esposa. A família querendo se apropriar do dinheiro da indenização, trama o envenenamento de Giacinto. O veneno é colocado em seu prato na ocasião em que todos estão reunidos comendo uma macarronada. A dose não é letal e o enfurecido Giacinto, após se recuperar da indigestão, ateia fogo na casa com todos dentro dela. Ninguém morre, escapam correndo pelas portas e pulando as janelas do barraco em chamas. Na tomada seguinte, a família segue aglomerada na caçamba de um caminhão que é dirigido pelo patriarca.
Trágica validação
“Feios, sujos e malvados” é atemporal, transcende classe social e nos indigna por escancarar o desrespeito às normas, a desvalorização com as vidas, o pouco zelo com o próximo. É uma espécie de testemunho da violência gratuita dirigida a quem cumpre seu papel, mesmo que este esteja fazendo seu trabalho de preservação do bem estar comum, como é o caso dos frequentes desacatos aos agentes de saúde. Ainda que estamos em meio ao turbilhão e nos faltam respostas; questões vão se abrindo: como estamos nos saindo nesses tempos sombrios? Em meio a tantas famílias afetadas com suas perdas, estamos vendo sensibilidade ou reivindicações por questões banais do tipo “quero sair sem máscara”? Alguns ensaiam respostas em seus esboços e dizem coisas do tipo: “precisamos aprender com o vírus”, os entusiastas vão além ao afirmarem: “que a pandemia possa nos ensinar a nos transformar em melhores pessoas”. Eu sigo na toada que o vírus não é educador, contrário a isso, segue sem critério de escolha e afere o sadismo da finitude ao validar que “um dia morreremos mesmo”.
Em meio a perdas inerentes ao momento trágico, quem olhar para trás quando esse ciclo pandêmico se encerrar e perceber que não foi se não todo “mau” quem deu o tom e que tampouco portou-se de modo vil, “talvez” obtenha uma saída digna que se possa almejar para si. “Talvez”, porque a incerteza ainda paira e pairará por um bom tempo. Não sabemos quando, nem como terminará a pandemia, pouco menos podemos dizer das mudanças que nos aguardam enquanto seres sociais. O que podemos dizer é que precisamos sobreviver, persistir para não retrocedermos feito primitivos em cavernas. É preciso, também, que nossos espinhos não se tornem kafkianos, pois isso nos tornaria definitivamente feios, sujos e (ainda mais) malvados.
Convívio maciço não é o mesmo que convívio maçante
O cenário atual de isolamento social traz uma análise pertinente em que o convívio maciço passa ao posto de desafio a ser superado, de outro modo pode cair no convívio maçante. Um recorte de Freud (1915) nos presenteia por sua precisão: o mais terno e mais íntimo de nossos laços amorosos tem, com ressalva de bem poucas situações, um quê de hostilidade que pode incitar o desejo inconsciente de morte”. (p. 244) Não raramente os desabafos entre os entes ganham esse tom “brincalhão” referindo-se a matar ou ser morto por alguém da casa/família. Escrito de maneira metafórica – e, portanto, dando margem a diferentes interpretações – o conto “O pequeno monstro”, de Clarice Lispector, nos traz uma ótima alegoria:
“É o primeiro aluno da classe. Não brinca. (Seu segredo é um caracol.) O cabelo bem cortado, os olhos são delicados e atentos. Sua cortês carne de nove anos ainda é transparente. É de uma polidez inata: pega nas coisas sem quebrá-las. Empresta livros para os colegas, ensina a quem lhe pede, não se impacienta com a régua e o esquadro, não se comporta mal quando há tanto aluno desvairado. Seu segredo é um caracol. Do qual não esquece um instante. Seu segredo é um caracol tratado com frio e torturante cuidado. Ele o cria numa caixa de sapatos com cuidado. Com gentileza, diariamente finca-lhe agulha e cordão. Com cuidado, adia-lhe atentamente a morte. Seu segredo é um caracol criado com insônia e precisão”.
Nossa interpretação vai no sentido de que esse personagem, fora de casa, se apresenta polido, em um momento subsequente quando se encontra no convívio com os seus familiares, deixa escapar sua outra faceta, em seu lar, metamorfoseado no conto pelo caracol. É importante averiguar que as palavras atravessadas que emanam ofensas também pedem pudor. Do mesmo modo que não se vive só, a convivência em grupo pode ser letal, de acordo com o que estamos vislumbrando a intimidade familiar, esse micro grupo também sofre seus abalos. As agulhadas em meio a insônia e precisão requerem ainda mais cautela para que o convívio que se apresenta maciço devido ao confinamento, não se torne maçante.