Ao pensar nas teorias de Freud, uma luta interna é marcante na história da Psicanálise, a das instâncias psíquicas: id, ego e superego. O que geralmente não damos conta é de uma outra guerra psicológica e tão importante quanto a que se dá pela Segunda Teoria do Aparelho Psíquico de Freud. Oriunda de dentro e estendida para fora, trata-se de uma forma de organização psíquica a que o psicanalista contemporâneo, David Zimerman, intitulará de Contra-ego.
Antes de avançar no assunto, seria interessante pensar que, para os conceitos da Filosofia, geralmente o objeto está por fora do sujeito e não se associa, necessariamente, ao que há dentro dele. Antes, pelo contrário, associa-se a tudo aquilo que esteja fora do indivíduo, sujeito ao objeto. Da mesma forma, este mundo do sujeito, do indivíduo, torna-se subjetivo, ou seja, tudo aquilo que faz parte dele mesmo. Lacan, em entrevista a Emilio Granzotto, na revista italiana Panorama de 1974, destaca bem estes dois mundos, ao fazer a seguinte observação em sua entrevista: “[…] Tornam-me por um obscuro que esconde seu pensamento em cortinas de fumaça. Eu me pergunto por quê. A propósito da análise, repito com Freud que é ‘o jogo intersubjetivo’ através do qual a verdade entra no real.”
Segundo as observações de Jacques Lacan neste trecho, destaca-se, notoriamente, o mundo do sujeito que, em conflito consigo mesmo, traz para fora o que ele, Lacan, chama de “real”. Desta forma, fica tão claro para nós que, para a Psicanálise, tanto o mundo dentro do sujeito (o mundo subjetivo), quanto o mundo fora dele (o mundo objetivo) se misturam, causando uma série de conflitos inevitáveis e, muitas vezes, tormentoso, inquietante, doloroso.
Em suma, esses fenômenos casuais que, em virtude da vivência do indivíduo, tornam-se parte dele, são tanto interiores quanto objetivos. Mas, como assim? Simples! Para a Psicanálise, um fator gerador de ansiedade nas pessoas está exatamente entre esses conflitos intersubjetivos já descritos por Lacan, tanto quanto essa forma de organização de ego descrita por Zimerman como Contra-ego e, mesmo na hospitalidade que se dá ao objeto ao alocá-lo para dentro de si mesmo, o que gera uma relação completamente parasitária, onde o que vem de fora, suga e sorve as energias vitais do indivíduo.
Sujeito e objeto convivendo dentro de um mesmo ser: uma relação tanto quanto complicada e de difícil elaboração na tentativa de resgatar o Ego do sujeito que busca uma vida no mínimo um pouco mais saudável.
O Contra-ego
Descrito por Zimerman como uma forma genérica de um jogo dinâmico oriundo de uma organização patológica, o Contra-ego trata-se da relação do próprio sujeito com o seu respectivo EU. Este sistema organizado, este emaranhado conflitante que parte de dentro do sujeito, se encarrega por prejudicá-lo e por promover uma espécie de sabotagem contra as competências saudáveis e criativas do mesmo; suas ambições sadias e seus anseios pelo seu próprio desenvolvimento e crescimento. O Contra-ego, portanto, descreve o Ideal do ego que veremos mais à frente, onde o objeto torna-se o protagonista da cena de um ego tomado por desejos, anseios e aspirações do outro que não, suas aspirações e desejos próprios. Podemos dizer, portanto, que o Contra-ego refere-se aos conflitos internos subjetivos e objetivos ao mesmo tempo, ou seja, do sujeito com ele mesmo e do sujeito com as relações estabelecidas com o outro fora dele, porém, hospitalizado em si mesmo.
Narcisismo primário
O Ego ideal é uma espécie de herdeiro direto do narcisismo primário e, portanto, íntimo e inseparável da imaginação, do delírio ou das fantasias. Numa clínica, ele aparece conjugado à expressão “Eu Sou!” e ligado à fantasia onipotente e megalomaníaca. O indivíduo passa a adotar comportamentos altivos e elevados para justificar uma falta ou a falta real imanente a todos nós como marca de imperfeição e deficiência. (ZIMERMAN, p. 114 – paráfrase)
Aqui, “ter é ser”, ou seja, o indivíduo passa a associar o objeto inanimado ao anima. Uma ligação do tipo: “Tenho, logo existo!”. Neste caso específico, o sujeito sempre espera o máximo de si mesmo. Há uma exigência narcisista que lhe impõe o sucesso. Não estou dizendo aqui que ter sucesso seja algo ruim, porém, que uma condição exacerbada do EU como essa, não se torna adequada ao nosso bem estar. O sucesso, aqui, entra como uma imposição que obriga o indivíduo a se esforçar além da conta para ter de responder a si mesmo como alguém visto e percebido no mundo. Alguém com que se tenha certa notoriedade pelo título que possui, posição social, bens materiais, talentos etc. Sem nem uma dessas coisas ou na falta delas, o sujeito sucumbe à depressão ou declina ao estado de psicose delirante, como na esquizofrenia, por exemplo.
Nestes casos, o tipo clássico e primário é o de uma expressão falsa, fingida e simulada. O sentimento inconsciente que emerge advindo da entrada no real é o de humilhação, rebaixamento, vergonha. Para Zimerman, tal fenômeno psíquico requer o uso de mecanismos de defesa como a negação onipotente, a renegação ou até a forclusão – termo utilizado na Psicanalise Lacaniana para explicar a expulsão da figura do pai, trazendo certa sensação de “liberdade” que leva o sujeito ao surto psicótico. Para o médico psiquiatra e psicanalista, esse estado do ego está mais vigente nos estados narcisistas, de forma total (como nas psicoses) ou de forma parcial (como nas perversões – estado antinomia que leva o ser ao declínio da moral, denegando as leis estabelecidas para si, para as relações de parceria entre um indivíduo e outro e para as relações em grupos grandes, médios e pequenos).
Quando o assunto é o conflito entre si e outro que aguarda e espera do sujeito uma resposta e que, de certa forma, o intimida e o constrange, desenvolve-se um outro verdadeiro conflito dentro do próprio sujeito entre o seu Ego Narcisista e o Contra-Ego, como o agente externo de pressão social.
Herança dos pais
Herdeiro do Ego ideal, o Ideal do ego torna-se aquela parcela psíquica que se correlaciona às pretensões, às ambições e às expectativas pessoais dos pais. A forma expressiva de descrever o sintoma é: “Eu ‘deverei’ ser assim, senão…”. Os sentimentos predominantes diante das frustrações é o de culpa pelo “fracasso” e, sobretudo, o de “vergonha”. (ZIMERMAN, p. 114)
Como elucidado logo no início, a relação que se tem consigo mesmo no caso da Idealização do ego, é de extrema ansiedade promovida pela hospitalidade do ideal do outro, que insiste em gritar bem alto e ecoar dentro de nós, provocando conflitos entre o nosso ideal e o ideal de fora, hospedado e acolhido em nosso aparelho psíquico. Freud irá conceituar este objeto como uma Exigência Externa que, ao penetrar dentro da nossa psique, trará uma série de confrontos e perturbações em nossa mente.
Como se pode perceber, olhar para si mesmo não é uma tarefa tão fácil como se diz por aí, usando expressões do tipo: “Você deve olhar para si mesmo e…”; não, não é! Olhar para si mesmo exige uma escuta qualificada e, no mínimo, uma expertise profissional de dedicação e trabalho que oferte ao outro essa escuta analítica de qualidade. Na tentativa de olhar para si, muitas pessoas se perdem e acabam se perturbando por isso, causando a si mesmas, certo grau de sofrimento que não deveriam ter entrado nele. Fica aqui, portanto, a consideração de que se procure ajuda profissional qualificada para tratar e trabalhar o nosso centro existencial, ou como a Psicanálise popularmente menciona: o nosso aAparelho psíquico.
Vínculo com o Outro
Na frase “O Outro pra você, é o Outro, porém, você para o Outro, também é o Outro.”, o jornalista e escritor, Jorge da Cunha Lima, exemplifica bem as relações com o outro ao se referir sobre o Outro como aquele que está fora de nós e dentro de nós ao mesmo tempo. Pensemos, agora, sobre quais os processos psicológicos estão vinculados em uma relação de associação e união com o outro.
Primeiramente, é preciso considerar que Wilfred Bion, psicanalista britânico, irá conceituar vínculo como uma relação resultante de elos – emocionais e interacionais – que ligam duas ou mais pessoas, ou duas ou mais partes constituintes do psiquismo de uma mesma pessoa. (ZIMERMAN, p. 333)
Para Bion, numa relação interpessoal quanto intersubjetiva, há uma fusão de certa forma indivisível entre quatro aspectos emocionais de uma personalidade: amor, ódio, conhecimento e reconhecimento.
Ao estabelecer o vínculo com qualquer pessoa, sejam amigos, namorados, família, vínculo conjugal ou relações de trabalho, duas personalidades estarão dispostas a encarar uma relação tênue entre o amor, o ódio, o conhecimento e o reconhecimento ao mesmo tempo, ou seja, concomitantemente. Haverá uma relação de amor, uma relação de ódio; haverá o conhecimento de novas fronteiras e o reconhecimento dessas demarcações. Estar, portanto, vinculado a alguém, não é uma tarefa fácil.